Obviedade freudiana

Resenha do livro "Freud com os escritores", de J.-B. Pontalis e Edmundo Gómez Mango
J.-B. Pontalis e Edmundo Gómez Mango, autores de “Freud com os escritores”
01/04/2014

Sonhos e imaginação literária. Essas duas substâncias podem ser admitidas no meio científico? Podem ser transformadas em matéria da ciência? Não me atreveria a um palpite. Mas Freud, grande leitor, desde cedo lia Shakespeare, transformou os sonhos em elemento da ciência. Ao longo de sua trajetória profissional, o leitor atento perceberá que muitas das teorias de Freud foram nutridas por obras literárias. Até aí nada de novo, muitos fizeram e continuam a fazer isso. Mas teria algo de novo em Freud com os escritores? Quem sabe se tratado como uma denúncia: “percebam, caros leitores, o quanto a psicanálise deve à literatura”. Sim, eu sei que você dirá que cheguei a uma conclusão medíocre e que me faria um grande bem se procurasse um analista. Quem sabe… quem sabe.

A obra de J.-B. Pontalis e Edmundo Gómez Mango, ambos psicanalistas, trata exatamente dessa junção: psicanálise e literatura. Mais precisamente a relação de Freud com alguns autores.

Embora o viés psicanalítico da obra, os autores apresentam um Freud amante da literatura, capaz de demonstrar afeição por este ou aquele personagem. Com você, isso não ocorre, caro leitor? Também ocorre. Então, sigamos em nossa desesperada busca de algo que justifique este Freud com os escritores.

Um outro ângulo para examinar a obra dos psicanalistas franceses: literatura e psicanálise dividiriam o mesmo objeto? A complexidade do ser humano, seus conflitos, sua porção obscura. Mais precisamente, ambas buscariam a tradução desse enigma.

Mas deixemos parte dessas ferramentas de lado, a psicanálise. Prefiro não juntá-las visto que a esta cabe a doença e não me parece que a literatura tenha igual pretensão. Se bem que pode auxiliar em algumas curas. Pelo menos momentâneas.

Freud com os escritores deve ser uma excelente leitura para psicanalistas e amantes dessa profissão. Por mais que se estabeleça a relação psicanálise x literatura, esta, embora seu papel de protagonista no livro, estará sempre a serviço da referida ciência. Pelo menos na obra de Pontalis e Mango.

Sei que temos o patético hábito de enaltecermos o rótulo estrangeiro. Isso vale para toda e qualquer atividade: dos automóveis aos vinhos, sem nos esquecermos da literatura e da música. E por falar em música, talvez esteja aí nossa maior prova de falta de amor próprio. Importamos e consumimos péssimas canções, apesar de nossos insuperáveis Luan Santana, Latino, Naldo e a boçalidade extrema de Ivete Sangalo e seu clone Claudia Milk.

Feita a digressão, retomo. Se não me engano me referia a elementos que podem interessar aos não-psicanalistas, um deles: saber da relação de Freud com este ou aquele autor, o significado de determinado personagem, despertar nossa curiosidade ao descobrirmos que certo personagem ajudou na criação de tal teoria. Embora a relevância desse saber seja quase zero.

Afora isso, esclarecido leitor, você se defrontará com uma obra das mais óbvias. Faça uma análise acerca da lista de autores pelos quais Freud se interessava e depois me diga se não são os mesmos pelos quais você se interessa, que qualquer pessoa que tenha o hábito da leitura e costume ultrapassar os limiares melequentos de Crepúsculo, Código Da Vinci, se interessa. A lista é grande, alguns integrantes: Shakespeare, Goethe, Schiller, Heine, Hoffmann, Dostoiévski, Stefan Zweig, Arthur Schnitzler, Romain Rolland, Thomas Mann.

Talvez um ou dois citados ao longo do livro ainda sejam desconhecidos pelas “terras brasilis” e você ainda não teve a oportunidade de aprender aquela língua.

Eu sei, pelo menos bilíngue leitor, e você também sabe que o livro foi muito bem recebido na França. Mas seria pelo seu valor literário ou pelo que traz de curiosidade acerca dos gostos literários do autor de O livro dos sonhos?

Um aspecto bastante curioso, por favor “ouça com bastante atenção”, é o sutil conflito que se estabelece em Freud entre seu amor à literatura e sua devoção à ciência.

Freud com os escritores obriga tal postura ao leitor não-psicanalista, procure, cave, vá mais fundo, releia e talvez você encontre a razão. Eu não encontrei. Mas não sou parâmetro, sei muito bem de meu lado tosco. O que não impede de lembrar outro livro, e sem rótulo estrangeiro, um livro essencial, principalmente para quem gosta de literatura e alimente curiosidade acerca dos gostos de Freud. Falo de Os dez amigos de Freud, Paulo Sergio Rouanet (Companhia das Letras, 2003).

Atendendo a pedido de um editor vienense, Hugo Heller, Freud relacionou livros com os quais mantinha uma relação de amizade. São os “dez amigos” do título do livro de Rouanet. Os autores escolhidos por Freud foram Multatuli, Thomas Macaulay, Rudyard Kipling, Émile Zola, Anatole France, Gottfried Keller, Conrad Ferdinand Meyer, Theodor Gomperz, Dmitri Merejkovski e Mark Twain.

Rouanet, num trabalho minucioso e didático, analisa cada um desses autores. Engano seu, caro leitor, caso acredite que a tarefa assim termina, pois Rouanet cita autores a quem o referido editor também solicitara uma relação de livros — de Arthur Schnitzler e Herman Hesse, entre outros — e estuda suas listas, comparando-as com a de Freud. Um trabalho magnífico, em mais de 800 páginas uma obra indispensável.

Excetuando o viés psicanalítico, o qual não atrevo a comentar, o que tem em Freud com os escritores que não tem em Os dez amigos de Freud? Não vai responder, reflexivo leitor, não vai?

Então vou inverter a questão: o que tem em Os dez amigos de Freud que não tem em Freud com os escritores ? Essa eu respondo.

Tem muita coisa, mas prefiro citar um detalhe. Sergio Rouanet cria uma psicoficção, apresenta o que podemos chamar de monólogo interior onde simula processos associativos que poderiam ter ocorrido a Freud quando fazia sua autoanálise.

Portanto, Freud com os escritores só em caso de não encontrar Os dez amigos de Freud.

Freud com os escritores
J.-B. Pontalis e Edmundo Gómez Mango
Trad.: André Telles
Três Estrelas
304 págs.
J.-B. Pontalis
(1924-2013), filósofo e psicanalista, é autor de, entre outros, A força de atração e Perder de vista (ambos pela Zahar, 1991), e À margem dos dias (Primavera Editorial, 2012), além de co-organizador de Vocabulário da psicanálise (Martins Editora, 2001). Edmundo Gómez Mango (1940), professor de literatura, psiquiatra e psicanalista, é autor de La place des mères (1999), La mort enfant (2003) e Un muet dans la langue (2009), publicados na França pela Gallimard.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho