Em estudo sobre a obra poética de Pablo Neruda, Davi Arrigucci Jr. afirma, relacionando-se ao trabalho de toda uma vida do escritor chileno: “Uma fecundidade quase incrível na tradição dominante da poesia moderna que, desde Mallarmé, negaceia o esquivo, o escasso, o difícil, sempre à beira do poço fundo do silêncio, de onde o poeta tantas vezes apenas alça a própria esterilidade, convertida já em motivo do canto”.
É freqüente, tanto na prosa quanto na poesia da América Latina a presença avassaladora do silêncio e dos espaços em branco. De Octavio Paz a Juan José Saer, de Drummond a Fabrício Carpinejar, passando por Borges, Ocampo, Arguedas, Llosa, João Cabral de Melo Neto e Cecília Meireles. Estas lacunas marcam, na veia poética do continente, ausências mais profundas, fomes de moradia e de comida, dores de assassínios e de negociatas do senador da república ao policial da esquina.
Mariana Ianelli, em seu novo livro de poemas, de título mais que sugestivo — Fazer silêncio —, trabalha as ausências com pulso de poeta madura, apesar de muito jovem ainda. Há no livro uma incessante busca por algo que se foi, algo que até mesmo ainda não aconteceu e, nessa procura sem fim, surgem imagens poéticas de notável beleza; vez por outra, surgem formas imagéticas assustadoras que nos perseguem como o pior dos pesadelos, daqueles que algumas pessoas têm repetidamente, sem descobrir, exatamente, de onde surge tal terror. A autora tenta definir de muitas formas essa ausência, como por exemplo: “Por enquanto, só esta música, esta água./ E um certo mal-estar que não se explica,/ O vazio de nos sentirmos perdoados.”
Imbricado com nossa história pública vêm os amores privados. Não sabemos exatamente o que nos descaracteriza como nação e o pesadelo é inevitável. No livro de Mariana, há guerreiros com espadas em punho, pobres andarilhos a tentar compreender o que se passa ao seu redor, mulheres e homens convictos de convicções duvidosas.
Há vaticínios de uma impossibilidade de realização: “Nada é tão grande sob o céu/ Que possa evitar a nossa derrocada”; há um “sentimento antigo” que não nos abandona: “Fomos feitos para a solidão/ A mesma que sente um animal/ Ao largar o seu rebanho”; há definições do que seria o amor: “O amor se apressa, se desespera/ Trágico de tanta alegria./ Por ele surge o escarlate/ E o lastro do estandarte sob a terra./ Por ele se abre e se desfolha a tua rosa/ No vento arauto das despedidas”.
Mariana Ianelli trava um diálogo profícuo com a tradição, dá mostras de conhecer vastamente o que se fez em versos até sua própria intervenção, o que enriquece ainda mais o trabalho. Do título de um dos poemas que remete a Bandeira (Estrela da terra) a versos que nos levam pela mão aos Lusíadas ou à Mensagem de Pessoa (“Que haja para certos varões certos mares,/ Para determinadas mortes/ Haverá determinadas idades”), há marcas de uma também solidão que nos constituiu poeticamente. Há também pontos de intersecção com poetas como Robert Frost, pensando em The road not taken, extraordinário escritor norte-americano quase desconhecido no Brasil (“Entre as distâncias possíveis,/ Queremos ir pela esquerda, ir pelo desvio:/ Eis como nos iniciamos/ Nesta viagem desconhecida”). Estes paralelos estabelecem um diálogo vasto e contínuo ao longo de todo o livro, permitindo ao leitor anotar posições assumidas pela autora e situá-la no universo poético que nos é familiar.
No poema O embate, um jogo de posições bélicas entre dois guerreiros pode ser lido também como os movimentos simulados e verdadeiros dos lidares amorosos. Drummond já afirmara em versos: “dois amantes o que são: dois inimigos”. E aqui, ao longo de todo o texto, confrontam-se, duelam, examinam-se, afastam-se, tornam a investir um contra o outro e concluem a contenda nos seguintes dizeres de Mariana: “Mas não se matam, sequer se avistam:/ Amam-se com o louco amor dos foragidos”.
O silêncio do título atravessa o volume de ponta a ponta, com nuanças diversas, aspectos vários que vão posicionando o leitor e o colocando de frente com sua própria solidão. Em Da natureza, lê-se: “Com o sacrifício do silêncio/ Que enobrece tudo o que toca,/ Te recebi nos braços abertos/ Do meu tumultuado pensamento/ E o tumulto se dissolveu”. De muitas formas, o silêncio reina: separando, criando elos, cavando abismos, iluminando descobertas. A poeta diz: “Num futuro imprevisível, a vida enfim terá seu preço,/ O brilho de sua filosofia autêntica/ E o patrimônio de uma felicidade/ Não inteiramente estúpida, nem inteiramente sábia”.
Neste universo de carências e exacerbações, será que não é isto mesmo que almejamos, uma felicidade nem de todo estúpida, nem de todo sábia? Os versos de Mariana Ianelli podem ajudar — ou piorar em muito, quem sabe — a tomada de rumo em direção a uma felicidade possível, num tempo outro que não nos pertence, num espaço inimaginável que já não nos abriga.