Definir o gênero conto é tarefa das mais árduas. Dada a pluralidade de manifestações literárias reunidas em seu entorno, seria no mínimo ingênuo esboçar uma única definição. As teorizações são de tal modo variadas, que a célebre frase de Mário de Andrade — “Conto é tudo aquilo que o autor quiser chamar de conto” — apresenta-se como um tentador e bem-humorado subterfúgio aos mais precavidos. Uma via talvez menos pedregosa seja estudá-lo com base em algumas das características que o consagraram ao longo dos séculos. Entre elas, certamente uma das mais clássicas é o desfecho como o clímax da narrativa. Basta nos lembrarmos de A filosofia da composição, de Edgar Allan Poe, um dos mais cultuados contistas da literatura ocidental: “(…) todo enredo, digno desse nome, deve ser elaborado para o desfecho, antes de se tentar qualquer coisa com a caneta. É somente com o desfecho constantemente em vista que podemos conferir a um enredo seu indispensável ar”.
É na contramão desse princípio — e, por conseguinte, de toda uma legião de discípulos de Poe — que estão os contos de Anton Tchekhov. Ao empreender o mergulho na consciência individual das personagens e deste modo relegar o enredo a uma função secundária, o escritor russo abriu novos caminhos para o gênero. Virginia Woolf — para quem Tchekhov era “o analítico mais sutil das relações humanas” — manifestou sua admiração pela ruptura empreendida pelo autor de A dama do cachorrinho:
Mas este é o final? — nos perguntamos. Temos a sensação de que perdemos nossos sentidos; ou é como se a melodia tivesse parado sem os esperados acordes para concluí-la. Esses contos são inconclusivos, dizemos, e fazemos uma crítica com base na suposição de que os contos devem terminar de modo que reconheçamos. Ao fazermos isso, levantamos a questão sobre nossa própria condição de leitores.
Entre os grandes da literatura brasileira, Clarice Lispector é aquela cujos contos mais se assemelham à poética de tchekhoviana. Não raro em sua obra, mais vale o torvelinho interior deflagrado por acontecimentos exteriores do que a contribuição destes para o andamento da trama. Embora na maioria de seus contos a ação se concentre em um só episódio — característica clássica do gênero, segundo Julio Cortázar —, tal acontecimento instaura a ruptura do personagem com o mundo, efetuando um cisma na progressão do enredo. Como bem definiu Benedito Nunes, tais episódios são “momentos de tensão conflitiva”, ou seja, mergulhos na consciência individual que deslocam o eixo do conto para a dimensão vertical — subjetividade das personagens — a despeito da dimensão a horizontal — sucessão de ações exteriores.
Pensemos em Amor, conto cuja protagonista Ana tem sua vida comezinha subitamente desagregada após observar um cego mascando chicletes: o clímax da narrativa reside exatamente no abalo deflagrado pela cena; passado o ápice da tensão, caminhamos em pianíssimo para o desfecho, muito embora o conflito pareça apenas apaziguado:
Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem da bondade.
Pensemos ainda em Devaneio e embriaguez duma rapariga: os dados do mundo empírico lá estão, porém transfigurados pelos desvarios da personagem, isto é, mais valem enquanto projeções da consciência individual do que engrenagens a trabalharem para o devido curso da trama rumo ao clímax.
Tal característica remete-nos a Tchekhov. Em carta enviada a Aleksei Suvórin, amigo e editor do jornal russo Novo Tempo, onde publicara alguns de seus contos, Tchekhov comenta sua peça A gaivota: “Comecei-a forte e terminei em pianíssimo, contrariando todas as regras da arte dramática”. Ora, o final em pianíssimo nada mais é do que traço formal de sua predileção pelo universo subjetivo dos personagens em detrimento do andamento do enredo — daí ser recorrente quer nas peças, quer nos contos. Pensemos, por exemplo, no conto O bilhete premiado, cujo protagonista entrega-se a devaneios ante a possibilidade de ganhar na loteria; ou em O beijo, no qual o acanhado oficial Riabóvitch vê-se também inebriado após receber um misterioso beijo: em ambos o final se dá em pianíssimo, uma vez que o clímax da narrativa advém do movimento interior dos personagens.
Isto posto, julgamos ser pertinente analisar a poética do conto em Clarice à luz daquela praticada por Tchekhov. Para tal, deter-nos-emos na posição do narrador em dois dos exemplos citados: O beijo e Devaneio e embriaguez duma rapariga.
Objetividade da consciência subjetiva
“Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os elétricos, a estremecerem-lhe a imagem refletida.” A abertura do conto de Clarice nos insere de chofre na consciência individual da personagem. Mediante o uso do verbo “parecer”, essa frase já nos apresenta um mundo exterior transfigurado pela mente da portuguesa. Esse procedimento perdurará por todo o conto: o quarto é “suculento”; as etapas do dia são assim descritas: “A manhã tornou-se uma longa tarde inflada que se tornou noite sem fundo amanhecendo inocente pela casa toda”; a embriaguez é sinestésica: “E quando estava embriagada, (…) tudo o que pela própria natureza é separado um do outro — cheiro de azeite de um lado, homem doutro, terrina dum lado, criado de mesa doutro — unia-se esquisitamente pela própria natureza (…)”.
Muito embora ainda tenhamos um enredo “tradicional” com começo, meio e fim (o antes, o durante e o depois do jantar no sábado à noite), ele aparece em segundo plano, uma vez que o narrador onisciente está colado aos desvarios da personagem. Deste modo, podemos ainda falar de um narrador onisciente, porém sua objetividade não mais se aplica ao registro direto do mundo empírico, mas sim ao registro do movimento cambiante dos delírios da personagem.
Essa característica já estava presente nos primeiros contos de Tchekhov, conforme análise de Sophia Angelides: “(…) a valorização do procedimento construtivo, que se organiza em torno do comportamento do personagem, sem privilegiar especialmente a fábula; e a rejeição da subjetividade do autor no processo criativo, o que prenuncia a chamada objetividade, um dos princípios básicos de sua estética”.
Em O beijo isso é patente, muito embora a imersão na consciência do protagonista não ocorra de imediato. Todavia, essa diferença em relação ao conto de Clarice é-nos muito interessante para acompanhar a mudança da onisciência narrativa. Tal é a objetividade da abertura de O beijo, que mais parece estarmos diante de uma notícia de jornal: “Às oito horas da noite de 20 de maio, todas as seis baterias da brigada de artilharia da reserva sediada em N., que se dirigia para um acampamento, detiveram-se a fim de pernoitar na aldeia de Miestietchko”. Aqui temos ainda uma objetividade aos moldes daquela empreendida pelos realistas franceses do 19, uma vez que o narrador onisciente volta-se ao registro dos fatos do mundo exterior. E permanecerá entremeando diálogos e descrições de ambientes sob um ponto de vista alheio à consciência do oficial Riabóvitch até que este, a exemplo da portuguesa do conto de Clarice, vê-se sob o efeito inebriante da bebida. A partir de então, o narrador cola-se aos delírios do protagonista e a realidade exterior passará agora pelo filtro das impressões de Riabóvitch:
Ressoou o piano de cauda: uma valsa dolente voou da sala através das janelas completamente abertas (…). Riabóvitch, em quem sob o influxo da música, começou a manifestar-se o conhaque ingerido, olhou de viés para a janela, sorriu, começou a acompanhar os movimentos das mulheres, e teve a impressão de que o aroma das rosas, dos choupos e lilases não vinha do jardim, mas dos semblantes femininos e dos vestidos.
Sobretudo após o episódio do misterioso beijo, o mundo narrado é aquele transfigurado pelos devaneios de Riabóvitch. A partir de então, multiplicam-se as sinestesias; até mesmo os aspectos físicos que tanto incomodavam o personagem (tímido, curvado, incolor, corpo comprido e suíças de lince) desaparecem mediante graças ao súbito mergulho interior:
Acontecia-lhe algo estranho… O seu pescoço, que um instante atrás fora envolvido por braços macios, cheirosos, parecia-lhe untado com manteiga; sobre a face junto ao bigode esquerdo, onde fora beijado pela desconhecida, tremia um friozinho ligeiro, agradável, como de gotas de menta, e quanto mais ele esfregava o lugar, mais fortemente sentia o friozinho, e todo ele, da cabeça aos pés, estava repleto de um sentimento novo, estranho, que não cessava de crescer… Teve vontade de dançar, falar, correr para junto do jardim, rir alto… Esqueceu-se completamente de que era curvado e incolor, que tinha suíças de lince e um “físico indefinido”.
Deste modo, podemos dizer que em ambos os contos predomina a objetividade da consciência subjetiva, isto é, não se trata aqui de uma perda da objetividade, mas sim de um deslocamento: ao invés de aplicada à descrição da realidade empírica, ela passa a servir à representação dos desvãos da consciência individual dos personagens, sujeitando-se, assim, a toda sorte de associações, saltos temporais e transfigurações. Daí os desenlaces em pianíssimo, pois tanto em Tchekhov quanto em Clarice o clímax do conto está no ápice torvelinho interior dos personagens, e não mais no desfecho da fábula.
Trocando em miúdos, o clímax não mais sinaliza para a resolução do conto, mas antes contribui para a devida colocação do problema — a verdadeira tarefa do artista, conforme expôs Tchekhov em uma de suas cartas:
Ao exigir do artista uma atitude consciente em relação ao eu trabalho, você tem razão, mas confunde dois conceitos: a solução do problema e a colocação correta do problema. Apenas o segundo é obrigatório para o artista. […] Um tribunal é obrigado a colocar as questões corretamente, e que os jurados resolvam, cada um à sua maneira.
As tensões dos protagonistas de ambos os contos não são resolvidas no desfecho. Passada a embriaguez e a experiência do jantar, o peso do hábito volta à vida da portuguesa: resignada, resta a ela contemplar a lua (“Sentada no bordo da cama, a pestanejar resignada. A lua, que bem que se via a lua.”). Quanto a Riabóvitch, ante a impossibilidade de reencontrar aquela que o beijara, ou melhor, ante a impossibilidade de comunhão entre o mundo empírico e aquele aflorado em seus devaneios, resigna-se. Isso é evidente no desfecho, pois, diante de outro convite para uma festa — quiçá uma nova oportunidade para reviver aquela fantasia — Riabóvitch recusa-o: “(…) por pirraça ao seu destino, como que desejando fazer-lhe birra, não foi à casa do general”.