Como pensar a palavra? Numa simples acepção, aquela rotineira e cotidiana, a palavra pode ser concebida como um conjunto de letras com sentido. Som articulado com significação? É uma manifestação verbal? Ora, todos sabemos o que é uma palavra, lidamos com ela (ou elas) o tempo todo, na rua, no bar, no restaurante, em casa, até mesmo quando estamos sozinhos. Na verdade, a palavra é um elemento fundamental da linguagem, como aponta Heidegger nas três célebres conferências sobre a “Essência da linguagem”. Para o filósofo alemão, que deixou uma inquietante herança para seus posteriores, a palavra está relacionada intrinsecamente com o pensamento e com a poesia. A palavra significa, mas é também na sua não significação (na sua negatividade), nos novos caminhos que o pensamento vai, aos poucos, abrindo nas sendas e cesuras das experiências que ela pode se potencializar.
A palavra não é algo de estático e, se a linguagem está viva, ela permite jogos, brincadeiras, ilusões e criatividade. É esse brincar com a palavra e com seu ritmo, sempre com muita ironia e sagacidade, que o leitor encontra ao abrir as páginas de Letra e música, assinado por Ruy Castro. A assinatura é um rastro, conserva certos elementos que fazem dela, mesmo disfarçada, ser reconhecível aos olhos de um atento detetive como Sherlock Holmes ou Sigmund Freud. E nesse caso não poderia ser diferente, certo? Quem está habituado a ler a Folha de S. Paulo tem elementos suficientes para identificar nessas páginas o timbre, o gingado, o ritmo, as pausas da escritura irreverente de Ruy Castro.
Letra e música, que conta com um projeto gráfico à altura dessa assinatura, é composto por dois volumes de crônicas: A canção eterna e A palavra mágica. Grafia e som, percepções do mundo/dos mundos. Ao todo foram coletadas 64 crônicas publicadas na Folha, ao longo dos últimos seis anos. Falar de música para ele, uma espécie de saída de segurança, é “a única alternativa” para quem não é capaz de produzi-la. E como está colocado, logo no início do segundo volume, a palavra é o único amor que esse boêmio jamais traiu. Não se deve esquecer de alguns livros já publicados como as biografias dedicadas a Garrincha, Carmem Miranda e Nelson Rodrigues, além de Chega de saudade, sobre a Bossa Nova, e Ela é carioca, dedicado ao charmoso bairro de Ipanema no Rio.
A propósito dessa relação com a palavra, a traição pode ser pensada em vários níveis e sentidos. Um deles está na crônica Corretor Fanho. As antigas Olivetti podiam deixar as pontas dos dedos cansadas e calejadas, mas obedeciam direitinho aos comandos dados. Um erro, nesses tempos, poderia ser crucial e decisivo para se jogar a folha ainda incompleta no lixo. Os barulhos do rolo que puxava as folhas ou o “trim” da alavanca quando acabava a linha ainda estão vivos, como recordação, em algumas memórias, da mesma forma que aquele da tecla que timbrava e marcava o papel. Outro momento diante da Olivetti, era quando a famosa fita da máquina acabava; se lembram de todo o processo para continuar o trabalho, inclusive das mãos sujas? Esse objeto que já foi do desejo (talvez ainda o seja para alguns) é facilmente colocado ao lado de outros como o walkman ou o disquete, que ficaram para trás e no tempo. Mas qual é a relação disso com o “Corretor fanho”? Vamos às palavra de Ruy Castro: “troquei a máquina de escrever pelo computador em 1988, o que provavelmente já me salvou a vida algumas vezes. Mas não pense que minhas relações com ele — o computador — são uma maravilha. A cada aperfeiçoamento no funcionamento da caranguejola, tenho um motivo para sobressalto, até me acostumar com a novidade e passar a dominá-la também”. Diferentemente da dócil Olivetti, a fascinante e sedutora maquinaria da tecnologia, às vezes, cisma em corrigir o que foi digitado. É claro que a facilidade de corrigir, APAGAR, COPIAR E COLAR, não está em questão, mas a “autonomia” do computador pode levar à beira de um ataque de nervos ou a um “prazer sádico”.
Outro tipo de “prazer sádico”, com toda irreverência, está em Horror a iPod. Após ter sofrido um derrame hemorrágico, com complicações respiratórias, um homem de 80 anos saiu do coma, mas continua no hospital, imóvel, sem falar, ainda entubado e quase sempre inconsciente. Fã provavelmente de Orlando Silva, Lucio Alves, Dolores Duran, ou, quem sabe, Bing Crosby, Sinatra, Ella Fitzgerald, ele tem uma relação muito forte com a música. Assim, para agradá-lo, estimulá-lo, os netos decidem fazer uma surpresa: dezenas de horas de música num iPod, “na expectativa de que seu cérebro se sentisse estimulado e voltasse a comandar o corpo”. Uma afeição, sem dúvida, dos netos pelo avô. Contudo, “Eu me pergunto se mesmo a melhor música do mundo, ou aquela com que a pessoa mais se identifica, é agradável de se ouvir sem parar, pela eternidade, e mais ainda quando o sujeito está incapacitado de se desplugar ou de manifestar de alguma forma que gostaria de passar o resto de seus dias em silêncio. Como descrever o martírio mudo de quem está sendo invadido por sons que não pediu para escutar e que, para ele, podem ter se convertido em horror?”
Essas páginas trilham também diferentes percursos da história cultural do país, do samba de raiz, a Graciliano Ramos, a um encontro entre Chacrinha (Quem não se comunica, se estrumbica!) e João Cabral, na famosa Fiorentina do Leme, passando também pelo Jazz e pelo Tango. Caminhos tortuosos, talvez desviantes, mas escapar desse movimento da música e da palavra parece não ser possível: “Meu mundo é um pouco mais vasto. Dedico-me também a assistir a filmes antigos, a viajar dentro e fora do Brasil, a observar os gatos, a torcer pelo Flamengo, a flanar pelo Rio e a parar com os amigos e desconhecidos na rua para dizer besteiras. Mas, se esse mundo se resumisse à música e à palavra, já estaria muito bom”.