Obscuros abismos juvenis

“Fugalaça”, de Mayra Dias Gomes, é um romance em ritmo alucinado e intenso, assim como a vida de seus personagens
Mayra Dias Gomes lapida as frases com precisão milimétrica.
01/08/2007

Mayra Dias Gomes é uma escritora verborrágica. Fala pelos cotovelos. Isso dá ao seu romance de estréia, Fugalaça, páginas adicionais que não fariam falta numa prosa mais enxuta e concisa, mas por outro lado condiciona o texto ao ritmo alucinado e intenso da vida de seus personagens, os jovens cariocas e paulistas da classe média alta. Eles vivem em fronteiras apostas, ou, como se define a protagonista Satine, “sempre oito ou oitenta, pois eu era extrema demais para existir um meio”.

O enredo conta a vida de Satine, filha de uma celebridade, moradora da zona Sul carioca que se apaixona perdidamente por Riki, um jovem que toca e canta em duas bandas do emergente rock paulista. A moça se entrega com todas as forças e loucuras, enquanto o moço se comporta com uma calculada indiferença. Ele é o galã irresistível e cercado de belas garotas. Ela, a namoradinha apaixonada capaz de chegar a todos os extremos.

Essa busca pelo prazer, pelo preenchimento de seus vazios a leva, claro, às drogas, ao sexo, à degradação, à inutilidade, à quase prostituição. Tudo traz à lembrança Christiane F., Janis Joplin, Jack Kerouac, Marlon Brando, James Dean, o que certamente aguçará a fúria mais empedernida dos puritanos: a juventude não muda e continua em perigo. A verdade é que o romance em momento algum opta pela facilidade. Seus personagens não são tão superficiais e estereotipados quanto possam parecer. E a autora não parece mesmo interessada em lições, em redenções. Sua busca vai na direção dos abismos mórbidos que cercam os pés da juventude. Eles estão aí e Mayra os combate com uma prosa rica de sensualidade e poesia. Uma prosa que simplesmente favorece identificações que inquietam os leitores.

Tá certo que ousa ao criar alguma identidade com Satine. Como a personagem, Mayra é filha de uma celebridade, o dramaturgo Dias Gomes, que morre num acidente automobilístico nas ruas de São Paulo. E com certeza as dores sofridas na ficção atormentaram também a ficcionista. Daí nasce a pergunta: será que ela viveu todas essas experiências? Mesmo descrevendo com indiscutível precisão e minudência aquele mundo degradado, Mayra não parece falar de si mesma, não parece ter cometido um romance autobiográfico. A cada nova página fica claro que seu interesse é a palavra escrita, é a descoberta da poesia escondida na sintaxe.

Essa é uma autora que lapida as frases com precisão milimétrica, que consegue até superar o drama da frase inicial de um romance: “Ouvia Lisa Germana no repeat e misturava tédio com tragadas de Camel. Bebia Coca-cola com irresolução e esperava uma nave espacial de inspiração aterrissar na minha varada”, inicia sua conversa. Também consegue, ao longo do texto, manter a precisão cortante das frases. “Eu berrava por uma dor com sobrenome de prazer”, “dançava uma valsa moderna de coreografia impecável com cada um dos pêlos do meu corpo”, “a covardia era meu orvalho, a única coisa que me amparava”, essa última chega a lembrar Guimarães Rosa que diz pela boca de Riobaldo: “Diadorim era meu sereno”.

Aliás, a pretensão da frase ideal, tormento de todo escritor de fato, leva Mayra a alguns escorregos: “Os monstros que mais odiamos são os que ajudamos a criar”, “sua presença parecia encher os lugares vazios e esvaziar os lugares cheios”. Entretanto, isso não chega a macular Fugalaça. O livro se mantém como um retrato sem retoques de uma sociedade formada por ambições que beiram a irracionalidade. A urgência de tudo não favorece o vagar vadio pelo pensamento mais lúcido e isso talvez tenha aprofundado as fugas desvairadas das novas gerações. Nenhuma novidade, afinal.

O novo está no confronto com uma imensa parcela da literatura atual. Os novos autores desse bloco privilegiam a violência gratuita, o sexo gratuito, a linguagem gratuita, e desta forma pensam construir a pós-modernidade. Na verdade, estão somente datando sua literatura. Mayra, ao contrário, busca superar os limites do agora. Até por falar do hoje, sua literatura não tem pudores de dizer de sexo, violência e gíria. Só que aqui há uma visível preocupação com a permanência. Embora seja arriscado fazer qualquer previsão, a leitura de Fugalaça deixa a quase certeza de que sua atualidade se manterá por décadas.

Mayra Dias Gomes, enfim, estréia com um bom romance. Isso traz esperança para sua carreira. O desafio agora é manter o ritmo e a qualidade. E isso irá depender também das novas escolhas. Voltando à verborragia, fica a impressão de que todo universo da marginália que dá braços à jovem classe média alta foi esgotado neste primeiro texto.

Fugalaça
Mayra Dias Gomes
Record
287 págs.
Mayra Dias Gomes
Cresceu entre coxias de teatro, estúdios de televisão e eventos na Academia Brasileira de Letras. Começou a escrever por incentivo da família e, gradualmente, enquanto descobria sua paixão pelo rock’n’roll, foi despertando também a paixão pela literatura. Na adolescência escreveu colunas de rock e cinema para sites alternativos. Aos 17 anos, finalizou Fugalaça, seu primeiro romance.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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