O vampiro ao meio-dia

Dalton Trevisan se esconde pela Curitiba que inventou; e sua obra segue rumo à eternidade
Ilustração: Ricardo Humberto
01/06/2012

Nos últimos três anos, foram três livros publicados. Em 2009, Violetas e pavões; em 2010, Desgracida; em 2011, O anão e a ninfeta. Desgracida recebeu o Prêmio Jabuti em 2011 de melhor livro na categoria Contos e Crônicas. É a quarta vez que Dalton Trevisan recebe o prêmio desde 1960, quando Novelas nada exemplares (1959), aquele que considera o primeiro livro de sua obra — publicara um ou outro renegado —, venceu a segunda edição do concurso promovido pela Câmara Brasileira do Livro. Em 2003, na primeira edição do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, dividiu com Bernardo Carvalho o melhor livro do ano por Pico na veia. Em maio deste ano de 2012, recebeu o Prêmio Camões, concedido por Portugal e Brasil a escritores de língua portuguesa pelo conjunto da obra. Há, no entanto, uma ambigüidade no reconhecimento de uma obra como a de Dalton Trevisan que essa seqüência de prêmios não deixa tão clara.

Seus livros são publicados há mais de 30 anos pela editora Record, em projeto gráfico simples e preciso: em geral, a capa reproduz, sobre fundo branco, alguma gravura — do paranaense Poty Lazzarotto, do alemão Georg Grosz ou do mexicano José Guadalupe Posada; a contracapa, a mesma gravura; as orelhas, um trecho da obra que se lerá. Nenhuma nota biográfica a respeito do autor, nenhuma apresentação pelo editor, nenhuma frase de jornalista ou crítico, nenhum prefácio. Quando a gravura ocupa toda a extensão da capa e da contracapa, como em Violetas e pavões, talvez até se estranhe a presença do logotipo da editora à frente ou do código de barras atrás, como um excesso a edição tão concisa — ares de edição marginal produzida pelo maior conglomerado editorial do país. Trata-se de um projeto gráfico que encena a circulação social desta obra, além de oferecer uma imagem dos próprios contos.

Quase tudo aqui aponta para uma radicalidade que ao mesmo tempo parece desejar certo ocultamento de suas ambigüidades. A ausência de nota biográfica, por exemplo. Dalton Trevisan compartilha com seu contemporâneo Rubem Fonseca (ambos nasceram em 1925) a recusa em aparecer publicamente, não concedendo entrevistas nem fotografias, não comparecendo a cerimônias de premiações literárias nem escrevendo acerca do trabalho da escrita.

Há nisso uma alta aposta na autonomia da obra literária, que falaria por si, diante da qual todo discurso que se lhe projete seria muito suspeito. Além disso, mantém-se o anonimato do habitante da cidade grande, de Curitiba, homem da multidão que devolve literatura e anonimato para a paisagem urbana, sem contribuir com suas falas e seu rosto para a circulação da cultura nas mídias ou nas universidades. Essa recusa à encenação constitui ela mesma uma encenação de escritor, mesmo que à revelia. Mas não há inocência.

Há, sim, incessante negociação para produzir e manter certa imagem pública. Afinal, se aparecer publicamente pode representar algum risco para a leitura de sua obra, é porque há o reconhecimento da força de interferência do discurso jornalístico e crítico na inserção histórica das obras literárias. Sinal de que essa tal autonomia literária não é tão autônoma assim. A percepção dessa possível crise da autonomia da obra no espaço urbano consolidado — e a resposta a esta percepção — localiza a obra de Dalton, assim como a de Rubem, como marcos de reinvenção da prosa modernista, já que em ambas a utopia nacionalista, o regionalismo mais ou menos engajado e o mergulho subjetivo da narração — tendências que se encontram amalgamadas em Grande sertão: veredas — cedem lugar a uma sarcástica planificação de tudo: sujeitos, cidade e texto.

Algo semelhante ocorre com a poesia que surge na década de 1950: tanto a obra de Ferreira Gullar quanto a dos três poetas da poesia concreta buscaram integrar formalmente naquele momento o poema à metrópole, espaço que parecia selvagem à poesia. Por isso era preciso responder de algum modo à potência luminosa dos letreiros, outdoors e outras tecnologias da palavra que poluem a paisagem urbana, como se essa palavra pública representasse ao mesmo tempo uma ameaça e uma solução (o fim do verso) ao modo modernista de fazer poesia. A inauguração de Brasília, em 1960, é o principal símbolo deste processo: sendo o maior monumento da arte modernista no Brasil e, ao mesmo tempo, a realização da utopia de tornar pública essa arte (ou seja, torná-la visível, funcional e estatal), Brasília inaugurada torna-se, imediatamente, o monumento à contradição social — o que fazer, afinal, com o resto desse projeto, ou seja, os candangos e a corrupção política que a habitam e a definem?

Mostrar-se na ausência
Já lançado na cidade como problema, não como projeto, Dalton joga com as forças que produzem a imagem pública da obra e do escritor — a mídia, os prêmios, os críticos, os leitores —, adotando uma tática de resistência. À semelhança de um louco ou um sonhador, transforma em ato o estatuto simbólico da literatura através de sua performance de escritor: mostra-se em ausência. No entanto, como frio calculista, precisa controlar essa imagem-fantasma a cada vez que é requisitada. Podemos assistir na internet ao vídeo de uma reportagem que um jornal televisivo dedicou ao escritor em 1993. Tendo como mote o lugar-comum da revelação da identidade do curitibano Dalton Trevisan, a reportagem apresenta os lugares freqüentados pelo artista e, após breves falas laudatórias de seus amigos, propõe a um desenhista a composição de um retrato falado do escritor com base na sua descrição física feita pelos amigos. Este retrato falado — que, de fato, é muito semelhante às poucas fotografias existentes do autor — revela o quanto a reclusão ao mesmo tempo resiste à circulação pública da imagem e alimenta a circulação esvaziada do escritor, que se torna fetiche televisivo.

O processo de reconhecimento de sua obra, no entanto, aos poucos está virando pelo avesso o trabalho de apagamento do rosto. Como um espelho do retrato falado, encontramos escassamente em blogs e jornais fotografias não-autorizadas de Dalton caminhando pelas ruas de Curitiba, como um célebre anônimo. O que se vê nessas imagens é a silhueta de um senhor de cabelos brancos, boné, que anda olhando para o chão e carrega em sacolas livros, frutas ou qualquer outro artigo de alimentação. Nessas fotografias, o fetiche se mantém, ainda mais se sabendo que algumas foram tiradas por leitores que o reconhecem ao acaso pela cidade. Mas algo se inverteu substancialmente em relação ao retrato falado: agora se vê o corpo vivo do escritor caminhando por alguma rua da cidade, como se houvesse nessa imagem algo de uma aparição, um poder revelador, mas que revela o que há de mais banal, uma certa prova da humanidade, enfim, do vampiro, em época de lua nova, ao meio-dia. Os efeitos da literatura mostram-se um jogo perverso, pois revertem as artimanhas do autor vampiro e lançam ambigüidades ao que se quer radical: recusa, sumiço, não.

Essa tática parece caracterizar certo grupo de autores que apareceram precisamente no cenário de politização da cultura vivido pela sociedade brasileira nos anos anteriores ao golpe de Estado em 1964. Para esses autores, é possível que o corte no direcionamento histórico representado pelo golpe tenha produzido a tática de falar na mesma língua do poder mas sempre encenando o avesso dessa língua, a recusa a ela e, portanto, a fragilidade dessa barbárie instituída. Diante disso, é silêncio ou polêmica. Lembre-se, por exemplo, o caso da Hiena papuda, texto jocoso publicado por Dalton Trevisan há poucos anos em polêmica com o escritor Miguel Sanches Neto. Lembre-se também de notícias dos últimos anos acerca do polêmico desligamento de Rubem Fonseca com a editora que publicava seus livros à época, ou ainda a fotografia do escritor dando de comer a Paula Parisot numa livraria na qual a autora promovia, em performance, seu novo livro. Pode-se acrescentar a esse grupo outro escritor estreante em meados da década de 1960, o ensaísta Roberto Schwarz, cuja recente polêmica com seu colega de editora, Caetano Veloso, além de ter promovido o novo livro do ensaísta, girou parcialmente em torno da questão da demora em expor uma leitura a respeito do livro publicado pelo compositor baiano na década de 1990. A acusação de demora em expor uma leitura incide precisamente sobre a diferença de estratégia no posicionamento da imagem pública desses intelectuais. (Afinal, foi o Tropicalismo que, posteriormente à geração de Dalton e Schwarz, propôs modificar a atuação política do intelectual por meio de sua inserção espetacular na mídia de massa, sob o preço — inevitável e desejado — de certo esvaziamento de sua imagem de intelectual.) Nessa demora em expor a leitura ou o rosto, é como se o sujeito requeresse uma autonomia em relação ao público, um tempo particular cujo relógio não gira à mesma velocidade dos jornais, da publicidade, enfim, da cidade.

É um pouco isso, misturado a uma forte melancolia de fundo, difusa por toda a obra de Dalton Trevisan, que se lê no penúltimo texto de O anão e a ninfeta, chamado O escritor.

— Me fiz de bêbado entre os bêbados, para ganhar os bêbados.
Me fiz tudo para todos, para por todos os meios chegar a entender um só — ai de mim!

Ao lado da clara reivindicação do “um só” a ser compreendido — “ai de mim!” —, preservando à criação literária a experiência de formação do indivíduo (que fundamenta o gênero desde o surgimento dos romances de formação), lê-se nesse texto a operação do reconhecimento como definidora da literatura. Parece que há, na obra de Dalton Trevisan, um romance de formação cujo protagonista não comparece — assim como o escritor não aparece publicamente —, pois o protagonista é, na verdade, o próprio narrador de casos alheios, sempre narrando sujeitos que não se transformam, paralisados pelo trauma, pela violência, pelo ressentimento. Esses sujeitos não poderiam, por definição, ser protagonistas de um romance de formação, daí Dalton Trevisan ser essencialmente um contista, e dos mais concisos: a linha que costura sua obra, conto a conto, não deve aparecer, a não ser em ausência. Reconhecer-se nesses sujeitos paralisados — que são seus personagens — propicia uma compreensão de si que é transformadora, justamente porque não se desliga do trauma. Há uma mínima diferença entre narrador e personagens nos quais se reconhece, e entre o leitor e esses personagens: é que a palavra, ao produzir um território simbólico, cria um intervalo entre o ato, por exemplo, de assassinar e a representação do assassinato. Representar um ato que se pode realizar, e não realizá-lo, consiste na operação definidora da literatura de Dalton Trevisan, cuja produção acaba por se tornar um ato condenável. (Uma adaptação de diversos contos para o cinema com roteiro do próprio Dalton, Guerra conjugal, dirigida por Joaquim Pedro de Andrade, foi censurada. Não seus livros.)

É também de seu último livro publicado, O anão e a ninfeta, a ministória — termo com que nomeia seus textos — de um babuíno exposto num jardim zoológico a catar piolhos na sua “companheira”. Requisitado pelo público, que o xinga e lhe atira comida, a se exibir, “em desprezo nos vira de costas, exibe o traseiro lisinho e róseo. Ninguém se iluda — é um de nós”. Quem se recusa a atuar é “um de nós”. Nesse caso, agir como macaco representaria atuar, vestir o estereótipo e falsear-se. O ato do babuíno — que consiste em inscrever no outro sua diferença — pontua a recusa em atender à requisição do outro, público. Ato que lembra a encenação do escritor Dalton Trevisan, que publica exclusivamente atos de escrita — ou seja, seus livros — e atua no sentido de duplicar este ato por meio de seu silêncio público. Reconhecermo-nos no babuíno e não sermos babuínos: ao leitor é dado recusar a metáfora por excesso de realidade — de fato, não sou babuíno —, mas essa é a mínima diferença entre o leitor e o babuíno; a máxima semelhança encontra-se na recusa a agir no espelho do outro, na recusa a macaquear a própria imagem construída pelo outro. Não é do homem recusar a representação, mas é do homem representar essa recusa. E reconhecer-se nela.

Um ato de escrita como esse Dalton Trevisan não reconhece em Grande Sertão: veredas. Em Desgracida, há uma seção intitulada “Mal traçadas linhas” na qual se lêem cartas endereçadas a Otto, Rubem, Nava, X, Prefeito e Senhora. Fala-se de literatura. Se há alguma confissão, não é sem polêmica. Se há alguma variação de gênero, não é sem repetir o estilo marcado do autor. E é com ele que, propondo-se a “falar mal” do romance de Guimarães Rosa, o missivista lança a tese:

A forma é inovadora, mas o fundo reacionário. Uma frase de efeito? Não nego a protofonia verbal do Rosa, patativa de mil gorjeios. Estilo criativo a serviço de quê? A história menos plausível na literatura de travesti.

Fundo? Plausibilidade? Que o fundo seja subversivo numa história plausível é a fórmula da negatividade em Dalton Trevisan. E plausível, na obra de Dalton, são as histórias de quem não se reconhece no outro: “agora faço qualquer coisa/ pra sobreviver/ até moro com a mãe de 74 anos/ que me ajuda no sustento” (Hoje estou bem); “O filho é o braço armado da mãe contra o monstro do pai” (O braço armado); “Essa não. Liga o carro e engata uma ré. Fatal. Tive que dar nele. Um, dois, três tecos na cara” (Na moral). Muitas dessas ministórias poderiam soar redundantes em relação a notícias de jornal, mas o lugar em que se encontram — a literatura — produz a ambigüidade fundamental dessas narrativas. O livro de literatura é um lugar de reconhecimento, tanto mais contundente quanto menos fingido. Na obra de Dalton, o realismo inverte-se, produz mínimas diferenças entre texto e vida, mas produz diferença: na obra representa-se o ato, no mundo age-se atuando; ambos espelhados, só que invertidos.

Recusa à duração
De Rosa a Dalton, do campo à cidade. Dalton Trevisan e Rubem Fonseca foram os primeiros escritores brasileiros que encontraram na cidade um material e um estilo simultaneamente antiliterários. Até então, toda a nossa prosa urbana fora construída como uma estilização da cidade. É modernista. Dalton e Rubem representam a cidade por uma espécie de estilo anônimo, cuja elaboração consiste na destruição do sentido literário. São modernos. Seus violentos personagens pouco se culpam, tampouco são trágicos.

Entre tantos exemplos que poderiam servir de comparação, lembro Antônio de Alcântara Machado, prosador modernista precursor do estilo telegráfico de Dalton. Em seu livro de 1927, Brás, Bexiga e Barra Funda, encontramos a história do menino Gaetaninho que, durante uma brincadeira de rua, desentende-se com o amigo: “Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou”. Note-se certa crueldade que pode ser lida na repetição final do verbo: pegou, pegou e matou. Nessa repetição há um eco do espanto diante da força da máquina moderna, que pega e mata. Estamos longe dos “três tecos na cara” do personagem de Dalton, que nem precisa enunciar a morte do outro, embora já esteja presente o estilo conciso, rápido, de pontos finais. Mas não termina aí o trecho que narra a morte de Gaetaninho: há um suplemento, uma frase final que leva para o campo da tragédia e do sofrimento humano um acontecimento que não deveria ser banalizado pela literatura de Alcântara Machado: “No bonde vinha o pai do Gaetaninho”.

Também Dalton insere suplementos, não para reforçar o pacto literário ou a inserção positiva da obra numa tradição. O terceiro verso de O bom confirma e suplementa a fórmula paradoxal própria da modernidade:

O bom escritor diz a verdade
ainda quando está mentindo,
se é que você me entende.

Tanto em O bom quanto no já citado O escritor, reconhece-se um quê de Fernando Pessoa na concepção. Em Pessoa, nos conhecidos versos de Autopsicografia, o que suplementa o fingimento do poeta é “a dor que deveras sente”. Ela, que está e não está presente no poema, borra a moldura da criação (fingimento completo) e produz, por meio do paradoxo, um modo de imaginar a autonomia ficcional do poema sem abdicar a dor verdadeira. Nesses versos, nada sobra ao paradoxo. Em O bom, o suplemento desloca-se um pouco e recai sobre a interlocução entre leitor e narrador: o que sobra ao paradoxo é a ironia, “se é que você me entende”. Ao propor tal deslocamento, o que vem à tona é o caráter performático do texto, ou seja, a encenação de sua relação com o leitor. O texto é, então, não tanto aquele que guarda a dor que deveras se sente, sim aquele que proporciona uma zona de flutuação da experiência na leitura — o que constitui na verdade outro modo de ver a modernidade, com menos justificação e mais despojamento da forma.

A respeito de Fernando Pessoa, lemos em Desgracida: “O segredo de Fernando Pessoa? Aprendeu de menino a escrever e a pensar na língua inglesa”. Aprendeu, portanto, a lição de Proust, que considerava que os bons livros escreviam-se numa espécie de língua estrangeira. A exposição dessa noção proustiana de literatura através de Pessoa talvez revele que a associação entre a formação — que apontávamos no início do ensaio — e a violência da representação plausível tenha na poesia o seu modelo. A própria eleição de gravuras para a capa de seus livros diz um pouco acerca de uma obra que prefere o ato de imprimir ao ato de pintar, pois este não prescinde de uma duração do gesto para a composição da imagem. O gesto de imprimir, ao contrário, além de guardar semelhança com o ato de imprimir o texto em livro, produz a imagem de uma só vez — após ela ter sido composta em seu suporte original. Quero dizer que a recusa à duração da composição reflete o efeito do poema, cuja leitura dura muito menos que um romance, mas é capaz de reverberar simbolicamente talvez para sempre.

Nesse sentido, é necessário considerar a relação que a obra de Dalton Trevisan estabelece com a de Manuel Bandeira. Esta relação foi apontada pela professora Berta Waldman ao final de seu livro dedicado a analisar a obra do escritor curitibano, Do vampiro ao cafajeste. Waldman destaca um trecho do Itinerário de Pasárgada no qual, após narrar o processo de composição de um poema de circunstância desentranhado de um trecho do romance A moreninha, Bandeira afirma: “dessa vez eu queria mesmo brincar falando cafajeste”. Nesta relação entre Bandeira e Dalton está em jogo uma referência de fundo, apontada por Roberto Schwarz em Ao vencedor, as batatas, de 1977, a uma linhagem cafajeste na literatura brasileira, que remontaria justamente ao romance de Macedo e chegaria a nossos dias com o “tom mesquinho de Dalton Trevisan”. O professor Jorge Wolff dedicou-se a costurar esses nós no ensaio Falar cafajeste. De Manuel Bandeira a Dalton Trevisan via Joaquim Pedro de Andrade, no qual encontramos a interessante sugestão de se considerarem alguns versos longos de Bandeira, que irrompem o poema, como possíveis ministórias de Dalton, como este do poema Infância: “Uma noite a menina me tirou da roda de coelho-sai, me levou, imperiosa e ofegante, para um desvão da casa de Dona Aninha Viegas, levantou a sainha e disse mete”.

Diversas ministórias escrevem-se em versos. Na maioria delas, cada verso consiste num fragmento narrativo e é estruturado por coordenação, como em A pensão: “perdi dois dentes/ tive que botar uma ponte/ me bateu tanto assim/ porque pedi a pensão da filha […]/ só na última dei parte na polícia/ fiquei muito mal/ quase desenganada”. Parecem relatos de gente acuada, que precisa se explicar, depor, contar o problema, o crime. Trata-se de uma prosa congelada em versos, um modo de resistir à duração da prosa, o que também é buscado pelo tamanho curtíssimo de muitos contos. A presença do tema erótico, em outros textos, modifica sensivelmente o quadro, movimenta os versos por meio do abuso de enjambements, em linguagem insistentemente figurada, e permeada de lugares-comuns, como no belo Lembrança:

Tua lembrança
ó ingrata
coça até sair sangue
desse meu braço perdido
em mil e uma batalhas
entre fronhas e lençóis
na guerra suja de corações

De modo que os três livros mais recentes de Dalton Trevisan, se o confirmam no lugar-comum de mestre da narrativa curta, é apenas porque o lugar-comum é sempre desmontado e revertido em sua obra, sem nunca deixar de comparecer. A começar pelo reconhecimento da obra, é preciso atentar para as ambigüidades em se tratando de Dalton Trevisan, pois revelam a medida de sua radicalidade.

Dalton Trevisan
Nasceu em 1925, em Curitiba. Formado em Direito, exerceu as funções de repórter policial e crítico de cinema. Sua estréia nacional na literatura foi em 1959 com Novelas nada exemplares (Prêmio Jabuti), reunião de sua produção das duas décadas anteriores. Desde então, Trevisan publicou mais de 30 livros — dos quais apenas A polaquinha é romance —, vários deles traduzidos para o inglês, o polonês e o italiano. Em 1946, criou a revista de literatura Joaquim, que teve Otto Maria Carpeaux, Poty e Carlos Drummond de Andrade entre seus colaboradores nas 21 edições mensais publicadas até dezembro de 1948. Recebeu o Prêmio Ministério da Cultura de Literatura pelo conjunto de sua obra em 1996. Reconhecido como um dos maiores contistas da literatura brasileira, em 2011, aos 86 anos, venceu novamente o prêmio Jabuti com Desgracida e publicou O anão e a ninfeta, reunião de 40 contos inéditos. Recebeu, neste ano, o Prêmio Camões, principal reconhecimento da literatura em língua portuguesa atribuído anualmente por Brasil e Portugal desde 1988 e que teve João Cabral de Melo Neto, José Saramago e Antonio Candido entre seus ganhadores. Os hábitos reclusos de Trevisan lhe renderam o apelido de “O vampiro de Curitiba”.
Luiz Guilherme Barbosa

É especialista em literatura.

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