Certos romances, pelo enredo que apresentam ou pelo perfil dos personagens que contêm, parecem endereçar-nos a uma leitura de cunho social, como se a sua razão de ser se esgotasse na interpretação e na análise crítica de um determinado contexto histórico. Mas há que ir com cuidado; em literatura, as coisas nem sempre são o que parecem e, entre as diversas leituras possíveis de um texto, por vezes a menos óbvia se revela a mais fecunda. Vejamos o caso de Quem será contra nós?, romance de estreia de Sílvia Paiva Ramos.
Ambientada numa fazenda do interior de Minas Gerais, onde cerca de trezentos membros da seita “Cristo a Palavra que Salva” trabalham em regime de escravidão, a narrativa descreve — pelo olhar da protagonista, Cristina — um cenário de profunda miséria humana. Cristina chegou ainda menor de idade à fazenda, acompanhada de seus pais, que haviam sido cooptados num momento de dificuldade pelo pastor Alfredo. Como as demais famílias que integram a seita, entregaram a ele todos os seus bens e passaram a “plantar o de comer na paz de Cristo, renunciando ao mundo de vícios, da luxúria, do consumo vaidoso e da escuridão, para viver em harmonia e alcançar a salvação”.
Apesar da cegueira provocada pelo fanatismo religioso, nem tudo está perdido. Cristina identifica possibilidades de escapar, de voltar à sua cidade e reconstruir a vida. Há outros membros da seita que já entenderam haver sido vítimas da instrumentalização de sua fé e querem reaver o que entregaram, antes de ir embora. Além disso, a “justiça dos homens” investiga o pastor, busca as provas para o veredito do processo que visa comprovar a verdadeira natureza do que ocorre na fazenda.
Pois bem, resumida a trama do romance, voltemos ao ponto de partida e reconheçamos que seria natural vermos o que se passa no interior da seita como um microcosmo do mundo atual, com multidões vivendo na crença de fake news e dispostas a seguir líderes que mentem de forma programada, mesmo quando suas mentiras são desmascaradas. Natural também seria que tal leitura nos levasse a considerar Quem será contra nós? um livro que denuncia novas formas de escravidão e exploração, novos métodos de dominação bastante eficazes num mundo governado pela pós-verdade. E tudo isso estaria correto, aliás, corretíssimo.
No entanto…
Fé na literatura
No entanto, não daria conta de evocar a alma de um livro escrito com profunda devoção e fé na literatura. E, se evitássemos essa tarefa, estaríamos pecando por omissão, porque o sopro vital desse romance está em sua alma: é ela que condiciona todo o corpo do texto. Tal esforço de evocação pode ser feito de inúmeras formas, das quais a mais simples seja talvez buscar a compreensão do todo por meio da parte e da parte por meio do todo.
Partindo do todo, há que dizer de início que o fanatismo, o delírio persecutório e a paranoia da seita guardam certa proximidade com o texto ficcional. Em outras palavras, a ambientação do romance favorece a infiltração do discurso literário no fluxo de pensamento da protagonista. Um fluxo que, por sinal, mistura com muita habilidade as dimensões temporais da narrativa, entrelaçando flashbacks e expectativas futuras ao tempo presente. Os flashbacks têm ainda a função de fornecer ao leitor a revelação das circunstâncias que levaram a família de Cristina a aderir à seita e da culpa que a protagonista carrega pela responsabilidade que teve na decisão de seus pais.
Além desse papel-chave na condução do ritmo da narrativa, o tempo desempenha ainda outra função essencial na lógica interna do romance, ao apresentar-se — reificado — como resposta à pergunta que dá título ao livro.
Alguém consegue ver que essa certeza em Deus não ajuda em nada, que o tempo sempre estará contra nós?
Mas a ambientação de Quem será contra nós? não se resume à atmosfera delirante do fanatismo religioso. Ela é composta também por diversos outros elementos, dos quais caberia destacar o cromático, onde, graças à insistência acertada da autora, o amarelo e o vermelho se alternam e, quando se misturam, oferecem diversos tons de marrom. Se, em certas divagações de Cristina, a combinação de cores beira o abstrato, em outras oferece cenas hiper-realistas, como no trecho em que, enquanto lava a toalha manchada com o sangue de sua mãe, a protagonista é consolada por uma companheira de seita:
Efigênia chega, me vê debruçada, segurando na borda da louça, a água cor de rosa quase entornando (…)
Me concentro na água baixando, quero que Efigênia recue, que não me embarace com seu conforto decorado, que não se esforce para dizer o que pode ser dito em qualquer tragédia, quero que finja em silêncio que entende que sofro diferente dos outros, que minhas razões são maiores.
Outro componente marcante do romance é a presença constante de aracnídeos e insetos, que povoam não somente o cenário da narrativa, mas também os corpos de alguns personagens. E, além de tudo, são objeto do interesse de Cristina e de Júlia, a jovem filha dos donos da fazenda vizinha, por quem a protagonista desenvolve uma fantasia sensual. Essa presença de insetos é apenas um dos pontos que evocam deliberadamente o universo kafkiano, presente ainda no processo real contra o pastor e no processo imaginário contra Cristina, bem como em suas tentativas infrutíferas de entrar e sair de determinados espaços. Sem mencionar o jogo de letras entre personagem e autora, materializado no detalhe de que o nome da protagonista possui as mesmas vogais do da autora.
De qualquer forma, todo esse amplo trabalho de ambientação da obra e de construção de uma atmosfera fortemente literária teria sido em vão se não estivesse ancorado na parte, ou seja, na unidade mínima do romance — a frase. Quem será contra nós? é um romance de frases esculpidas com precisão na matéria amorfa das ideias, e Sílvia Paiva Ramos é uma autora que escreve como quem reza, com total entrega e devoção à literatura. Em alguns trechos, ecoa a voz de Raduan Nassar; Sílvia planta e colhe em terrenos férteis. Mas, além de arcaica, a sua lavoura é também de revezamento, alternando referências e cultivando diferentes registros, na melhor tradição que conduz à Palavra que salva…
Quem poderá resistir à força do seu Verbo?
Quem será contra ela?
Não, certamente, os fiéis à literatura.