O universo de Condé

Livros de Maryse Condé apresentam um passado colonial complexo e uma maneira engraçada e crítica de abordá-lo literariamente
Maryse Condé, autor de “O coração que chora e que ri”
01/04/2024

A primeira vez que realmente ouvi falar sobre Maryse Condé (ou seja, a primeira vez em que aprendi algo sobre ela, não só ouvi seu nome ou vi seus livros nas listas de lançamento e coisas do tipo) foi em um encontro do Poiésis, uma série de conferências sobre literatura organizada por alunas e alunos da Universidade Federal do Paraná, em março de 2023. Com o tema anual de autores premiados, o encontro daquele sábado juntava duas autoras, uma que eu já tinha lido e gostava muito, Annie Ernaux, e outra que ainda não conhecia, Maryse Condé. Juntava também duas palestrantes: a professora da UFPR, a doutora Viviane Pereira, e a mestre Jéssica Andrade.

Durante cerca de duas horas, ambas se revezaram em apresentar aspectos das escritoras, entre biografia e obra. A dinâmica entre as palestrantes criou também uma relação interessante entre as autoras. Enquanto Viviane falava principalmente sobre Ernaux e Jéssica sobre Condé, as pesquisadoras faziam mais do que apontar semelhanças, mas também ressaltaram diferenças entre as duas autoras francófonas. E foi assim que Maryse Condé entrou imediatamente na minha lista de futuras leituras (aposto que você também tem uma lista dessas aí). E foi a pauta aqui do Rascunho que fez com que os livros da Condé subissem para o topo rapidinho. E foram dois livros de uma única vez, que mostram aspectos diferentes da obra da autora: primeiro, o autobiográfico O coração que chora e que ri; depois, o romance O Evangelho do novo mundo.

O coração que chora e que ri, além do ótimo título, tem uma proposta simples: contar a infância e a adolescência da autora, um relato de sua formação, marcada por relações coloniais e nem um pouco simples. Condé nasceu em 1937, em Guadalupe, que é até hoje um território ultramarino francês no Caribe. Mas, se na ilha sua família tinha reputação e dinheiro, eram ricos e educados; em suas viagens à França eram vistos com surpresa, mesmo por garçons e outros atendentes, por falarem francês tão bem.

Há um estranhamento latente já no começo do livro:

Se alguém tivesse perguntado a meus pais a opinião deles sobre a Segunda Guerra Mundial, eles teriam respondido sem hesitar que foi o período mais sombrio que já viveram. Não por causa da França partida ao meio, dos campos de Drancy ou de Auschwitz, do extermínio de seis milhões de judeus, nem de todos esses crimes contra a humanidade ainda não totalmente expiados, mas porque, durante sete intermináveis anos, foram privados daquilo que mais importava para eles: suas viagens à França.

Assim, não é o mesmo trauma francês da guerra — e sim uma perda temporária das viagens frequentes a Paris, algo bem supérfluo considerando o contexto histórico.

Essas situações são apresentadas como um contraste por uma narradora confusa: ainda criança, Condé tinha dificuldade de entender a sua posição e a da sua família no mundo (um mundo que, aliás, ela ainda tentava compreender também). Durante a leitura, é justamente essa construção que permite acompanhar o processo pelo qual a autora passou para a formação do seu pensamento crítico em relação ao colonialismo francês. E um dos momentos iniciais desse pensamento são as conversas com um de seus irmãos (eram em oito no total), que lhe apresenta palavras como “alienação” e ajuda a explicar vários dos conflitos que presencia.

São dois os momentos que possivelmente mais marcam a sua formação nesse momento de juventude: a morte desse irmão e a vontade de Condé de continuar a viver por ele; e a descoberta da literatura caribenha, incentivada por uma das professoras que teve depois de ter estudado na França, e a maior compreensão do que seu país representava dentro de um contexto político global.

Pensamento decolonial
Todo esse pensamento que começa a surgir ali continua a ser desenvolvido em momentos posteriores da sua vida (e posteriores também ao período narrado no livro), inclusive em várias viagens e estadias em países africanos. E o romance O Evangelho do novo mundo é um ótimo exemplo de como o pensamento decolonial da autora se traduz em literatura.

Paródia decolonial dos Evangelhos, o livro narra a vida de Pascal, um menino nascido na Páscoa em uma ilha fictícia e deixado por sua mãe, então abandonada pelo pai da criança, no estábulo de um casal com condições melhores de vida. Pelas condições do encontro da criança e outras coincidências da história da criança com Jesus, Pascal começou a ser visto, ao menos entre as más línguas, como o segundo filho de Deus.

O mais interessante do livro, porém, é a maneira com que a autora usa um narrador — na realidade, prefiro pensar como uma narradora — intrusa para fazer vários comentários ao longo do texto. Um exemplo:

Todos se levantavam para olhar o carrinho empurrado por Eulalie. Havia numerosas razões para tal curiosidade. Para começar, Pascal era de uma beleza notável. Não se podia dizer a que raça pertencia. Mas admito que a palavra raça está obsoleta. Vamos substituí-la o mais rápido possível por outra. Origem, por exemplo. Não se podia dizer que era sua origem.

Outro aspecto que contribui com o tom da obra é a mistura de referências ao mundo real com um aspecto meio fantasioso ou onírico. Pelo lado fantasioso, há uma personagem que aparece e desaparece como mágica na narrativa (uma figura que ocupa a posição dos reis magos bíblicos); pelo lado das referências, existem várias menções culturais que compartilhamos. Essas referências são, por vezes, feitas pela narradora intrusa, e não são necessariamente do domínio das personagens (como “parecia diretamente saída de um romance de Margaret Atwood”, ou a menção ao filme Spotlight depois de falar de casos de abuso sexual na igreja), como se essa narradora compartilhasse um contexto cultural com os leitores mas não com as personagens, dando à narrativa um tom de relato de um conto do passado. Ao mesmo tempo, algumas dessas referências são compartilhadas pelas personagens da narrativa e fazem parte do seu mundo, como o aeroporto Franz-Fanon ou a praça Derek-Walcott. A sensação é de que este é um livro simultaneamente fora do tempo e ainda assim extremamente contemporâneo.

Ler o livro de memórias e o romance em sequência permite ver como várias das questões presentes na formação da autora são transpostas para o espaço literário: a ideia de alienação, a personagem que elabora um pensamento crítico ao se ver por um olhar do outro e quando conhece outros lugares, a literatura como forma de aprendizado e a homenagem àqueles que a ajudaram a formular um pensamento crítico e decolonial.

Os livros de Condé apresentam um passado colonial complexo, uma menina confusa ao tentar decifrá-lo, um pensamento decolonial em formação e uma maneira engraçada e crítica de abordá-lo literariamente. Que ela possa fazer por essas bandas o que tantos autores fizeram por ela: nos ajudar a lidar com nosso próprio passado colonial.

O coração que chora e que ri
Maryse Condé
Trad.: Heloisa Moreira
Bazar do Tempo
184 págs.
O Evangelho do novo mundo
Maryse Condé
Trad.: Natalia Borges Polesso
Rosa dos Tempos
292 págs.
O fabuloso e triste destino de Ivan & Ivana
Maryse Condé
Tradução: Natalia Borges Polesso
Rosa dos Tempos
238 págs.
Maryse Condé
Nasceu em Guadalupe (departamento francês no Caribe), em 1937. Doutora em Literatura Comparada pela Sorbonne, já lecionou em diversas universidades. Publicou mais de 20 livros. Em 2018, Condé venceu o The New Academy Prize (prêmio alternativo ao Nobel, suspenso naquele ano devido a um escândalo sexual na instituição).
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

Rascunho