O romance mais recente da irlandesa Sally Rooney, Belo mundo, onde você está, não é agradável de se ler. Na verdade, até mais ou menos a metade da trama, é tedioso. Nada parece acontecer com as duas protagonistas, Alice e Eileen. Suas vidas giram num círculo vicioso de satisfação — sexual, geralmente — e insatisfação, seja com o trabalho, com os amigos, com o relacionamento ou mesmo com o mundo em geral. A sensação de vazio permeia cada capítulo e as intercalações entre as personagens não mudam muito o sentimento, já que a despeito de viverem em cidades diferentes, terem empregos diferentes e amores diferentes, elas são igualmente tristes. De certa maneira, suas vidas emulam bem o público ao qual o livro é destinado: uma classe média global, com ensino superior — em alguns casos com pós-graduação —, em torno dos 30 anos, incapaz de lidar com a vida adulta.
O livro é estruturado em capítulos alternados entre suas protagonistas, com um relato de e-mail entre eles. Primeiro vemos Alice em um encontro no Tinder com Félix e depois temos ela relatando algo para Eileen. Então é a vez de Eileen aparecer de madrugada na casa de Simon, amigo de infância e eterno caso amoroso, e termos suas digressões por e-mail. É nessa troca de relatos que as protagonistas elaboram seus sentimentos, sejam de raiva, solidão, alegria, inveja ou mesmo elucubrações espertas sobre aquecimento global, fascismos, desigualdade social e relacionamentos amorosos. Não dá para dizer que a ferramenta funciona bem, até porque é inverossímil o uso do e-mail enquanto parte de uma narrativa epistolar em 2021 tendo as protagonistas acesso a todo e qualquer tipo de rede social em seus celulares, mas é a forma encontrada por Rooney para dar às suas personagens uma forma de refletir e extravasar.
Num desses e-mails, lá para o meio da história, Alice escreve:
As pessoas da nossa idade se casavam e tinham filhos e casos, e agora todo mundo continua solteiro aos trinta e vive com colegas que nunca encontram. O casamento tradicional obviamente não cumpria o objetivo, e quase infalivelmente terminava em um tipo ou outro de fracasso, mas pelo menos era um esforço em prol de alguma coisa, e não uma mera exclusão triste e estéril das possibilidades da vida.
No e-mail em resposta, Eileen diz:
Quando tento imaginar o que seria para mim uma vida feliz, percebo que a imagem não mudou muito desde que eu era menina — uma casa rodeada de flores e árvores, um rio próximo, uma sala cheia de livros e alguém para me amar, só isso. (…) Jamais me mudar, jamais embarcar em um avião de novo, só viver sossegada e depois ser enterrada na terra. De que mais serve a vida?
De nada, ao que parece.
O que resta?
O título do livro ratifica a percepção da personagem ao perguntar onde está o belo mundo, porque ele de fato não existe em momento algum. É interessante notar como Rooney capricha nas descrições detalhadas: ao invés do celular apitar de manhã, “às seis e quarenta e cinco da manhã, o despertador (…) tocou, um bipe repetitivo e monótono”. O tempo de espera na fila do trabalho se transforma em “oito minutos na fila de segurança [que fazem Felix sair às] sete e treze da noite”. Se em outras obras essa hiperdescrição tenta encontrar o lirismo nos atos do dia a dia, aqui é o resultado é diferente: o cotidiano não é bonito, não é feio, não é nada na verdade. Ele só é.
Isso acontece por toda a trama, independente de personagem. Eileen vai em rodas de poesia, discute o Brexit no aniversário de um amigo, mexe nas suas redes sociais — que ora tem nome, ora são genéricas —, mas esses afazeres são apenas pedágios da vida adulta. O que é importante, o que realmente importa, acontece entre quatro paredes quando ela está com Simon. O mesmo vale para Alice com Félix, já que a sua carreira de romancista de sucesso se torna um mero detalhe frente às possibilidades com um rapaz do interior que não sabe quem ela é e pouco se importa com sua trajetória profissional e pessoal, mas que surge madrugada adentro querendo transar.
Em dado momento, já para os finalmente da história, quando os quatro personagens estão juntos há um tempo, Simon desabafa para Félix que embora ele trabalhe com causas sociais, se envolva com política, queira de fato um mundo melhor, ele passa boa parte da vida devotado a isto, ou seja, à Alice e Eileen, às mulheres, ao amor. É uma afirmação que corrobora talvez o grande tema do romance: o vazio que o fim das instituições tradicionais trouxe aos recém-adultos. Na falta do trabalho, da religião organizada, da família, a única coisa que restou a toda uma geração é tão somente o amor romântico. E essa geração, que vive entre a ansiedade e a depressão, entre o medo e o desejo, não sabe o que fazer sobre isso.
Escolhas
O clímax da história acontece bem ao fim, num dos últimos capítulos. É quando Alice e Eileen discutem de forma mais áspera, uma atacando a outra onde dói. Com o impasse, as duas se retiram, cada qual ficando com seu respectivo par amoroso. Simon e Félix, os coadjuvantes aqui, importam menos para a história por serem personagens complexos e mais pelo que representam de oportunidade de vida. Simon é um homem alto, bonito, engajado, de esquerda e católico. Félix é um trabalhador braçal do interior, órfão, pouco afeito a questões sociais e culturais, propício a vícios em drogas lícitas e ilícitas e bissexual. Um representa o antigo, o outro representa o novo. Um é o resgate ao passado convencional do matrimônio, o outro é fluidez líquida e niilista do futuro.
Essas representações são escancaradas nas cenas finais. Simon acolhe Eileen, desaguando todo o seu amor entre um abraço e um enxugar de lágrimas. Não é o que faz Félix. Ele faz perguntas indiscretas à Alice, deixa claro até onde vai sua compreensão e apoio e quando ela ameaça um suicídio, ele retruca “eu já senti isso e não fiz nada e você também não vai fazer”. Ao fim, as duas se esbarram nas escadas da casa onde estão e se abraçam. Não há mais diferença entre elas e talvez seja esse o ponto: para todos os efeitos, Alice e Eileen são o mesmo personagem. O que as difere é a forma como encontram para se situar num mundo onde não há norte a ser seguido, felicidade a ser encontrada, sentido a ser vivido.
Eileen escolhe o convencional. Em seu último e-mail, sabemos que ela e Simon estão num relacionamento estável — ainda que sem casamento à vista —, com uma criança a caminho. A maternidade é para onde ela decide rumar. Alice também engata uma relação mais estável com Félix, a quem agora chama de companheiro, o termo pós-moderno para uma relação amorosa, única concessão possível para o amor desinstitucionalizado. Ela mantém sua escrita e suas viagens como o caminho a ser trilhado. Não há nenhum senso de amor genuíno em ambos os casos, diferente do que acontece em Pessoas normais, o grande romance de Rooney até aqui.
O que parece haver é a necessidade de algo para chamar de seu, o que quer que seja. Do tédio inicial que o livro trouxe, o que Rooney consegue ao fim é descrever com precisão a vida atual do millennial. Do adulto que ainda se sente jovem, que ainda se trata e também trata os outros por substantivos infantis como menina e menino, de toda uma geração que chegou à vida adulta achando que ela seria muito diferente do que na verdade é. O belo mundo não está em lugar algum e entender isso parece ser a grande questão.