O tradicional e o rebelde

A enorme diferença entre os tipos de escritores definidos por Cortázar e os desafios dos autores contemporâneos
Julio Cortázar, autor do clássico “O jogo da amarelinha”
01/01/2008

A literatura contemporânea, da última década do século 20 e do início deste século 21, principalmente, tem se apresentado rica em possibilidades e variedades de narrativa e estilo. São diversos modos de ver e fazer literário. Talvez ainda seja cedo para perceber se estes se tornarão ou não modos específicos, no sentido de alimentar todo um projeto de escrita para um ou outro escritor. O que interessa é salientar que essa multiplicidade não se dá, certamente, por acaso. E, provavelmente, só o tempo indicará mais claramente as tendências agora percorridas. Mas parece que os trabalhos produzidos nos últimos anos, ou a sua maioria, trazem traços conscientes de seus autores de busca e inquietações formais.

O verbo experimentar pode estar sendo usado no sentido interessado e positivo de degustar um ou outro estilo, vestir uma determinada voz narrativa, arriscar um ritmo imprevisto, diferente do experimentalismo das vanguardas do início do século 20. Os escritores contemporâneos, conscientes ou não, experimentam modos de escrever, num interessado diálogo com as tendências passadas e modernas, entre as últimas, estão incluídos escritores como Clarice Lispector, Julio Cortázar, João Gilberto Noll, citados por Reinaldo Laddaga, no ensaio Introducción a un lenguaje invertebrado, sob o possível e provável nome-tentativa de “modernismo tardio”.

O termo aproxima estes escritores das tendências modernistas, indicando que o alento criativo e as propostas das vanguardas do início do século 20 continuaram a inspirar e a aproximar os artistas mais inquietos para o caminho da contestação e ruptura, em vez do da continuidade e repetição dos padrões estéticos tradicionais, institucionalizados com a narrativa burguesa do século 19.

Vendo a proposta criativa como um mapa-guia para determinado lugar, no caso, o texto, entendem-se o pensar e o fazer literário como sinalizador da própria postura do escritor contemporâneo em relação ao passado literário. Principalmente, do século 19 em diante, ou seja, a literatura tradicional, que segue o cânone realista, e as vanguardas modernistas. Interessa perceber onde o escritor se localiza dentro dessas linhas literárias, em qual lugar ele escolhe para colocar sua escrivaninha e seu computador, quais tendências ele confronta e de quais se aproxima em seu processo criativo.

Em Teoria do túnel, ensaio de 1947, Cortázar fala sobre as duas tendências das quais se aproxima como escritor: o surrealismo e o existencialismo. O escritor argentino localiza o seu posicionamento dentro do contexto literário, construindo a partir desse lugar a sua proposta de artista: a teoria do túnel. A imagem da terra rompida por intensa escavação que a abre de um lado a outro, rompendo a sua sólida estrutura, é poderosa para anunciar as intenções de ruptura e reconstrução da linguagem dentro do mesmo espaço literário (o túnel), embora já transformado pelo baque violento e inconformado que anseia restituir à palavra os seus poderes. Tratando-se de Cortázar, os poderes da palavra a serem recuperados não são autoritários e centralizadores, mas potências expressivas, mágicas e visionárias.

Flaubert x Valéry
Cortázar procura analisar os problemas da literatura de sua época, enfocando as atitudes do escritor desde o século 19. Para isso, ele considera dois tipos de escritores: o tradicional, que segue um perfil de literato à maneira de Gustave Flaubert, no qual a questão estética é voltada às belas-artes e à realização formal da obra; e o rebelde, representado pelo surrealista Paul Valéry, que visava a formulação estética da realidade sensível através da individualidade do artista. Idéia já expressa anteriormente nos princípios do romantismo, que tornara a literatura uma expressão pessoal, deixando para trás as alegorias e a universalidade do estilo clássico.

A diferença é enorme: para o escritor tradicional, o universo culmina no Livro (com maiúscula mesmo). Para o rebelde, o livro deve culminar no universal. O artista, segundo o escritor rebelde, não lida mais com a obra de arte como espelho da realidade ou de idéias clássicas. A obra torna-se massa a ser moldada pelo espírito criador do artista, pela sua maneira particular de ver o mundo. Já o escritor tradicional, por mais que tenha rompido com a idéia clássica de nobreza da obra artística — qualquer tema e objeto podiam servir à arte, pois este não precisava ter uma natureza que correspondesse à hierarquia fundamentada no belo e bom —, criou um outro tipo de imposição: a literatura passa a se afirmar como o próprio objeto artístico. “O Livro, objeto de arte, substitui o livro, diário de uma consciência”, lamenta Cortázar.

O lamento está no fato da ainda tão recente noção de literatura, surgida no século 19, como algo que não é poesia, nem gênero, mas algo que trata da experiência sensível, já tivesse que enfrentar logo de início a barreira de uma afirmação literária em bases estéticas. Afirmação que valorizava, acima de tudo, a forma e o estilo, abafando o impulso pessoal e criador.

O escritor rebelde anseia por um livro sem maiúscula. Deseja-o como um objeto comum, cuja importância se dá em função do seu conteúdo e de sua expressividade. O livro se abre para o diálogo — é ponte e revelação — do subjetivo ao universal. Já o Livro, do escritor tradicional, se apresenta como possuidor de um valor próprio, auto-suficiente. O Livro como instituição, como gênero que abriga os outros gêneros literários, como um lugar no qual está contida a sabedoria, a realidade da vida, a verdade. O Livro pretende-se eterno, enquanto o livro pretende-se efêmero, a expressividade da hora, a urgência do instante. Isso não indica a intenção de seguir a superficialidade, a frivolidade da moda, a rapidez e indigestão do fast-food, significa a captura da existência de um momento específico, de uma singular experiência.

Em lúdica analogia, o livro aproxima-se do desenhista que Baudelaire considera ser “um homem do mundo”. Antes de ser artista, em um sentido mais restrito, como aquele que é especialista em uma arte e subordinado a ela, o homem do mundo é aquele que observa, anda pelas ruas, um flâneur, atento a tudo e a todos. Uma alma curiosa e sensível, com apetite voraz pelo que o cerca, que se alimenta da vida e se expressa na arte. Diferente do artista que se dedica a pintar a “eternidade”, contida no filão heróico ou religioso, e que se limita a discorrer sobre a sua especialidade, pensamento estritamente curto para o homem do mundo.

O Livro parece, para o escritor rebelde, como o artista voltado apenas para suas tintas e pincéis, que não vê e não busca cor, textura, sombra e luz nas experiências infinitas que a vida oferece. Esse artista já possui dentro de si a imagem mental das cores, definida pelos livros de pintura e vista em outros quadros. Não percebe as variações e nuances de tonalidades e luzes nas pessoas, roupas, árvores, praças, em tudo vivo ao seu redor. Esse artista julga que a imagem das cores que possui é eterna, enquanto as nuances circunstanciais são transitórias, por isso, frívolas e inúteis. Ele busca, antes da expressão, a posteridade. Não há a percepção de que quando uma moça sentada em um banco de praça abaixa os olhos, num gesto triste, expressa a sua tristeza particular unida à idéia que todos temos de tristeza, que é universal e eterna. Mas ao tirarmos o gesto triste e circunstancial da moça, ficamos apenas com a idéia geral de tristeza, que paira sobre o espaço, abstrata e fria.

Do mesmo modo, o escritor rebelde de Cortázar busca a sua visão pessoal da literatura. Enquanto o escritor tradicional se apodera dos recursos estéticos sem vislumbrar a possibilidade de questioná-los, de transformá-los, de negá-los ou recriá-los, ocupando-se comodamente com o que tem à mão — no caso, as noções já estruturadas de gênero, narrativa, enredo, espaço/tempo, foco narrativo, personagens —, o escritor rebelde propõe que se jogue essas noções estabelecidas fora, ou que sejam usadas apenas como um recurso, não como uma ordem obrigatória, um fim estético. O que ele deseja é uma espécie de linguagem pura. A pureza, não como algo imaculável, mas como despudor expressivo. Quando a linguagem se torna pura, diz Cortázar, cada imagem sofrerá um novo nascimento, e “cada forma prosódica responderá a um conteúdo que crie sua justa, necessária e única formulação”.

O escritor contemporâneo
Depois dos escritores de Cortázar, o olhar recai sobre o escritor contemporâneo. E algumas questões obrigatoriamente surgem, como provocação: como os escritores de hoje se relacionam — em encontro ou confronto — com os dois escritores de Cortázar? Qual posicionamento estético eles assumem diante de tudo que já foi feito e rompido na história literária? Onde se posicionam, como se posicionam — estética e criativamente? E a partir da posição que assumem, como trabalham com o gênero, com o tema, com todos os elementos da narrativa? Perguntas inevitáveis que não possuem respostas definitivas. Pelo contrário, se abrem a caminhos infinitos.

Primeiramente, parece claro que o desafio do escritor contemporâneo não é o mesmo do escritor rebelde de Cortázar, o que não quer dizer que este não esteja mais vivo do que nunca, mas é um desafio que talvez possamos chamar de cumulativo. Todas as questões de gênero, tradições, rupturas continuam fervilhando no universo literário contemporâneo, embora não se apresentem, por questões óbvias de diferenças de tempo-espaço, com a mesma urgência e intenção de rompimento ou de permanência. O escritor de hoje tem acesso a uma biblioteca imensa de estilos e modos de escrever. Portanto, acumula-se à questão do escritor rebelde — e suas experiências contra a literatura tradicional — a própria questão contemporânea, que possui em sua memória histórica tanto a afirmação quanto a negação da tradição. Este escritor vivente do início do século 21, diante de tantas informações e referências, corre o risco de ser seduzido por tantos caminhos e de se perder em um labirinto de possibilidades expressivas, limitando-se a reproduzi-las, sejam tradicionais ou vanguardistas, acrescentando pouco da sua própria época e da sua originalidade pessoal.

Assim, o escritor contemporâneo, inspirado pelo escritor rebelde de Cortázar, impõe a si mesmo o desafio expressivo que percebe de sua época, de seu tempo e que se torna a sua saga pessoal. Para ele, a aventura de escrever não se limita a colocar palavras no papel e contar bem e com alguma graça uma história (essa habilidade é o início e não o fim de sua vocação). Tampouco é utilizar as mesmas armas agressivas do escritor rebelde contra a tradição, já que as mesmas já se tornaram com o tempo, uso e repetição também uma espécie de tradição. Este escritor percebe que muito já foi feito, desfeito, dito, redito e sente no ato de escrever um tipo de saturação do próprio verbo. Há tantas formas possíveis de se contar uma história que ele se pergunta se todas já não foram feitas e refeitas exaustivamente nas últimas décadas.

Enquanto a tradição exalta a linguagem como a expressão mais bela e precisa do ser humano e de seus costumes, a vanguarda quer destruí-la em sua superfície de vidro e gelo, perfurar o seu conteúdo e alcançar o cerne que exprima além dos costumes humanos. Por sua vez, enquanto a vanguarda faz a escavação profunda do verbo, desconstruindo muitas vezes significantes e significados, na busca de criar uma linguagem original para cada situação a ser expressa, o escritor contemporâneo une a esta atitude, que ele não vê mais como um manifesto, mas como uma proposta artística, uma profunda desconfiança de que mesmo as mais diabólicas distorções, as mais radicais experiências dos modos verbais, que buscam exprimir a vida humana da forma mais vital e original possível, contêm dentro de suas explosões e brilho o elemento corrosivo da autodestruição. Cortázar já enxergava no escritor de sua época a angústia do escritor contemporâneo: “a dúvida de que talvez as possibilidades expressivas estejam impondo limites ao exprimível; que o verbo condicione seu conteúdo, que a palavra esteja empobrecendo seu próprio sentido”, como ele próprio diz.

Dessa forma, além do desafio de, diante de todas as realizações literárias passadas e presentes, criar uma linguagem própria, uma escrita singular, o escritor contemporâneo ainda pode descobrir no meio do caminho que, mesmo cavando o túnel e abrindo espaço dentro da terra rígida da tradição, encontrará inevitavelmente dentro da própria linguagem limites comunicativos intransponíveis.

Mas pode ser que, ao assumir a limitação como parte integrante da própria natureza do verbo, esta se torna, por sua vez, expressiva. E alcança um grau de comunicação estabelecido não só por aquilo que se diz, mas, principalmente, pelo que se deixou de dizer. Retomando a analogia do túnel, esses textos singulares, ainda que encontrem limites comunicativos intransponíveis, os utilizam do mesmo modo que são aproveitados a terra derrubada e o espaço aberto com a escavação. De alguma forma, o elemento corrosivo — a impossibilidade — incorpora-se ao processo comunicativo e este comete a mágica proeza de comunicar, não só o que é possível, mas também a incomunicabilidade.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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