Óbvio, ma non troppo

Flávio Paranhos comenta ensaio de Pedro Lyra sobre poesia, publicado no Rascunho de agosto
01/09/2007

O ensaio de autoria de Pedro Lyra (O desnível entre os poetas) publicado no Rascunho 88, de agosto de 2007, trata de um assunto do qual se pode dizer tudo, menos que seja ponto pacífico. Por esse motivo, peço licença pra rasgar a bandeira branca e jogar umas pedrinhas inofensivas com meu estilingue de moleque atrevido. “Moleque” sim, é o que sou, diante de um professor-doutor em Poética. Um diletante, vá lá. Um amante dos livros e da literatura, ergo, um crítico em potencial.

Mas não vou ficar pedindo desculpas demais. Senão corro o mesmo risco do professor Lyra, que gastou quase metade de seu brilhante ensaio com uma inacreditável gordura retórica em torno do óbvio. Sim, eu gostei do ensaio. O que não significa que concordei com todo ele. Aliás, é justamente a primeira parte, em que o professor, à guisa de intróito justificatório, enrosca-se numa interminável e absolutamente dispensável argumentação acerca da presença da hierarquização em todos os aspectos de nossa vida, com a qual concordei irrestritamente. Com isso é fácil concordar. Fácil demais. Bastava dizer numa frase, algo assim como “hierarquizamos tudo na vida, com a literatura não tinha como ser diferente”. Pronto.

É na segunda e terceira partes, quando o professor finalmente diz a que veio, que o ensaio fica verdadeiramente saboroso. E um tanto equivocado.

Sua tipificação dos poetas (genial, talentoso, mediano, esforçado e medíocre) é simples e interessante. Suas escolhas (Dante, Camões, Shakespeare, Milton), compreensíveis. O problema começa quando o professor demonstra acreditar na quimera da objetividade crítica:

A diferença de valoração crítico-histórica comprova a hierarquização: é uma decorrência, intuída espontaneamente e nem sempre objetiva. Mas quando um Sílvio Romero dedica 100 páginas a Tobias Barreto e 20 a Castro Alves, o que ele está fazendo é ainda uma hierarquização – mas invertida, colocando um gênio abaixo de um medíocre (grande em outros campos): caso típico de gosto pessoal ou de interesse ideológico sobreposto a objetividade crítica. [Grifo meu]

E mais adiante, ao comentar o espaço dado a poetas na história: “(…) sempre conforme o gosto, a visão, o conhecimento, as preferências, os relacionamentos e/ou a ideologia do historiador”. Ter preferências e imaginá-las as corretas não é pecado algum. O problema é dar a isso o nome de objetividade e, às preferências alheias, subjetividade. Ora, ainda que haja alguns critérios estéticos pretensamente objetivos para balizar escolhas, sempre (sempre!), no fim, o que manda mesmo é o gosto pessoal. A imperscrutável empatia que se estabelece entre leitor e autor.

O que me faz lembrar dos diálogos platônicos[1] Íon e Hípias Menor, recém-lançados pela L&PM, com tradução de André Malta[2]. No primeiro, Íon é um rapsodo que só admite genialidade em Homero[3]. Sócrates credita isso aos deuses (e não à arte, pois se arte fosse, não seria exclusivo), responsáveis pela empatia entre rapsodo-poeta. Já Hípias (dito Menor porque é um diálogo menor do que Hípias Maior — nem sempre é ruim ser óbvio), um interpretador das obras de Homero, considera Odisseu um herói pior do que Aquiles, ao que Sócrates retruca não ser o caso, pois Odisseu sabia o que fazia, sendo Aquiles um simplório. O que Sócrates acaba mostrando por vias tortas (como era seu costume) é que um e outro, Íon e Hípias, externavam seus gostos pessoais sem se dar conta disso. Imaginavam-se proprietários da verdade objetiva, já que eram ambos tidos como doutores no assunto — Homero — cada um a seu modo, Íon, rapsodo, Hípias, palestrante.

Empatia é a palavra-chave. E Pedro Lyra sabe disso:

O que constitui a superioridade ou monumentalidade desses poemas é exatamente o conjunto e a interação de abrangência (o universo tematizado), de intensidade (o nível de emoção com que cativa o leitor) e de profundidade (a visão radical de um drama ou da condição humana) — expressas numa forma poética eficaz, esculpida na linguagem. [O grifo é meu]

Empatia, como hierarquia, está presente em tudo na vida, não somente nas artes. Até mesmo, quem sabe, na determinação do que “fica na história”, uma das maneiras de se determinar o que é genial do que não é. Há essa crença de que o que o fica é o que presta. Coisa de gênio. Nesse sentido (ou contra ele) foi interessante ler a informação dada pelo escritor Bernardo Carvalho no Paiol Literário do Rascunho 88, quando citou um estudo realizado por Franco Moretti. Este quis entender por que alguns romances policiais do século 19 sobreviveram e outros não. “Os nomes que ficaram, que se tornaram grandes escritores, são aqueles que deram ao público o que o público queria”, informa Carvalho.

Literatura, como acreditamos eu e Bernardo Carvalho, é uma coisa subjetiva. E o subjetivo, repito, é algo imperscrutável. Eu e Bernardo lemos Paulo Coelho[4] pra tentar compreender o sucesso (a enorme empatia) que o bruxo, que não é do Cosme Velho, tem com seu grande público leitor. Não conseguimos. Quem está errado? Nós dois e mais um punhado de “ressentidos”? Ou os milhares que devoram seus livros? Vai saber…

Flávio Paranhos é doutorando em Filosofia na UFSCar. Autor de Epitáfio e A filosofia de Woody Allen (ambos pela Nankin Editorial, o último no prelo).

Notas

[1] Sei que não é de bom tom citar Platão, que expulsou os poetas de sua República. Perdoem-me a falta de tato.

[2] Malta está de parabéns por fazer chegar ao público esse pequenos mas interessantes exemplares de diálogos platônicos, precedidos por sua análise elucidativa. O único reparo que tenho a fazer, pra não deixar de bancar o chato, é a contaminação pelo cacoete lingüístico mais irritante dos últimos tempos, o “com certeza”. Tenho uma teoria sobre esse cacoete, que enterrou a possibilidade de se dizer “sem dúvida”, ou “certamente”. Minha teoria é de que foi introduzido e difundido pelo Faustão, do Domingão.

[3] Homero só foi citado uma vez e de passagem por Pedro Lyra. Íon ficaria furioso.

[4] Paulo Coelho, pelo enorme sucesso de vendas que é, virou alvo freqüente de ressentidos como eu. Entretanto, e por falar em gosto, há um monte de outros cuja pequena porção de sucesso me escapa por completo à compreensão, incluindo vários resenhados positivamente aqui mesmo no Rascunho.

Flávio Paranhos

É escritor, autor do livro de contos Epitáfio.

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