Em 10 de setembro de 1990, o uruguaio Mario Levrero começa uma “autoterapia grafológica” insólita, a partir de uma sugestão de “um amigo louco”. Com a “disciplina diária” do exercício caligráfico, ele espera — uma “suposição comportamentalista” — não só aprimorar sua letra (“obter uma escrita legível”), mas também “produzir alterações em nível psíquico”. Aos poucos, vai-se produzindo um “discurso vazio” intrigante: a “sucessão coordenada de frases”, na definição de discurso de Jean Cohen (Dicionário de termos literários, de Massaud Moisés), aparentemente esconde, na visão de Levrero, um sentido inconsciente e simbólico (como os sonhos que ele nos relata no seu diário); algum significado metafísico, místico — o próprio Deus.
Aquele que existe em mim, que não sou eu, e que busco. […]
É inútil procurá-lo; quanto mais o procuro
mais distante parece, mais se esconde. […]
[…] vi Deus em um raio de sol que animava obliquamente a tarde.
O Prólogo em versos de O discurso vazio lembra qualquer provérbio do Tao-te King: o livro do sentido e da vida, de Lao-Tzu.
Após duas semanas — apenas dois dias de exercícios caligráficos, suspensos pelo derrame cerebral da mãe —, Levrero reitera sua fé no “hábito bastante positivo, [que] além de prazeroso, ajudava de maneira nada desprezível a centrar meu eu e a me preparar para uma jornada de maior ordem, vontade e equilíbrio”. Engraçado! Ele não nos convence; soa como autoajuda, desenvolvimento pessoal, psicologia barata. Em 1º de outubro, anota “alguns resultados psíquicos positivos […]; todos relacionados com a autoafirmação”. “A vontade: esse é o cerne do meu problema”, insiste adiante, como um discípulo meia-boca de Schopenhauer.
Desde o início, a relação do escritor com a autoterapia é ambivalente: ele resiste; enquanto se concentra no conteúdo e no significado do que escreve, no “modo de dizê-lo” (literatura), afasta-se da caligrafia, do desenho da letra (o que seria “antiterapêutico”). Diz que não tolera “trabalhos rotineiros, repetitivos” e, a certa altura, questiona-se: “O que posso escrever que não seja muito interessante a ponto de me distrair do meu propósito, e ao mesmo tempo não seja tão entediante que eu abandone o trabalho pela metade, entre grandes bocejos?” Vê-se, assim, diante de um paradoxo, uma aporia; uma tarefa impossível — a serpente que morde o próprio rabo.
Em crise criativa, o autor volta a sentir-se inspirado em 15 de novembro: “[…] muito mais, quero entrar em contato comigo mesmo, com o maravilhoso ser que me habita e é capaz, entre muitos outros prodígios, de fabular histórias”, diz. “Essa é a chave.” Dias depois, segue no mesmo caminho: “[…] estou afastado do Ser Interior; muito afastado […]. Não importa o que se está vivendo quando uma pessoa está apartada de Si Mesma; tudo fica igualmente sem peso, tudo transcorre sem deixar nenhuma marca memorável.”
Ora, não se trata mais de autoajuda ou desenvolvimento pessoal, mas de esoterismo e psicologia analítica — a primeira reviravolta de O discurso vazio. Em vez do “eu” (ego), o Ser Interior (Self).
“[…] a visão da alma […] é muito mais completa do que pode perceber o eu, que é tão estreito e limitado”, Levrero filosofa, alinhado a C. G. Jung: “[…] a alma é um mundo no qual o eu está contido”, escreveu o pai da psicologia analítica em seu comentário a O segredo da flor de ouro: um livro de vida chinês. (O uruguaio cita, inclusive, o arquétipo anima.)
Ainda em novembro, Levrero se dá conta de que seus “exercícios caligráficos foram virando exercícios narrativos; há um discurso — um estilo, uma forma, mais que um pensamento — que se impõe ansiosamente à minha vontade”, anota — e aqui se dá o segundo ponto de virada do romance (diário íntimo, autoficcional), o qual efetivamente lança o leitor para sua Segunda Parte, onde se alternam os capítulos chamados “exercícios” com “o discurso”.
Zen
A descrição do “discurso vazio” lembra muito a “atenção flutuante” de um psicanalista (“uniformemente suspensa”, segundo Freud), a meditação (ou zazen) budista e, ainda, a filosofia taoísta:
Há um fluir, um ritmo, uma forma aparentemente vazia […]. Tenho de estar alerta, mas com os olhos semicerrados, com um ar distraído, como se não me importasse com o discurso que vai se desenvolvendo. É como entrar em um viveiro com peixes e esperar […].
(“Talvez haja peixes que acreditem conter o mar”, observou Jung.)
De fato, Levrero anota adiante: “Meu modo de realizar ações tem algo de zen; as coisas devem se realizar quando estão maduras para sua realização, e esse momento é algo que devo sentir surgindo no meu interior. […] Alicia [sua esposa], que tem o jeito oposto, eu diria de ‘falta de respeito pelas coisas’, acha que elas devem se realizar apenas através da força de vontade, independente das circunstâncias”.
O escritor uruguaio, contudo, tampouco sustenta esse estilo de vida ou prática por muito tempo: “[…] descobri que me desagrada profundamente o estado de relaxamento — em especial quando vem acompanhado de uma notável paz mental”, comenta na Terceira Parte, em setembro de 1991.
Cambalhota
No seu Epílogo fatalista — e etarista —, Levrero se vê impotente em um labirinto existencial sem “saída”: “Quando se atinge certa idade, […] não temos para onde sair, porque a selva é a própria pessoa, e uma saída implicaria alguma espécie de morte ou simplesmente a morte.”
Apesar de tudo, “mediante certa cambalhota espiritual” (um tropeço literário, eu diria), o autor alcança a iluminação e semeia uma esperança um pouco piegas: “Ainda assim, hoje vi, no pôr do sol, os reflexos de uns raios avermelhados de sol em uns ladrilhos de cerâmica envernizada, e me dei conta de que ainda estou vivo”. Esse fragmento repete (ecoa, vá lá) a imagem clichê do prólogo (“um raio de sol”) e duas palavras, sem função expressiva: “ainda” e “sol”.
Na sequência, o escritor — agora um guru — orienta: “Há uma forma de se deixar levar para poder se encontrar no momento certo, no lugar certo […].” Ora, outro “plágio” de Jung: “O deixar-acontecer (Sichlassen), na expressão de Mestre Eckhart, a ação da não-ação foi, para mim, uma chave que abriu a porta para entrar no caminho.”
Interrupções
A suspensão da autoterapia que Levrero sofre em função do derrame da mãe logo no início do romance é só a primeira de muitas distrações e interrupções, por motivos diversos. “Chegou minha mulher [Alicia] para incomodar. Tem muito ciúmes da minha solidão”, queixa-se, um pouco irônico. O filho de ambos, Juan Ignacio, também lhe demanda atenção: “Nesta casa não faltam interrupções.” Outra hora, o computador, o telefone chamam… Ou então o cachorro Pongo causa confusão.
De fato, o escritor dedica uma página de reflexão a este tema incômodo: “Eu tinha justamente começado a escrever acerca das interrupções, ou melhor: da necessidade imperiosa de conseguir uma continuidade nas minhas atividades, uma ordem, uma disciplina — porque a dispersão e a inanidade dos meus dias são esmagadoras, deletérias, levam à perda da identidade e tiram o significado da existência. […] O agente sinistro não é a interrupção nem a mudança de atividade, e sim a interrupção abrupta, a mudança de atividade não desejada — quando não tive a oportunidade de completar um processo psíquico, seja na atividade ou no ócio.”
Vazios
Como Mario Levrero, há muito tempo eu me dispus a “só encher uma folha de papel com minha escrita”. Eis o meu Soneto vazio:
Eis um poema que a você não diz
nada (no entanto, toma-lhe algum tempo).
Nem sequer sei ao certo por que o fiz
e pouco me importa que o leve o vento!
Só posso dizer que assim eu o quis:
feito apenas de letras, uns acentos…
Não teve origem numa cicatriz;
despido (ou quase) está de sentimentos!
É isto, e basta: um puro desperdício
de papel e tinta (um preto no branco
equivalente a um branco, no branco).
Soneto que não satisfaz seu vício,
pois preenche o copo — sem transbordar —,
mas não mata a sede, o líquido é ar.