O verbo como resistência

O romance "Quem será contra nós?", de Sílvia Paiva Ramos, reafirma a literatura como espaço de combate à opressão e ao fanatismo
Sílvia Paiva Ramos, autora de “Quem será contra nós?”
01/09/2025

Certos romances, pelo enredo que apresentam ou pelo perfil dos personagens que contêm, parecem endereçar-nos a uma leitura de cunho social, como se a sua razão de ser se esgotasse na interpretação e na análise crítica de um determinado contexto histórico. Mas há que ir com cuidado; em literatura, as coisas nem sempre são o que parecem e, entre as diversas leituras possíveis de um texto, por vezes a menos óbvia se revela a mais fecunda. Vejamos o caso de Quem será contra nós?, romance de estreia de Sílvia Paiva Ramos.

Ambientada numa fazenda do interior de Minas Gerais, onde cerca de trezentos membros da seita “Cristo a Palavra que Salva” trabalham em regime de escravidão, a narrativa descreve — pelo olhar da protagonista, Cristina — um cenário de profunda miséria humana. Cristina chegou ainda menor de idade à fazenda, acompanhada de seus pais, que haviam sido cooptados num momento de dificuldade pelo pastor Alfredo. Como as demais famílias que integram a seita, entregaram a ele todos os seus bens e passaram a “plantar o de comer na paz de Cristo, renunciando ao mundo de vícios, da luxúria, do consumo vaidoso e da escuridão, para viver em harmonia e alcançar a salvação”.

Apesar da cegueira provocada pelo fanatismo religioso, nem tudo está perdido. Cristina identifica possibilidades de escapar, de voltar à sua cidade e reconstruir a vida. Há outros membros da seita que já entenderam haver sido vítimas da instrumentalização de sua fé e querem reaver o que entregaram, antes de ir embora. Além disso, a “justiça dos homens” investiga o pastor, busca as provas para o veredito do processo que visa comprovar a verdadeira natureza do que ocorre na fazenda.

Pois bem, resumida a trama do romance, voltemos ao ponto de partida e reconheçamos que seria natural vermos o que se passa no interior da seita como um microcosmo do mundo atual, com multidões vivendo na crença de fake news e dispostas a seguir líderes que mentem de forma programada, mesmo quando suas mentiras são desmascaradas. Natural também seria que tal leitura nos levasse a considerar Quem será contra nós? um livro que denuncia novas formas de escravidão e exploração, novos métodos de dominação bastante eficazes num mundo governado pela pós-verdade. E tudo isso estaria correto, aliás, corretíssimo.

No entanto…

Fé na literatura
No entanto, não daria conta de evocar a alma de um livro escrito com profunda devoção e fé na literatura. E, se evitássemos essa tarefa, estaríamos pecando por omissão, porque o sopro vital desse romance está em sua alma: é ela que condiciona todo o corpo do texto. Tal esforço de evocação pode ser feito de inúmeras formas, das quais a mais simples seja talvez buscar a compreensão do todo por meio da parte e da parte por meio do todo.

Partindo do todo, há que dizer de início que o fanatismo, o delírio persecutório e a paranoia da seita guardam certa proximidade com o texto ficcional. Em outras palavras, a ambientação do romance favorece a infiltração do discurso literário no fluxo de pensamento da protagonista. Um fluxo que, por sinal, mistura com muita habilidade as dimensões temporais da narrativa, entrelaçando flashbacks e expectativas futuras ao tempo presente. Os flashbacks têm ainda a função de fornecer ao leitor a revelação das circunstâncias que levaram a família de Cristina a aderir à seita e da culpa que a protagonista carrega pela responsabilidade que teve na decisão de seus pais.

Além desse papel-chave na condução do ritmo da narrativa, o tempo desempenha ainda outra função essencial na lógica interna do romance, ao apresentar-se — reificado — como resposta à pergunta que dá título ao livro.

Alguém consegue ver que essa certeza em Deus não ajuda em nada, que o tempo sempre estará contra nós?

Mas a ambientação de Quem será contra nós? não se resume à atmosfera delirante do fanatismo religioso. Ela é composta também por diversos outros elementos, dos quais caberia destacar o cromático, onde, graças à insistência acertada da autora, o amarelo e o vermelho se alternam e, quando se misturam, oferecem diversos tons de marrom. Se, em certas divagações de Cristina, a combinação de cores beira o abstrato, em outras oferece cenas hiper-realistas, como no trecho em que, enquanto lava a toalha manchada com o sangue de sua mãe, a protagonista é consolada por uma companheira de seita:

Efigênia chega, me vê debruçada, segurando na borda da louça, a água cor de rosa quase entornando (…)

Me concentro na água baixando, quero que Efigênia recue, que não me embarace com seu conforto decorado, que não se esforce para dizer o que pode ser dito em qualquer tragédia, quero que finja em silêncio que entende que sofro diferente dos outros, que minhas razões são maiores.

Outro componente marcante do romance é a presença constante de aracnídeos e insetos, que povoam não somente o cenário da narrativa, mas também os corpos de alguns personagens. E, além de tudo, são objeto do interesse de Cristina e de Júlia, a jovem filha dos donos da fazenda vizinha, por quem a protagonista desenvolve uma fantasia sensual. Essa presença de insetos é apenas um dos pontos que evocam deliberadamente o universo kafkiano, presente ainda no processo real contra o pastor e no processo imaginário contra Cristina, bem como em suas tentativas infrutíferas de entrar e sair de determinados espaços. Sem mencionar o jogo de letras entre personagem e autora, materializado no detalhe de que o nome da protagonista possui as mesmas vogais do da autora.

De qualquer forma, todo esse amplo trabalho de ambientação da obra e de construção de uma atmosfera fortemente literária teria sido em vão se não estivesse ancorado na parte, ou seja, na unidade mínima do romance — a frase. Quem será contra nós? é um romance de frases esculpidas com precisão na matéria amorfa das ideias, e Sílvia Paiva Ramos é uma autora que escreve como quem reza, com total entrega e devoção à literatura. Em alguns trechos, ecoa a voz de Raduan Nassar; Sílvia planta e colhe em terrenos férteis. Mas, além de arcaica, a sua lavoura é também de revezamento, alternando referências e cultivando diferentes registros, na melhor tradição que conduz à Palavra que salva…

Quem poderá resistir à força do seu Verbo?

Quem será contra ela?

Não, certamente, os fiéis à literatura.

Quem será contra nós?
Sílvia Paiva Ramos
Reformatório
245 págs.
Sílvia Paiva Ramos
Nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1976. Formada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), é juíza de direito e estreou como romancista em 2025 com Quem será contra nós?, uma obra inspirada em fatos reais que explora a manipulação da fé em um contexto rural mineiro.
Milton Coutinho

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1966. É escritor e diplomata. Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade de Barcelona. Autor de volumes de contos e romances, dos quais o mais recente é Autobiografia Póstuma de Machado de Assis (2024, 7Letras).

Rascunho