O vôo do mosca

Resenha do livro "Villa", de Luis Gusmán
Luis Gusmán, autor de “Villa”
01/01/2002

Villa era um mosca. Sem erros de concordância. Um sombra. Um braço direito, ou de ferro, como preferirem. Ficava ali, a rondar os jogadores de pôquer dos clubes de Avellaneda, uma cidadezinha argentina. Agitava os braços como se quisesse voar. Feito os insetos que emprestaram seu nome à função que desempenhava. Era um guarda-costas de políticos, empresários e artistas. Que nunca lhe deram valor, mas que também nunca lhe cobraram grandes atitudes.

Cansou de voar ao redor das mesas de jogo, no entanto. Preferiu arriscar manobras mais altas. Virou médico, em Buenos Aires. Mais por influência de Firpo, um “doutor” inteligente e classudo que praticava a medicina nas altas rodas do governo peronista, do que por vontade própria. A boa memória de Villa, dizia Firpo, garantiria sucesso nas provas da faculdade. E assim foi. Só que Villa virou um médico-mosca. Seria um mosca a vida inteira, não tinha jeito. Nunca quis ser chefe de nada e de ninguém. Preferia ser o braço direito do chefe. É mais confortável. Por isso, vivia à sombra de Firpo. Não se preocupava realmente com aquele juramento feito na Faculdade, de que iria tratar dos enfermos em qualquer circunstância. Missão praticamente divina, essa de poder curar.

Durante anos, era um dos primeiros a chegar ao consultório. Mas quase não atendia ninguém. Sua função era mais burocrática do que qualquer outra coisa. Mas não se incomodava muito. Preferia não ter a responsabilidade sobre a vida das pessoas. Essa que os médicos carregam de cuidar da vida dos outros. Gostava mais de voar por aí. Sempre seguindo os passos, um tanto cambaleantes, do velho Firpo.

Mas os anos 70, quando Villa era esse médico-mosca, eram agitados. Perón acabara de morrer, e um golpe de estado era iminente. A Argentina vivia uma crise tremenda. Pessoas desapareciam assim, sem mais nem menos. E moscas rondavam os vazios. Algo teria de ser feito. Mas não por Villa. Não. Ele estava em cima do muro. Como todo mosca que se preze. E iria ficar ali até o fim.

Villa, de Luis Gusmán, causou furor na Argentina, quando foi lançado. Retratava um período da história (da morte de Juan Perón, em 1974, até o golpe militar, dois anos depois) que poucos quiseram lembrar. Época de ditadura terrível. De angústias. Mas, embora traga muitas referências históricas, o livro de Gusmán não é um tratado sobre essa época sangrenta. É mais um romance psicológico. Mostra a transformação (muito singela, é verdade) do personagem principal, que dá nome à obra.

Villa passa de um mosca, como já foi dito, a um médico-mosca. Mas consciente das atrocidades que eram cometidas “a serviço do governo”. Era um médico do ministério do Bem-Estar Social argentino. Não fazia muita coisa, na verdade. Pelo menos não até passar a ser o doutorzinho preferido dos torturadores de plantão. Sua subserviência e seu relacionamento íntimo — e sobre o muro — com os poderosos garantiam seu empreguinho. Era um joão-bobo em mãos truculentas demais.

A descida de Villa ao inferno da tortura, do seqüestro e dos assassinatos, tônicas na Argentina pós-Perón (havia até pena de morte, na época, mas o governo preferia eliminar os “desagradáveis” na clandestinidade, mesmo), é contada sem muito floreio. Sem muitas crises. Até porque, o narrador é o próprio Villa. No início do livro, ele conta a história de Firpo, homem que vivia da paixão que sentia pela mulher (morta havia anos), sempre elegante. Tinha uma pequena cabeça de cavalo de ouro que lhe servia como prendedor de gravata. (Villa o roubou, quando o médico morreu. Guardou o enfeite como amuleto. Sem crises existenciais por ter se apropriado de um objeto do defunto). Gusmán diz que teve como modelo narrativo O Grande Gatsby, de Fitzgerald, em que um narrador conta indiretamente a história de Gatsby, que só aparece lá pela página 50 do romance. É mais ou menos isso.

Teve poucas crises de consciência, o Villa. Via gente morta o tempo inteiro. Não estava mais muito preocupado. Via gente que, por amor a uma causa, deixava-se esmigalhar. Gente que conheceu na infância, mulheres com quem trocou carícias… No começo, o estômago embrulhava. A vista embaçava. Mas um mosca sempre se acostuma com essas coisas. Voa sobre elas. Aprendeu até a esconder suas tarefas da mulher, a bela Estela Sayago, com quem se casou depois que a tia morreu. (Precisava, como dizia a velha parente, de uma mulher para tomar conta de sua vida. Pra lhe fazer o que comer, arrumar a casa e as roupas. E garantir um carinhozinho mais à noitinha).

Em um dos poucos momentos de crise, Villa escreve um relatório completo. Descreve o que viu, quem viu e em quais circunstâncias. Cita até nomes. De pessoas influentes, inclusive. E guarda num cofre, junto com a cabeça de cavalo de Firpo. Decide entregá-lo a um figurão governista. Mas o tal relatório é devolvido. Ninguém quer se envolver com uma coisa dessas… E a crise acaba por aí.

O livro não é uma obra-prima. Mas mostra a que veio. Principalmente para quem não conhece muito sobre a história argentina. Funciona, aí, como um pote de açúcar. Um chamariz para as moscas. Porque até dá vontade de fuçar nos livros de história para aprender um pouco mais sobre esse País, nosso vizinho. Ainda mais agora, que falar da Argentina está na moda.

Gusmán — Luis Gusmán começou a publicar livros na década de 70. Época difícil para a cultura argentina. De censura total. Muitos de seus livros foram proibidos. Sentiu o peso da censura já em seu primeiro romance, O Vidrinho, que foi considerado subversivo demais e retirado das prateleiras. Mas acabou virando um marco na literatura argentina. Gusmán também é autor de Brillos, A Roda de Virgílio, A Música de Frankie e En el Corazón de Junio.

Villa
Luis Gusmán
Iluminuras
205 págs.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho