O vertiginoso relâmpago

Novo livro de Ferreira Gullar é, em todas as partes, linguagem e vertigem
Ferreira Gullar, autor de “Em alguma parte alguma”
01/01/2011

Parece consensual a tese de que a arte do século 20 teve como principal diretriz a auto-reflexão. Se esse exercício não foi o maior em termos de importância e qualidade, ele foi inegavelmente o maior no que tange à quantidade. Com maior ou menor recorrência, autores de variadas vertentes puseram a linguagem artística no centro de suas obras, a fim de perceber-lhes os limites e divisar-lhes novas possibilidades.

Tal exercício justificava-se pela promessa de arejar o universo estético, mas houve tantas distorções que, contraditoriamente, a promessa também se cumpriu na forma de asfixiantes cubículos. Fique claro: aqui não se condena o metadiscurso, mas um inegável problema se instaura toda vez que uma virtude é viciada por se alardear como caminho único para uma verdade inquestionável. E os novos (falo mais uma vez a partir do que é mais comum) estão aí para demonstrar que agora, quando rebenta a segunda década do século 21, este hodierno tipo de arte pela arte mantém-se como forte tendência.

Mas igualmente entre nós estão os artistas incomuns, diante de um contexto a impulsioná-los à quebra dos arcaísmos da modernidade. E é belamente paradoxal que uma fonte de frescor de nossa literatura seja soprada pelos relâmpagos da obra de Ferreira Gullar, um octogenário de cabelos compridos, que com Em alguma parte alguma acende mais uma luz do chão, fazendo de sua arte um espaço de convivência ininterrupta entre a linguagem e a vertigem da poesia.

Intelectual de longa e sólida jornada, construída tanto no campo literário quanto no da crítica de arte, Gullar prova, mais uma vez, ser enganoso estabelecer que uma obra essencialmente reflexiva acerca de sua própria natureza não possa estender suas atenções para fatores da existência em geral. E mais: o poeta reafirma que a arte dotada de envergadura teórica pode ser, como a dele é, plena de perplexidades e de candura.

Nesse embalo, a escrita de Gullar é substantiva e substancialmente poética por, inicialmente, negar as convenções que robustecem a miséria humana: “Que a sorte me livre do mercado/ e que me deixe/ continuar fazendo (sem o saber)/ fora de esquema/ meu poema/ inesperado// e que eu possa/ cada vez mais desaprender/ de pensar o pensado/ e assim poder/ reinventar o certo pelo errado”, diz Off price. Aprofundando a rejeição ao que parece irrefutável, os poemas adensam a necessidade de derrubar as polarizações que interrompem a descoberta do novo e do inimaginável. Nisso, a sensibilidade do poeta leva-o a pôr em xeque as próprias convicções (ele é materialista), tema de O que se foi:

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi
é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

Em alguma parte alguma reforça a coesão da obra do autor de Poema sujo. Os galos, os jasmineiros, o gatinho de estimação, as ruas de São Luís e as bananas apodrecidas assinalam que Gullar conserva e reinventa a mão a cada livro, perscrutando o subsolo das coisas, escavando os subterrâneos de si próprio, ora pelo viés biofísico — “e outra pergunta:/ eu sou meu osso?/ ou somente a mente/ que a ele não se junta?” —, ora pelo da criação psicocultural: “Foi-se formando/ a meu lado/ um outro/ que é mais Gullar do que eu// que se apossou do que vi/ do que fiz/ do que era meu”.

Vale o dito o e não dito
O livro é dividido em quatro partes, e em sua abertura, apresenta o veio teórico, com o qual Gullar reforça uma idéia muito presente em seus discursos convencionais: o artista é sobretudo um inventor, conforme consta em Fica o não dito por dito: “por isso/ é correto dizer/ que o poeta/ não revela o oculto:/ inventa/ cria/ o que é dito/ (o poema/ que por um triz/ não nasceria)”. No texto pautado por ruminações acerca do poético, surge ocasião para o humor — “o poeta/ que grita/ erra/ e como se sabe/ bom poeta (ou cabrito)/ não berra” —, e nesse amálgama de maturidade e meninice, as palavras escorrem pelas páginas em envolvente bailado, despejadas pelo esvoaço dos cabelos:

é que só o que não se sabe é poesia

assim

o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente permite

O leitor familiarizado com a obra de Gullar encontrará neste lançamento muitos pontos de semelhança com o livro anterior, Muitas vozes, de 1999. Além da já aludida conciliação das reflexões mais especificamente literárias e mais amplamente mundanas, em ambas as obras espalham-se poemas em que o olhar do poeta capta esferas radicalmente distintas em suas dimensões e aparentes graus de importância.

No mesmo raio de visão, moldado por espanto e afeto, aparecem o cosmo, de hipérbole e silêncio, e a rua, diminuta e cravejada de ruídos. Isto é o eixo temático de toda a segunda parte do livro, objetivamente indicado em Registro — “À janela/ de meu apartamento/ à rua Duvivier 49/ (sistema solar, planeta Terra,/ Via Láctea)/ limpo as unhas da mão/ por volta das quatro e quarenta da tarde/ do dia 2 de dezembro de 2008/ enquanto/ na galáxia M 31/ a 2 milhões e 200 mil anos-luz de distância/ extingue-se uma estrela” — e finamente exemplificado por O tempo cósmico:

ente minúsculo
num braço da galáxia,
ouço dizer
que ela demora 250 milhões de anos
para fazer
um giro
completo
sobre seu eixo

e penso:
o homem existe há pouco mais
de 100 mil anos
é como se o giro da galáxia jamais se completasse

é como se ela não girasse

e que o diria esta mosca
— que na toalha da mesa
pousa agora —
cuja existência talvez dure
pouco mais que uma hora?

Crítica na poesia
A quarta seção não tem a mesma importância que as demais no conjunto. Entretanto, isso não significa que os dois poemas que a constituem sejam desinteressantes. Volta a Santiago do Chile marca o reencontro com a cidade em que Gullar passou por adversidades apavorantes, quando Augusto Pinochet protagonizou uma traição a Salvador Allende e disseminou uma onda de terror naquele país. Exilado político, o autor, que já havia relatado seus reveses no contundente Rabo de foguete, evoca a lembrança de um tempo em que sua vida quase foi dissipada pelo relâmpago negro das ditaduras sul-americanas: “O avião sobrevoa a cidade que/ apesar de tudo/ continua lá/ (a cidade que dentro de mim/ é incêndio e perda)”. Rainer Maria Rilke e a morte, a exemplo do anterior, fulge como o imprescindível poste da memória, agindo no resgate do que é condenado ao perecimento total: “E quando enfim se apagar/ no curso dos fenômenos este pulsar de vida/ quando enfim deixar/ de existir/ este que se chamou Rainer Maria Rilke (…)// resta-nos buscá-los nos poemas/ onde nossa leitura/ de algum modo/ acenderá outra vez sua voz”.

Se quarta parte não chega a ter maior ressonância no livro, apesar dos textos firmes que a compõem, algo diferente acontece com a terceira parte, consagrada a poemas contaminados por uma grande paixão de Ferreira Gullar: a crítica das artes plásticas. E como o livro e a obra do poeta maranhense desenvolvem-se em considerável unidade, reaparece a discussão centrada nos fenômenos artísticos, só que com novo matiz, caso de Figura-fundo, texto em tudo formidável: “a pintura, digamos,/ é mentira (…)// mas escute:/ o que é falso/ é a pêra que a pintura figura/ não a pintura (…)/ por que então/ não fazer/ em vez da pintura-pêra/ a pintura pura?”. O poeta se encarrega de responder, indiretamente manifestando sua contrariedade à banalização do vazio contemporâneo que se traveste de subversão. Como o tempo é de inversão de valores, Gullar reordena conceitos tradicionais para dizer, sem qualquer reacionarismo, que não convém descartar o passado, ao mesmo tempo em que manifesta a necessidade da beleza, da comoção e do encanto: “a verdade é que/ a fruta pintada/ não tem carnadura/ não se pode comê-la/ — é empaste, tintura/ na tela/ mas pode — e por isto —/ ser bela/ e, de outra maneira,/ verdadeira”.

Independentemente das posições que autores, críticos e leitores comuns tomem ao longo do progressivo contato com a literatura, parece comum a todos que ela passa a fazer parte de nossas vidas por ter posto alguma nuvem em nossos olhos. Seria ingênuo acreditar que outras épocas não tiveram alguns dos problemas que nos assolam hoje, mas prolifera-se atualmente um insuportável banalizar de tudo, e a alienação geral permite que se espetacularizem fatos bárbaros, fúteis ou mentirosos. Que o comprove a recente e grande farsa empreendida pelo governo e pela prefeitura do Rio de Janeiro e vociferada pelas emissoras televisivas, quando da ocupação de uma favela carioca por agentes de segurança pública. Por isso, mais do que nunca a poesia se torna necessária, como é necessário que, por mais recriada e questionadora, ela não deixe de trazer consigo os elementos fundamentais que há séculos a essencializam, como a capacidade de emocionar a razão e de denunciar a cegueira emotiva, pondo cada coisa fora de seus devidos lugares.

Por isso é tão importante ler Ferreira Gullar, para que com sua poesia voltemos os olhos às estrelas e o pensamento ao que se esconde por detrás delas. É fundamental que nos deseduquemos quando a ordem for sufocante, e que nos reeduquemos no momento em que o desleixo perde a espontaneidade e a razão de ser. É, portanto, imprescindível ouvir o vertiginoso relâmpago despachado pela explosão azul das galáxias ou pelo silêncio inquietante do jasmim, para assim experimentarmos a sublimação que nos deixa afastados e íntimos da vida, que pulsa iridescente nas veias e no riso do corolário do maior poeta brasileiro:

Em algum lugar
esplende uma corola
de cor vermelho-queimado
metálica

não está em nenhum jardim
em nenhum jarro
da sala
ou na janela

não cheira
não atrai abelhas
não murchará

apenas fulge
em alguma parte alguma
da vida

LEIA ENTREVISTA COM FERREIRA GULLAR

Em alguma parte alguma

Ferreira Gullar
José Olympio
144 págs.
Ferreira Gullar
Nasceu em São Luís (MA), em setembro de 1930. É um dos principais poetas da literatura brasileira. Também se dedica à crônica e à crítica de artes plásticas. Em sua obra, destacam-se A luta corporal e Poema sujo. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho