Batizado pelos próprios autores como um “conto iniciático”, Aldobrando tem o roteiro de Gipi e o desenho de Critone, colorido por Claudia Palescandolo e Francesco Daniele. Essa nomeação faz muito sentido se pensarmos na condição de ignorância de vida do personagem que dá título à obra — um jovem sem malícia alguma e desprovido de grande inteligência (o carisma imediato me impede de chamá-lo de burro) — que o coloca absurdamente desprotegido diante dos homens mundanos. Mesmo sua característica mais nobre, a lealdade, é uma porta de entrada para humilhações. Até que, logo no início da aventura, o fiel Aldobrando, para salvar a vida de seu grande mestre, sai de casa com suas pernas de passarinho rumo à floresta em busca da “erva do lobo”. Esse ato primário é uma passagem de iniciação do personagem para a vida real.
À medida que avancei na leitura, tive a impressão de estar diante de uma tela de cinema, pois o modo de narrar se assemelha, a meu ver, ao de um filme. O enquadramento dos desenhos com closes silenciosos, sem balão de fala, intensifica a expressão dos personagens, assim como os takes panorâmicos revelam cenários que, mais do que situam o leitor, os colocam dentro da história. Esse enquadramento cinematográfico me remete à fala do cineasta alemão Wim Wenders, no documentário Janela da alma (2001), de Eduardo Coutinho. Ao responder a pergunta O que é mais importante no enquadramento?, o cineasta, após ajeitar os óculos que o faz ver o mundo através de um frame, diz:
O enquadramento é algo muito estranho porque o que está fora é quase mais importante do que o que está dentro. Costumamos olhar um enquadramento pelo que ele contém, num quadro, numa foto ou num filme. Normalmente, pensamos no que está no interior. Mas o verdadeiro ato de enquadrar consiste em excluir algo. Acho que o enquadramento se define muito mais pelo que não se mostra do que pelo que se mostra. Há uma escolha contínua quanto ao que será excluído. […] Portanto, o enquadramento tem total relação com o contar da história.
Muitas cores
Aldobrando parece ser um grande storyboard, com tomadas de cenas que não revelam tudo, personagens de costas, por exemplo, nos dão a oportunidade para imaginarmos as feições. A metonímia de alguns enquadramentos, somente a entrega de um objeto pelas mãos, a parte pelo todo, tenciona ainda mais a cena. Outro aspecto interessante é a vasta paleta de cor. Graficamente, elas anunciam, em muitas situações, uma mudança de cena, tal qual um corte de filmagem, potencializando-as. O livro começa com uma cena dramática em tons frios e, ao virar a página (o projeto gráfico claramente prevê o movimento do leitor nos segundos que se leva para o virar de uma página), nos deparamos com outra paleta de cor com tons quentes, alaranjados, num tempo progresso. O contraste de cores entre as cenas deixa o frio mais frio e o quente mais quente.
A percepção cinematográfica da obra não me parece simples coincidência. Gipi, um dos mais renomados cartunistas e ilustradores de todos os tempos, bebe dessa fonte. Depois de criar e dirigir vários curtas, ele lançou em 2011 seu primeiro longa-metragem, L’ultimo terrestre. Em 2018, dirigiu o filme Il ragazzo più felice del mondo. Os desenhos de Critone, também com vasta obra publicada, contribuem para trazer movimento e música à obra, elementos básicos do cinema. Com aguadas precisas, traços bastante expressivos e cheio de detalhes, ele constrói planos profundos na leitura das imagens.
O humor é algo que também salta aos olhos neste livro. Já dizia Freud: “o humor é o mais elevado grau de sofisticação do ser humano, a manifestação mais sofisticada do espírito humano”. O humor está presente tanto nos diálogos quanto na construção dos personagens, seja na morfologia, seja nas situações inusitadas — e apavorantes — que vivenciam. No encontro do nosso herói com um fugitivo de aparência duvidosa, que se esconde dentro de uma toca isolada da aldeia, temos o seguinte diálogo:
— Meu nome, escudeiro, é Sir. Gennaro Montecapoleone Delle Due Fontane. Filho de Brudagone Montecapoleone Delle Due Fontane, dito o “desposa moçoilas”. E você, plebeu, tem um cognome ou devo forjar-lhe um?
— Aldobrando, vossa senhoria.
— Então doravante você será Aldobrando das Tocas Alheias, escudeiro e aio de Sir. Gennaro Montecapoleone Delle Due Fontane, filho de Brudagone Montecapoleone Delle Due Fontane. O que acha?
— Só Aldobrando basta.
No entanto, é por meio do humor que se fala de coisa séria. A trama, como evidente crítica social, aborda os espectros de uma sociedade injusta, violenta, para não dizer doente. A corrupção, a traição, a ganância e o abuso do poder se instalam nos meandros das relações humanas. Um exemplo é o inescrupuloso rei, beberrão e altamente desagradável. Com um toque de criança mimada em sua aparência, ele personifica tudo o que há de pior no ser humano. A princesa, que, antes da morte da rainha, ocupava o lugar de enteada, passa a ser motivo de cobiça erótica deste repugnante rei.
Mas, sejamos justos, pois há que se falar do amor. “Às vezes, basta o valor de um coração puro para derrubar a tirania.” Dentre os desastres que se sobrepõem na trama, nasce também uma história romântica. Há espaço para reencontros e reconstruções de vida. Por último, deixo a frase contida no “Grande manual do feiticeiro”, como um enigma a ser revelado: “E ele trará consigo a recompensa por essa grande mudança”. Ao final, saboreamos uma sequência de imagens cinematográficas que dispensa palavras.
Aldobrando foi selecionado em 2021 pelo Grand Prix de la Critique e pelo Fauve d’Or no Festival de Angoulême. Agora editado pela Nemo, com tradução de Renata Silveira, é um deleite aos fãs de quadrinhos, de literatura e daqueles que simplesmente apreciam a arte.