O presidente do júri do Man Booker Prize de 2008, Michael Portillo, ao anunciar o prêmio, fez questão de frisar que a disputa tinha sido acirrada, mas não feroz. Todos os livros finalistas, segundo ele, tinham se mostrado fáceis de ler e difíceis de abandonar (extremely readable and true page turners). Ele sinalizava, então, para uma questão que há muito ocupa a mente das pessoas interessadas em literatura: sucesso de vendas e literatura podem ser sinônimos?
A julgar pelo discurso do ex-quase primeiro ministro britânico (é assim que Portillo se apresenta na cerimônia de premiação), em 2008 o prêmio parece ter demonstrado isso. A boa literatura pode ser encontrada nas páginas de um best-seller, que é o vaticínio para o livro de estréia do indiano Aravind Adiga, que, sem perceber sua imodéstia, compara-se a Flaubert, Balzac e Dickens. (Em entrevista logo após a premiação, ele disse: “Numa época em que a Índia passa por tantas transformações e que, juntamente com a China, deverá herdar o mundo das mãos do ocidente, é importante que escritores como eu tentem destacar as brutais injustiças sociais. Isso foi o que escritores como Flaubert, Balzac e Dickens fizeram no século 19 e, como resultado, a Inglaterra e a França são sociedades melhores. Isso é o que estou tentando fazer — não um ataque ao país, e sim um processo abrangente de auto-exame”.)
Muitos de nós sabemos que a popularidade de Balzac foi enorme, embora ele não tenha conseguido pagar suas dívidas com o dinheiro da venda de seus romances. Dos três citados, creio que apenas Dickens teve suas contas pagas pela literatura. Mas, no século 19, os grandes romancistas ainda podiam sobreviver (uns melhor, outros meramente) com o trabalho de sua pena. Agora, em tempos de crise e incerteza, com as editoras privilegiando as vendas antes que a qualidade de seus catálogos, é natural haver uma certa ansiedade quanto à sobrevivência da literatura, do livro, do editor e do autor.
Pergunta sem resposta
Sobrevivência também é a preocupação central deste romance epistolar — trata-se de sete cartas escritas por um empreendedor saído de uma das mais inferiores camadas da sociedade indiana, endereçadas ao Primeiro Ministro da China, Wen Jiabao. Jiabao é uma personagem do universo político e econômico, mas que aparece despersonificada, como uma mera figura do discurso, o destinatário. Já Balram Halwai — o remetente que surge como uma abstração, ou seja um dos componentes de uma massa indistinta e calada a qual sustenta, com seu trabalho (quase) escravo a sociedade tradicional do país — vai se corporificando e individualizando através do que escreve. Fica a pergunta, que o romance não consegue responder: por que a escolha das orelhas amarelas de Wen Jiabao para ouvir as confissões de um indiano que se apresenta como um caso raro, ao mesmo tempo em que tenta nos fazer acreditar que é o representante ideal da sociedade “empreendedora” da nova Índia?
O narrador, filho de uma família pobre estabelecida uma região paupérrima , nem sequer tem um nome, já que seus pais não tiveram “tempo para pensar nisso”. Ele é apenas Munna, ou seja, menino — maneira como os colonizadores britânicos chamavam os homens da região, fosse qual fosse sua idade. Poderíamos, assim, classificar a obra como um “romance de formação”, porém assistimos à deformação que tanto a tradição cultural do país como a inovação trazida pela importação de modelos culturais estrangeiros trazem para esse cidadão que passa de Munna a Balram, a Tigre Branco, a Assassino, a Empresário.
Assumindo uma visão simplista, porém arguta e ressentida, Balram explica :
[…] este país, em seus dias de glória, quando era a nação mais rica da Terra, parecia até um zoológico. […] Todos tinham seu lugar e viviam felizes […] Até que , graças àqueles políticos lá de Déli, no dia 15 de agosto de 1947 — dia em que os britânicos foram embora — todas as jaulas foram abertas. Aí os animais começaram a se atacar e a se destroçar mutuamente e a lei da selva substituiu a lei do zoológico […] Resumindo: antigamente, havia mil castas e destinos na Índia. Hoje só há duas castas: a dos homens barrigudos e a dos homens sem barriga. […] E apenas dois destinos: devorar ou ser devorado.
O que permite a esse Munna se destacar da massa amorfa e indistinta é sua capacidade de pensar, que o transforma num tigre branco, raridade e, portanto, uma espécie de monstro: “— Meu rapaz — disse o inspetor apontando a bengala para mim —, você é inteligente, honesto, esperto, e está perdido no meio desse bando de burros e idiotas. Em qualquer floresta, qual é o mais raro dos animais, que só nasce um a cada geração?” Sua singularidade pode levá-lo à salvação, ou à perdição, porém. E é essa a trajetória que vamos acompanhando através de suas cartas ao primeiro ministro da grande potência econômica do futuro. Essa trajetória, no entanto, só revela como o sistema já está de tal maneira disseminado no mundo que as próprias saídas são apenas caminhos de retorno, mudando meramente os protagonistas.
Gaiola dos galos
Balram observa e interpreta a realidade à sua volta. Vê sua mãe morrer antes mesmo de conseguir viver. Observa seu pai sendo transformado em burro de carga pela família que, ao invés de oferecer apoio, funciona como um vórtice do qual não se consegue escapar. E tenta, de diversas maneiras, evitar seu destino como devorado. Comentando o tema de seu romance, o jovem escritor ingenuamente admite que, ao conversar com seus amigos latino-americanos, estes sempre se espantavam com o diminuto índice de criminalidade na Índia. Seu romance explicita uma engenhosa — e provavelmente fantasiosa — razão para a falta de reação ante a opressão: a interiorização da subserviência. E oferece a imagem da Gaiola dos galos como uma poderosa metáfora dessa sociedade em que a prisão se exerce no próprio espírito das pessoas. Um pouco confuso, ele ora cita o poeta urdu Iqbal: “permanecem escravos porque não podem ver o que há de belo no mundo”, ora relata episódios esparsos em que um ou outro ser se destaca da massa amorfa dos desvalidos para ser, apenas, esmagado pelos demais desvalidos, sem conseguir sair da gaiola social. A saída — o que ele pensa ser a saída — é o assassinato do patrão, mas de um patrão em especial, aquele que demonstra ter um pouco mais de humanidade, que revela um pouco mais de respeito para o insignificante Balram.
Segundo Sanjay Subrahmanyam, professor de História na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla), ao invés de abrir as portas da gaiola, Adiga está apenas adicionando outro tijolo à parede que pretende derrubar. Correndo em círculos, como o cachorro sarnento que tenta abocanhar a ferida que o atormenta, ele não sai do mesmo lugar. Sua proposta é uma mera repetição, só que, graças a seu ato de violência, com um novo protagonista. O Tigre Branco que extermina seu opressor, se transforma, ele mesmo, num novo opressor — um pouco mais cauteloso, talvez, mas com os mesmos modelos de comportamento e até assumindo o mesmo nome de sua vítima: Ashok. Inseguro em sua transgressão, o autor defende pontos de vista contraditórios, às vezes em parágrafos sucessivos. Terminando seu relato, satisfeito consigo mesmo e sem se sentir assombrado pelo espectro daqueles a quem se viu obrigado a trair, o Tigre Branco constata: “Troquei de lado: agora sou daqueles que não podem ser apanhados na Índia”. Sete míseras linhas depois, ele mesmo reconhece: “Ser apanhado é sempre uma possibilidade. Na Índia, as coisas não têm fim, como dizia Mr. Ashok”.
Majestade sombria
Talvez seja porque a pobreza só possa produzir monstros, talvez seja pelo espírito imediatista e inconformista da juventude, talvez porque, como em toda Odisséia, o destino é sempre o ponto de partida, as cartas redigidas com tanta irreverência e sarcasmo para esclarecer ao ministro de uma potência estrangeira — reconhecida por ser amante da “liberdade em geral e da liberdade individual” — toda a verdade sobre Bangalore, só podem revelar a corrupção, o desalento e a falta de opções na região do “vale do silício” indiano, ou seja, no coração mesmo da Índia mais próspera e moderna. O Tigre se revela em toda sua bela majestade, mas uma majestade sombria, que não pode se reproduzir, conforme está indicado no final.
A coerência do argumento desenvolvido pelo texto sofre com essas contradições. Mas a leitura do livro é agradável, e é difícil deixar de acompanhar esse menino que cresce para servir de alvo, possivelmente, a outro menino. Num saudável contraponto ao exotismo panorâmico da novela da Globo, Caminho das Índias, vamos lendo aquilo que as imagens não mostram: a imundície do rio Ganges, a miséria de grande parte da população, a corrupção presente em todos os níveis sociais, a opressão mascarada de democracia. O interesse pela Índia, revelado em filmes, contos, teses, novelas e reportagens, prece estar monopolizando o mercado brasileiro. Comparando e contrastando as diversas versões apresentadas, podemos ir tentando reconhecer os males e estratégias de uma sociedade tão próxima à nossa em sua desigualdade. Assim, depois de saudar os 36.000.004 deuses que propiciarão os caminhos do livro, podemos nos divertir numa leitura que, provocadora, chama o povo, infelizmente iliterato, para a briga, enquanto adverte e diverte com sua ironia aqueles que se assustam com o despertar de uma classe que julgam dominar e que pretendem ignorar.