O silêncio é a mais poderosa das armas, parece insinuar o narrador criado por José Saramago a propósito de Felícia, ativista com ideais pacifistas e ex-mulher de Artur Paz Semedo, funcionário de uma indústria de armas. Esse é o núcleo em torno do qual o autor constrói a última narrativa que nos deixou — Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas.
Artur Paz Semedo é um homem comum, cumpridor de suas obrigações na chefia do setor de contabilidade de armas leves e munições da Belona S. A. Igual a meu pai, que foi contador em uma pequena indústria têxtil, ele passa os dias encenando a rotina universal da profissão: a organização meticulosa, o cálculo das faturas, a precisão dos apontamentos, o rame-rame dos papéis, a regularidade dos registros, a segurança fria e confortável proporcionada pelos números.
O protagonista é uma espécie de Bartleby, o escrivão de Herman Melville, só que possuidor de alguma determinação e iniciativa. Não questiona os seus superiores e tem certo orgulho do renome da empresa e de trabalhar em seu ofício. É discretamente ambicioso e sonha em chefiar o setor de armamentos pesados da empresa:
Os efeitos psicológicos desta entranhada e não satisfeita ambição intensificam-se até à ansiedade nas ocasiões em que a administração da fábrica apresenta novos modelos e leva os empregados a visitar o campo de provas, herança de uma época em que o alcance das armas era muito menor e agora impraticável para qualquer exercício de tiro. Contemplar aquelas reluzentes peças de artilharia de variados calibres, aqueles canhões antiaéreos, aquelas metralhadoras pesadas, aqueles morteiros de goela aberta para o céu, aqueles torpedos, aquelas cargas de profundidade, aquelas lançadeiras de mísseis (…), era o maior prazer que a vida lhe podia oferecer.
Em seu último romance, inacabado e publicado postumamente, Saramago nos leva a refletir sobre os descaminhos do mundo moderno escarafunchando o universo sombrio da indústria armamentista. Mais que isso, nos leva a refletir sobre a microfísica do poder, o dever de consciência escondido sob a capa da indiferença e do conformismo burocrático.
O título da obra, extraído de uma tragicomédia de Gil Vicente (Exortação da guerra), soa como uma espécie de reverberação a demarcar a insistência humana na destruição sempre renovada dos semelhantes e na construção de instrumentos letais: alabardas, alabardas, espingardas, espingardas. Soa também de forma irônica, pois sabemos que nas guerras modernas não se matam homens como antigamente, os mísseis e obuses tornando a morte cada vez mais distante e impessoal, quase científica em sua pretensão cirúrgica.
Indústria da morte
Nos três capítulos que Saramago nos deixou, não há cenas de combate e a guerra não aparece em sua face mais cruel. O que o escritor quer mostrar são os bastidores dessa indústria da morte, ou, mais precisamente, a responsabilidade humana no interior desse universo: o administrador que herdou o empreendimento familiar, a secretária que de forma calculada estende o tempo de espera dos que procuram a direção da empresa, os funcionários do arquivo vivendo como toupeiras nos subterrâneos da Belona S. A.
Mais que isso, Saramago mostra como os personagens se desvencilham dos dramas de consciência que o seu trabalho poderia desencadear. A naturalidade desse processo é aterradora: “Nada que outra pessoa não pudesse fazer”, diz Artur Paz Semedo ao administrador. É nesse terreno insípido que nasce a indiferença e se assentam os pilares sobre os quais o nazismo, o fascismo, o stalinismo e as ditaduras de toda espécie se sustentam.
Contra esse silêncio se insurge Saramago em seu derradeiro escrito, a palavra e o pensamento fazendo frente à barbárie perpetrada pelas guerras. A certa altura da narrativa, incomodado ao assistir a um filme dos anos 30 e saber que operários de Milão haviam sido fuzilados por terem sabotado obuses, Artur Paz Semedo é autorizado a investigar os arquivos da Belona S. A. relativos ao período da guerra civil espanhola.
Vale destacar a forma pela qual o narrador retrata os subterrâneos em que se localiza o arquivo da fábrica onde está enterrado o passado ignoto da empresa. É magistral a caracterização dos personagens que vivem na cave: Arsénio e Sesinando, chefe e assistente, passam os dias em meio a prateleiras carregadas de caixas de papelão cultivando uma relação de distanciamento respeitoso, feito de pequenos gestos e códigos, vicejando entre os dois uma fina e precisa hierarquia, sempre presente, minúscula, indelével. Saramago parece pagar um tributo a Kafka nesse capítulo, compondo um cenário a um só tempo sufocante e respeitoso não bastasse o jogo onomástico contido na designação do chefe da seção (arsênio | arsenal).
Há no livro algumas anotações de trabalho feitas por Saramago durante a escritura da narrativa, que indicam possíveis caminhos para a trama. Como se trata de obra inconclusa, ficamos a nos perguntar se o personagem ficará ou não angustiado ao questionar a finalidade dos artefatos produzidos pela fábrica, se sofrerá consequências ao tomar contato com alguma informação mais contundente que comprometa a empresa ou seus dirigentes ou se vai aquietar-se diante daquilo que porventura descobrir.
O livro vem acompanhado de três ensaios que abordam aspectos da narrativa interrompida e da obra de Saramago.
O primeiro ensaio, do escritor espanhol Fernando Gómez Aguilera, explora a habilidade do autor português em refletir sobre a banalização do mal.
O escritor e jornalista italiano Roberto Saviano (autor de Gomorra) explora correlações entre a encruzilhada em que parece meter-se o pacato personagem de Saramago e casos de perseguição a jornalistas em várias partes do mundo por investigarem o tráfico de drogas e o comércio de armas.
Já o antropólogo e cientista político brasileiro Luiz Eduardo Soares mostra como a interrupção da redação da narrativa pela morte do autor instaura uma espécie de jogo de espelhos durante a leitura:
Eis o autor diante de nós, imprescindível, evocando, involuntariamente, sua falta por meio do narrador que se esquiva, mas acena e promete, e de novo põe-se a retirar-se, estendendo ainda um pouco o fio de voz, numa emocionante e hipnótica coreografia em espiral, até o abismo.
As ilustrações são do escritor Günter Graas e foram extraídas de uma obra publicada em 2013 na Alemanha — os traços negros e cinzas instauram um diálogo intenso com a narrativa, a paisagem sombria e desolada devastada pela guerra.
Ao que parece as gravuras do romancista alemão não foram feitas especialmente para o livro, mas isso não tem importância: poderiam muito bem retratar o morticínio atual em que o mundo se lança na África, no Oriente Médio e em outras latitudes.