O último samurai

"O crepúsculo do mundo" traz a perspectiva cósmica de Werner Herzog por meio da jornada épica, ao mesmo tempo surreal e trágica, de um herói improvável
Werner Herzog, autor de “O crepúsculo do mundo” Foto: Renato Parada
01/06/2022

Em dezembro de 1944, o tenente Hiroo Onoda recebe ordens para manter a ocupação na ilha de Lubang, nas Filipinas, até o regresso do Exército Imperial Japonês. Para isso, deverá adotar táticas de guerrilha e penetrar na selva que encobre as montanhas. Porém, seu país capitula em agosto do ano seguinte e, com o fim da Segunda Guerra, os americanos tomam a ilha. Onoda, decidido a cumprir sua missão e se tornar “o eterno pesadelo do inimigo”, resiste por quase trinta anos, recusando-se a acreditar que o conflito terminou.

O neurótico e obstinado tenente é, antes de tudo, outro dos excêntricos personagens de Werner Herzog. Quem conhece a filmografia do cultuado cineasta alemão há de se lembrar dos protagonistas de Coração de cristal (1976) e Fitzcarraldo (1982), do ambientalista Timothy Treadwell, de O homem urso (2005), e dos cientistas da estação McMurdo, na Antártida, em Encontros no fim do mundo (2007). Os últimos são personagens reais, em produções que transitam entre a ficção e o registro documental.

Aquilo que aproxima todos esses personagens, além de serem exploradores, audaciosos ou visionários, é o embate com situações extremas. Contudo, mais do que revelar seus dramas individuais, Herzog se propõe a contemplar o desastre tanto da natureza quanto da cultura, seja nas telas ou nas páginas do seu primeiro romance. Em última análise, é esse tema que subjaz O crepúsculo do mundo.

Épico e absurdo
Impossível ler certas passagens do livro — prólogo e epílogo, em especial, bem como as elucubrações filosóficas e os relatos da natureza selvagem, tão vívida e vibrante, dada sua acuidade descritiva — sem imaginar o inconfundível sotaque bávaro do autor. Numa prosa anedótica excessivamente adjetivada, que evoca sons e imagens de forma quase cinematográfica, Herzog mescla as reminiscências de Onoda com sua própria interpretação dos anos que esse personagem, também real, ficou à deriva no inferno verde.

De fato, em sua jornada épica, porém absurda, no sentido do existencialismo de Camus, Onoda manteve-se incógnito por 29 anos, mas Norio Suzuki não precisou de mais de dois dias para encontrá-lo. Depois de algum tempo na alça de sua mira, o viajante informa que o conflito acabou há décadas e o atualiza em matéria de geopolítica. O tenente se recusa a acreditar. Os homens dialogam em 1974.

Daí em diante, como num grande flashback, a prosa volta no tempo, a dezembro de 1944 e aos primeiros meses de 1945. No palco do Pacífico, segue a incursão dos americanos nas Filipinas, nos estertores da Guerra. Meses mais tarde, o tenente e sua tropa se embrenham na mata, sua missão é irrevogável. Então, de capítulo em capítulo, os sucessivos saltos temporais dessa releitura poética nos fazem sentir o fardo de Onoda e o peso das décadas vindouras.

Aura do perigo
No coração da obra de Herzog está uma representação existencialista da natureza, que é força opressora e violenta, desprovida de moral e totalmente indiferente à vida e aos esforços humanos. Sendo assim, o grande inimigo de Onoda não são os soldados filipinos ou americanos, estes meros figurantes. É a própria natureza selvagem, cuja fúria indômita, particularmente evidente em O crepúsculo do mundo, provoca, a um só tempo, fascínio e medo.

A floresta é paisagem com a aura do perigo, da morte à espreita. O clima úmido vai impregnando e comendo tudo, tudo apodrece, tudo se decompõe. A chuva, cujos roncos monstruosos irrompem da copa das árvores, tudo cala — os homens e a natureza. Herzog utiliza ricas metáforas que dão movimento, vitalidade e alma às coisas do mundo. No ambiente hostil, Onoda regride figurativamente a um estado pré-humano; é um animal sorrateiro movendo-se em busca de abrigo e alimento. Robinson Crusoé encontra O Senhor das Moscas.

O tempo da natureza é marcado pela imobilidade. Logo, Onoda percebe que “o tempo, fora de nossa vida, parece possuir a qualidade dos ataques abruptos, sem a capacidade de sacudir o universo de sua indiferença”. As cigarras, indiferentes ao que seja guerra ou paz, intensificam seu canto monótono. A guerra de Onoda é insignificante para o universo, e o próprio personagem humano é miniaturizado. Assim, Herzog revela um universo hostil e alheio à existência humana. Essa é a perspectiva cósmica fundamental de sua obra.

Herói improvável
Nas quase três décadas de sua guerra solitária, Onoda adquire serenidade e estoicismo. Ele entendeu o verdadeiro espírito japonês anos antes, na prática do Kendo (arte marcial para treinamento e manejo do sabre). Contudo, é na sua desventura ao mesmo tempo surreal e trágica, primeiro com outros soldados e depois, finalmente, sozinho, que se torna fluente na língua oculta da selva.

Essa é a jornada de um herói improvável, personagem quixotesco em busca de redenção e honra. De homem leviano com as mulheres e com os sentimentos, de moral e caráter questionáveis, Onoda se torna um soldado fiel a seus princípios, inabalável no cumprimento de sua missão. A narrativa cria uma aura lendária, de homem fora do tempo, marcado pela tradição, ao imaginá-lo como o último samurai. Não por acaso, seu bem mais precioso — e anacrônico — é o sabre que herdou da família. Mas esse samurai vê os costumes serem esquecidos desde que seu país, contra sua vontade, capitulou. Daí, o crepúsculo do seu mundo. No Japão, o mito do soldado corajoso e solitário mantém viva a dolorosa lembrança da derrota japonesa na Segunda Guerra.

Desvantagens de ser invisível
Para os filipinos, Onoda é o espírito da floresta. De fato, ele se torna uma entidade etérea que ronda as matas, sempre às margens, pois quer se fazer invisível. Surge vez ou outra nos arredores das vilas, de onde rouba víveres. Em seu exílio, é capaz de inferir mudanças geopolíticas e de ordem tecnológica, como quando avista, a partir de meados dos anos 1960, uma nova classe de bombardeiros cruzar os céus. Aos seus olhos, no entanto, o progresso é incompreensível.

Por consequência de seu isolamento, passa a questionar a própria realidade, cujas fronteiras se embaçam. “Será possível que só eu estou sonhando esta guerra? Pode ser, talvez, que, ferido, eu esteja num hospital militar e que, acordando enfim depois de anos de inconsciência, ouça de alguém que foi tudo um sonho?” Ele era um sonâmbulo antes ou estava sonhando o hoje, o agora?

As memórias evocam sonhos.

Sonhos febris.

O crepúsculo do mundo
Werner Herzog
Trad.: Sergio Tellaroli
Todavia
94 págs.
Werner Herzog
Nasceu em Munique, em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial. Iniciou sua carreira nos anos 1960 e tornou-se um dos diretores alemães mais relevantes da sua geração. Criador de uma técnica cinematográfica que se afasta dos modos mais tradicionais do documentário, o prolífico cineasta é um dos mais aclamados da atualidade. Dirigiu, entre outros filmes, Aguirre, a cólera dos deuses (1972), Fitzcarraldo (1982) e O homem urso (2005).
Lúcio Reis Filho
Rascunho