O xeque-mate de Marcus Vinicius Quiroga

Resenha do livro "O xadrez e as palavras", de Marcus Vinicius Quiroga
01/06/2009

Quem acompanha a carreira do poeta Marcus Vinicius Quiroga há de saber os incontáveis motivos que teriam levado o júri da 50ª edição do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, a conceder a O xadrez e as palavras o segundo lugar na categoria “Poesia”. Apesar da quase invisibilidade no mercado e nas livrarias, Quiroga vem publicando obras — todas premiadas — de grande unidade temática e estilística, marcadas por uma linguagem substantiva e cônscia de suas forças (“não há o que a linguagem esconda/ que ela própria não descubra”). Da soberba imagética à laboriosa estrofação, o verbo passeia, ainda, por uma polifonia rímica e variabilidade rítmica realizáveis por poucos em um mundo no qual o verso ainda não foi banido pelos modismos e pelo vale-tudo de boa parte das produções recentes.

Desde a orelha, somos avisados de que o livro consiste numa homenagem ao Barroco, “pérola irregular” em que se projeta o “homem em dúvidas, perguntas/ e o sentimento de ser duplo”. Se, por um lado, o livro alega-se contemporâneo na forma (de “vocabulário avaro”, “parco de palavras”) com que recupera tal estilo de época, por outro poderíamos cair no lugar-comum de associar literatura contemporânea à prática intertextual, como se, em algum momento da História, alguma escrita não carregasse o peso da tradição, mesmo para negá-la.

Todavia, o pleno domínio dos recursos da língua (nos quais “as palavras (…) alternam lugares pela sintaxe/ usam o vazio, a fresta da frase”), aliado ao conhecimento da história literária (da qual o poeta retira seus poemas “gregorianos” e se apropria da “matéria da Inconfidência”), a fim de produzir o efeito estético desejado, não está livre das armadilhas do formalismo. O tratamento retórico da linguagem pode se confundir com o tratamento poético (“a arte nada mais é que truque”, “nada mais é que tramóia”), na medida em que persuade e envolve tanto emocional quanto racionalmente o leitor, provocando o belo agradável, no qual, mediante a quebra da sua resistência psíquica, permitirá que a linguagem concretize a finalidade e eficiência que precederam a elaboração. Daí, em vez do elogio puramente formal, preferirmos celebrar a contemporaneidade das questões aqui encorpadas e de que todas as épocas são filhas: é a voz de um dos seus versos quem ratifica “a morte como se fosse outro lado, a dobra/ da vida”. Dessa dobra primordial, na tensão de vida-e-morte, adviria a possibilidade da experiência simultânea de ser e não-ser, do discernível e do indiscernível, do um e do duplo, da terceira margem que sempre terá sido a primeira: “o que é dito sempre se desdobra”; “e se desdobra em duplo espectro/ a repetir-se em variado leque”.

Através de uma dicção clara e precisa, Marcus Vinicius Quiroga dita a obscuridade e a imprecisão (“se nestes versos digo e desdigo”). Quanto mais vida se esclarece, mais o poeta apaga as luzes (“nas orientações ambíguas, de modo que se contradiga/ em toda e qualquer escrita”). Tentando desdobrar a existência e a poesia, dobra-as ainda mais (“Ah, mundo da escrita e dos enganos/ em tudo dito diz-se o contrário”). A todo momento, a palavra defende “o mundo posto em desordem”, “as cartas embaralhadas”, uma vez que “o mundo não se parece/ com números”, mas não cessa de culminar num trabalho ordenado, organizado e milimetricamente calculado (onde “o círculo dá a forma da leitura/ para que não haja fresta e fuga”), com as mais diversas escansões, embora, no penúltimo bloco, O poeta e a parábola, opte por “versos sem rigor de métrica”, “sem compasso ou esquadro”, como se a tentar cumprir, vez por todas, o rompimento da circularidade da vida e de seu estilo, proposta desde o início, no primeiro poema da obra: “mas a arte espera que a roda se rompa”.

Tais incoerências tornam esta poética ainda mais coerente, lúcida na loucura de um “homem preso às suas angústias”. A grandiosidade de Quiroga não está, sumariamente, na habilidade de dialogar com o barroco mediante todo o aparato retórico-formal de que dispõe, mas na questão de o autor, enquanto ser tomado pelo extraordinário, fazer-se Poeta: alguém vigorosamente possuído e atual, de modo que, em sua voz, Aleijadinho (“que ofertou seu corpo em partes/ e foi se retorcendo para ser/ ele a própria arte”) passe a ser cada um de nós e todos os artistas: “se a arte também aleija/ e se afasta de medidas,// (…) irregular se ergue, como quem se movimenta/ em calçamento de pedra”.

O xadrez e as palavras
Marcus Vinicius Quiroga
Edição do autor
99 págs.
Igor Fagundes

É poeta e crítico literário.

Rascunho