O vôo de Faraco

Em Lágrimas na chuva, Sergio Faraco conta sua desastrosa estada na União Soviética dos anos 60
Sergio Faraco: “Pode ser que, futuramente, eu retorne ao conto e prove a mim mesmo que não sou um ficcionista decadente”
01/02/2003

Sergio Faraco detesta voar. Fez um esforço hercúleo para ir ao Rio de Janeiro receber o Prêmio Nacional de Ficção, concedido pela Academia Brasileira de Letras à antologia Dançar tango em Porto Alegre: melhor obra de ficção publicada no Brasil em 1998. Instalado no Hotel Glória, arejou os dissabores da viagem na mesa de sinuca. Nos momentos que antecediam a solenidade da premiação, foi apresentado a um acadêmico de currículo singular. O imortal elogiou a coletânea, mas reclamou da falta que lhe fizera um dicionário de termos sul-rio-grandenses para ajudá-lo a vencer a primeira parte do livro, justamente a que reúne os contos de caráter pampiano e carregados de expressões regionais. “Mas para ler a segunda e a terceira parte, o Aurelião lhe basta” foi o que ouviu como resposta, no sotaque forte de um alegretense de boa cepa e indignado com o fato de nunca ter ouvido alguém alegar que precisava de um dicionário paraibano, baiano ou mineiro para ler José Lins do Rego, Jorge Amado ou Guimarães Rosa. Ruborizaram-se ambos, e o que poderia vir a se tornar um profícuo relacionamento esfriou ali, de forma irreversível: o ex-ministro da Cultura Celso Furtado deu as costas ao premiado.

Esta e outras aventuras Faraco gosta de contar aos amigos, entre uma baforada e outra de L&M, num lugar cativo da Feira do Livro de Porto Alegre, de pé, junto ao pavilhão dos autógrafos. Os mais caros são sempre recebidos com um beijo — e beijo de macho talhado na mais fina ortodoxia gaudéria tem um significado sublime, que só os homenageados talvez saibam descrever.

Com o mesmo afeto que devota às amizades, Faraco trata o que produz. A frase é polida à exaustão, e o leitor o percebe ao não encontrar um excesso, uma aresta, sequer uma vírgula fora de lugar. Já se tornou lendária a gênese do conto Um dia de glória, cujo final demandou nada menos que vinte e cinco anos para se concretizar e para que Faraco o considerasse adequado. E refere-se aqui a três magras páginas, necessitadas apenas de um desfecho à altura da construção primorosa da história. Enquanto a solução não chegava, Faraco mantinha-se fiel em seu respeito à literatura (e a si mesmo) e não se apressava. Artista que é, sabe reconhecer o tempo exato e necessário à maturação de uma obra. Outra característica do escritor é continuar trabalhando o que já foi publicado, e seus pouco mais de 50 contos costumam ter diferentes versões em livro.

Inegavelmente o melhor está nos contos, e é neles que se concentra a maior parte da produção literária de Faraco — também cronista, ensaísta, tradutor, com passagens esporádicas pela narrativa longa não-ficcional. A um exímio contador de histórias, o gênero cai como luva. É com essa expectativa, à qual se agrega a curiosidade natural de ver como o autor se sairá numa experiência nova, até certo ponto inusitada, que se abre Lágrimas na chuva — uma aventura na URSS, relato autobiográfico de uma passagem desastrosa pela antiga União Soviética dos anos 60, a convite do Partido Comunista Brasileiro.

A memorialística é uma opção arriscada. Narrar a experiência pessoal quase nunca faz jus ao talento de um bom ficcionista, tanto mais quanto ele estiver envolvido emocionalmente com a trama. O fazer literário pressupõe um distanciamento crítico do universo narrado, via de regra incompatível com a narração da própria vida. Em outras palavras, um sentimentalismo inerente à condição humana e com quem a literatura se digladia encontra na autobiografia um terreno fértil para contaminar qualquer bom discurso. Exemplo que parece subverter a regra é o Quase memória, de Carlos Heitor Cony. Nesse quase romance — assim definido pelo autor —, a estratégia para driblar a armadilha é de uma simplicidade tocante: a ficção corrige o que a realidade tenta corromper.

Faraco alça vôo mais perigoso, pois na aventura russa o equilíbrio está baseado num distanciamento temporal: entre o vivido e sua publicação vão-se quase quarenta anos. Ele admite que chegou a fazer algumas tentativas anteriores, uma delas logo após o retorno ao Brasil, em 1965, que “não prosperou, talvez porque minhas emoções estivessem muito cruas e desordenadas”. Bingo! Autor de vasta erudição, Sergio Faraco já demonstrava na época ter cacife bastante para reconhecer o poder do inimigo. Agora, depois de tantos anos e de ter encontrado a cor certa na ficção, decidiu finalmente fazer a aposta.

Lágrimas na chuva — título colhido no filme Blade runner de Ridley Scott — foi inicialmente publicado sob forma de capítulos semanais no jornal A Notícia de São Luiz Gonzaga, interior do Rio Grande do Sul. A decisão de trazê-lo para livro demandou uma revisão minuciosa que, orientada pelo perfeccionismo do autor, equivaleu a uma reescritura. O relato segue o ordenamento cronológico. Começa em Blumenau, Santa Catarina, nos dias que antecedem a viagem, e termina com a volta ao Brasil, em plena ditadura militar. Cada capítulo é tratado à maneira de um conto individual, concorrência de dois fatores: a origem folhetinesca e a própria vocação de contista do narrador. O resultado dá o tom e o ritmo. Se difícil é abandonar a leitura depois de começá-la, fácil é imaginar o quão penoso para os primeiros leitores era esperar uma semana inteira pela continuação da história.

A estrutura também reflete um conceito singelo e muito pessoal de Faraco. Ele costuma comparar a tensão do discurso a uma corda que se estica: se no conto é desejado que ela se mantenha tensionada todo o tempo e assim exigindo ao máximo a participação do leitor, na prosa longa convém afrouxá-la em determinados momentos para que ele tenha tempo de respirar. Combinando com o ritmo ágil de Lágrimas…, o respiro aqui é concedido em doses homeopáticas e não menos encantadoras. As descrições inspiradas do Kremlin e do recital de Marlene Dietrich em Moscou são exemplos de que o grande contista tem competência de sobra para enfrentar as peculiaridades da novela e do romance, se um dia assim o desejar.

Destaque também é a construção das cenas, e o leitor atento reconhecerá pelo menos uma, por tê-la visto anteriormente, sob outra roupagem, em conto: num dos mais belos momentos do livro, o escritor (que na época, aos 23 anos, ainda não se havia confirmado como tal) socorre a menina armênia pronta a ser despejada de um velho ônibus, em plena estrada, pagando por ela a passagem que o motorista reclamava, para mais tarde receber a gratidão de um beijo encabulado. O trecho é ungido da mesma delicadeza dos textos que Faraco dedica à infância, e termina, como sói acontecer no bom conto, com o petardo certeiro em direção ao estômago do leitor.

Na mesma cena o narrador, hoje maduro, também acerta aquele aspirante a escritor e protagonista, ao refletir sobre a própria mesquinhez de ter esperado, aparentemente em vão, pelo agradecimento da criança. É o efeito óbvio da recriação da realidade para que Faraco possa narrá-la com um mínimo de visão crítica. Como diz a professora Léa Masina num brilhante ensaio sobre Lágrimas…, “o esquecimento, prolongado por anos, atuou sobre a experiência vivida, transformando-a em outra coisa: num simulacro da vida que, no entanto, possibilita o encontro fruitivo com a emoção original. Nesse ato, o leitor absorve o sentimento que obrigou o escritor a macerar suas lembranças e transformá-las em texto literário”.

Contudo, nem toda a perícia nem todo o zelo de Faraco garantiria o êxito se inexistisse uma trama consistente, convincente e que valesse a pena ser contada. Escrever com o objetivo de exorcizar os próprios fantasmas ou resolver dramas íntimos quase sempre resulta em suplício para o leitor incauto, desejoso, em última análise, de reconhecer seu escritor favorito em qualquer obra por ele assinada. Faraco novamente veste-se de audácia — porque é dos poucos que pode dar-se ao luxo de fazê-lo — ao narrar “a história que, durante anos, tive de sufocar como a um grito”. Mas a extraordinária descida do jovem simpatizante do comunismo aos porões, recém agora fechados, de um modelo que cativou bons quadros da intelectualidade brasileira não encontra paralelo em nossa literatura. E a aterrissagem de volta, em pleno e desconhecido regime de exceção, consegue a proeza de, mesmo sem ter sido contada, pôr no relato um tempero exclusivo e que merecerá, com toda a certeza, uma continuidade em livro.

A despeito de suas virtudes, o autor ainda arranja motivos pelos quais se penitenciar, e nessa penitência acaba demonstrando a maior das virtudes para o ofício que tanto preza: “aquilo que vi, num quintalejo de angústias terrestres, há de se perder no tempo pelos meus defeitos de escritor e não por ter deixado de narrá-lo”. A modéstia talvez o impeça de ver, mas lágrimas na chuva poderão se tornar as de outrem, não as nascidas num vôo de Sergio Faraco.

LEIA ENTREVISTA COM SERGIO FARACO

Lágrimas na chuva – uma aventura na URSS
Sergio Faraco
L&PM
171 págs.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho