Viagem à sintese
Dedicando-se sempre ao conto, praticado segundo um estilo pessoal, Dalton Trevisan (Colombo – Paraná, 1925) pode ser considerado o maior contista brasileiro de todos os tempos. Avesso desde sempre à mídia, morador da periferia política e cultural, ele se tornou um personagem de sua obra, escondendo-se de fotógrafos, jornalistas e leitores curiosos em geral. Esta falta de visibilidade tanto em Curitiba quanto no resto do Brasil lhe permitiu viver numa outra dimensão, numa cidade que mantém vivos personagens, geografia e linguagens dos anos 40, 50 e 60, que entram em choque com as novas realidades.
Trevisan atingiu sua maioridade literária dirigindo uma das mais importantes revistas culturais brasileiras do século 20, a legendária Joaquim (1946-1948 – edição fac-similar: Imprensa Oficial do Paraná, 2000), que criou um modelo para as revistas jovens que passaram a surgir em praticamente todos os cantos do país. O nome era uma homenagem a “todos os joaquins do Brasil”, ou seja, à gente simples, centro da obra de Trevisan. Conjugando um aspecto gráfico extremamente ousado (aproveitando o trabalho dos mais renomados artistas brasileiros da época, de Di Cavalcanti a Poty) e textos modernos e revolucionários, Joaquim projetou Trevisan no centro do campo literário e funcionou com um laboratório para suas experiências narrativas da busca de uma síntese altamente elíptica. Joaquim expressava um saudável desejo jovem pelo novo e pelo universal — visível, por exemplo, nas traduções de textos de Joyce, Virginia Woolf, Sartre, Camus, T. S. Eliot, etc.
A produção deste período e dos dez anos seguintes apareceu em Novelas nada exemplares (Rio de Janeiro: José Olympio, 1959), seu livro de estréia nacional, onde estão latentes as tensões entre a província e o mundo. Os seres sem espessura histórica desta Curitiba parada no tempo vivem, numa solidão extrema, um exílio forçado. Sem conseguir assumir a sua heroicidade, os personagens passam a figurar como caricaturas de personalidades históricas ou literárias. A província acaba sendo vista como um lugar da cópia degradada, onde nos resta a tragicômica paródia da grande existência.
Esta tensão vai sofrer pequenas variações nos dois livros seguintes (Cemitério de elefantes e Morte na praça, ambos de 1964), revelando os conflitos entre o meio rural, ainda presente na cidade, e a nova realidade urbana, a caminho da despersonalização. Ainda é a capital do Paraná a grande personagem de Mistérios de Curitiba, coletânea que desvela os dramas de uma realidade de muros apertados, e de O vampiro de Curitiba (1965), leitura paródica e erótica de um vampiro decaído. É com este título que Dalton consolida sua geografia literária, sempre vista a partir de tipos provincianos, e que vai ficar marcada, deste ponto em diante, pela sexualidade. No rastro de O vampiro de Curitiba surgirá uma série de livros de contos que mantêm vasos comunicantes entre si e tratam dos relacionamentos eróticos, dentro e fora do casamento, configurando esta nova fase do autor. Sob estes títulos, Trevisan agrupará narrativas que se estendem de um livro para outro, cifrando as tensões da nova cidade, em que os cabarés começam a perder espaço com a liberação sexual. Compõem este grupo os volumes de contos: Desastres do amor (1968), A guerra conjugal (1969), Rei da terra (1972), O pássaro de cinco asas (1974), A faca no coração (1975), Abismo de rosas (1976), A trombeta do anjo vingador (1977), Crimes da paixão (1978), Virgem louca, loucos beijos (1979), Lincha tarado (1980), Chorinho brejeiro (1981), Essas malditas mulheres (1982), Meu querido assassino (1983). Neles, Trevisan faz uma cartografia dos espaços desejantes e das frustrações de uma vida conjugal vista como metonímia da existência provinciana. São, tanto pelo desdobramento das histórias quanto pela temática da sexualidade, a antecipação de seu único romance, A polaquinha (1985), no qual uma prostituta narra, no estilo de Fanny Hill, sua difícil vida fácil. Trevisan não vê a meretriz como vítima social, mas como mestre em artifícios, que usa a rendição ao homem como forma de domínio.
Se esta segunda fase mostra a busca de uma narrativa mais longa, que se consolida com o feixe de pequenas histórias que constituem A polaquinha, com Pão e sangue (1988), toma corpo um discurso minimalista que vinha aparecendo em títulos anteriores. Daqui para frente (Ah, é?, 1994; Dinorá: novos mistérios, 1995; 234, 1997; Pico na veia, 2002; Capitu sou eu, 2003; e Arara bêbada, 2004) Dalton se renderá ao conto-haicai, criando mini-estórias ou vinhetas que, muitas vezes, sequer têm títulos. Poderíamos afirmar que sua obra é uma viagem rumo à síntese, onde sobressai um tratamento poético da linguagem que valoriza a palavra precisa, o subentendido e o enigmático.
Estas centenas de contos possuem uma interligação muito grande, tanto por girar em torno dos mesmos personagens, dramas e geografias quanto por repetir frases e histórias, num processo de reiteração narrativa que marca o autor. Tal característica permite que leiamos sua obra como que um grande romance fragmentário sobre a vida na província.
Viagem a curitiba
Prestes a completar 80 anos (faz aniversário no próximo 14 de junho), Dalton Trevisan esbanja energia erótica em contos que estão entre seus melhores momentos. Evitando a vinheta, obsessão dos últimos livros, ele alonga mais a narrativa (o que já havia ocorrido em parte de Capitu sou eu) para devolver ao leitor o prazer narrativo que a rapidez havia roubado. Em Rita Ritinha Ritona, reencontramos o mestre atemporal do conto, com um domínio pleno dos jogos de narrar: todas as histórias, mesmo as mais curtas, apontam para uma maior extensão de cena, abrindo a percepção do leitor ao invés de fixá-la em pequenos pontos.
A preocupação com a linguagem deixou de ser estritamente minimalista para tornar-se erótica, de um erotismo carregado de citações poéticas históricas e de lirismo compungido.
Num misto de ficção e crônica (Adeus, vampiro), ele trata dessa metamorfose do Nelsinho — sua persona literária — que acorda de um pesadelo para se ver transformado em dócil conquistador, pedalando pelas ciclovias, celebrando gentilmente, em prosa e verso, as graças das mulheres que ele ainda persegue, não mais para estripá-las e sim para dedicar-lhes um amor de “delicadeza e delícias”. A sua arma permanece sendo o humor, presente desde os primeiros livros do autor, vínculo com o Nelsinho de outros tempos.
O conto termina com uma nota autobiográfica — o castelo do vampiro é a própria casa do autor, que se perderá com ele e com a cachorra Rikinha no nada. Nota de aceitação do fim da vida, num conto que a celebração do prazer, mantido até neste momento próximo do limite.
Esta estética erótica pode ser encontrada em vários momentos no livro: — na história da doméstica que passa por muitos revezes, mas consegue ser minimamente respeitada (Maria, sua criada); — no amor da nora pelo sogro idoso, que ainda faz estragos no coração da jovem (Filho ingrato); — no conto à la Manuel Bandeira que é O almoço de Natal, história dos irmãos que encontram nas galinhas do quintal as primeiras namoradinhas, antecipação das festinhas com as primas e da traição feminina; — em O mestre e a aluna, continuação de Capitu sou eu, em que o especialista em letras leva sua pupila ao papel da perdida filha do Pádua; — no campeão sexual que dá conta das fêmeas fogosas em Duas normalistas; — e no texto-título do livro, que trata do florescer de uma menina memorável, que se escraviza a um namorado anódino.
Nenhum dos contos, no entanto, exercita mais este viés erótico do que o poema-crônica Balada das mocinhas do Passeio, tributo às eternas profissionais na sua ronda em busca dos fregueses furtivos. A este universo sórdido Dalton dá uma poesia sutil, colando nessas mulheres uma estampa religiosa: fazem-se sacerdotisas do amor, por mais rebaixada que elas sejam e por mais asquerosos que sejam seus clientes: “não as despreze nem condene”.
O poema é construído de forma circular. Termina com a repetição de alguns versos iniciais, representando o mecanismo do mesmo, o invariável desejo neste eterno retorno das voltas no Passeio Público.
Se há este vampiro em tempo de delicadeza — uma delicadeza presente na descrição de um momento traumático em que uma criança é violentada (Sim, senhor) —, nosso Conde não perdeu sua verve crítica. Na sua autodefinição (Adeus, vampiro), entram muito das idéias correntes, e estereotipadas, sobre ele. Principalmente a de que uma paixão na velhice teria amaciado o autor.
Dentro deste jogo, ele aceita e nega esta mudança. Há uma erotização maior do texto, principalmente pela prolongação dele, como vimos, mas o contista continua alimentando seu lado apocalíptico, sua visão cruel do mundo, sempre com a pimenta da ironia. É também em verso que ele faz uma devassa irônica da sauna gay em Amintas 749. Invertendo ironicamente a lógica do reclame, o contista desmonta certo discurso libertário, mostrando que tudo não passa de comércio sexual para nossa classe média. Se, diante das putas pobres do Passeio Público, ele assume a imagem de Cristo respeitando Madalena, aqui é o Cristo de chicotinho em punho, fustigando os vendilhões.
Em outros contos, Dalton vai intensificar seu retrato desencantado de Curitiba, essa Gomorra com os dias contados. — Em A vergonha do ladrão, temos as confissões de um fumador de crack, nova versão dos elefantes sociais. — Uma metáfora do aprisionamento curitibano está em A longa volta para casa. Dois interioranos, que saem da penitenciária para visitar a família, revolvem antes conhecer a cidade e são presos equivocadamente, não conseguindo deixar a capital: “Maldita idéia de conhecer Curitiba. A Cidade Social. Um Jardim do Éden, segundo o cartaz, à beira do rio Belém plantado”. (Explicação para os turistas: Belém é o rio-esgoto, nosso pequeno Tietê, em cujas margens crescem, adubadas por suas águas, as favelas). — O suicídio do filho, marido manso, com um tiro de espingarda na boca, decadência do poder patriarcal corrupto e, portanto, corruptor (Em família). — A eterna história do estupro: Numa rua escura e O estripador.
Assim, Nosferatu continua sua viagem por Curitiba, impávido em sua cruzada contra os falsos discursos, nada inofensivo, apenas mais atento ao prazer demorado do sexo e do texto. Há uma frase que aparece em vários contos, com algo de ironia e algo de rendição: “O amor, essa coisa, sabe como é”. Previsível e inexplicável, passageiro e imorredouro, perverso e lírico, gratuito e comprado, o amor (mesmo a distância) é a força que nos leva adiante. É sob este encanto adolescente que vive nosso Drácula, atento às moçoilas em flor, como Ritinha, que “floriu numa orgia de beleza”. Um florir que nunca finda, centro simbólico desta outra Curitiba, que Dalton viaja e viaja:
“Os viajantes de longes terras, ao falarem de nossa cidade anos depois, se lembrarão apenas — ó alegria para sempre! — da garota sem nome, vislumbrada alguns instantes, caminhando entre nuvens, no seu vestidinho branco de verão”.
Para sempre seja louvado o contista desses seres anônimos.