O totalitarismo visto da tumba

Kadaré, um Guimarães Rosa sem freios caatinga abaixo
Ismail Kadaré: sem espaçao para oásis
01/01/2001

A arquitetura da escravidão, do trabalho. Do trabalho servil. Os traços retilíneos da ditadura insana. Trabalhar por trabalhar, para esquecer os dias, para nada ter o que pensar. E, depois de tudo, das mortes e dos sonhos evitados; após as noites perdidas a fio em labor… Ah, lá esta ela majestosa, perfeita, eterna. A Pirâmide (Companhia das Letras, 144 págs.), de Ismail Kadaré, é um avalanche sem fim a desvendar os subterrâneos de quem subjuga e de quem é comandado. Há um quê de Tempos Modernos no ar carregado de ironia, onde Chaplin dá lugar a um semideus que projeta a sombra da morte num edifício no qual milhares morrem durante sua construção.

Faraós no topo das organizações modernas: repare bem, leia atentamente, feche os olhos e verás que os egípcios edificadores da Pirâmide formam a própria linha de montagem de fabricas de automóveis das décadas de 60 e 70. Justamente as décadas onde proliferaram a linha de montagem de exércitos inteiros à direita e à esquerda do bom senso. “Há soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos de arma na mão. Nos quartéis lhes ensinam antiga lição. A morrer pela Pátria e viver sem razão.” Vandré, advogado, letrista e ídolo a esquerda. Lúcido. E louco de 70 para cá.

Faraós loucos, contaminados pela ânsia de terminar os edifícios que lhes abrigue o corpo pela eternidade… Esse tempo captado pelo humor acido de Woody Allen. “A Eternidade e longa. Principalmente no fim.” Então, não se preocupe, ao longo das 144 páginas (12 ao quadrado, ciclo de 12 meses, 12 os apóstolos de Cristo etc.) você poderá advinhar se a construção da pirâmide eterna obedece a todas as leis da cabala. Pois Kadaré, nascido em 1936, em Girokastra (Sul da Albânia) foi aprimorando romances (A Fortaleza, Crônica da Cidade da Pedra…) e acabou exilando-se na França há 10 anos.

A Pirâmide poderia ser apenas uma alegoria dedicada a Enver Hoxha, líder comunista que tornou seu país numa ilha perdida no mapa ao longo de 40 anos. A metáfora desaforada qual furacão devora ideologias ou cartas sociológicas. Mergulha na imensa solidão pétrea de quem ordena a portentosa obra do próprio túmulo. É noite no coração do Faraó; e trabalho-e-morte-e-trabalho-e-morte na vida de quem sobrevive no andar de baixo.

Incrível: A Pirâmide não da trégua. Não há espaço para oásis; não há vento estelar sombrio após a noite angustiante. Mas, e incrível: em meio ao véu, aos parágrafos dilacerantes, o trabalho rebuscado deixa entrever uma saída. Talhada na crítica. Kadaré parece apostar todas as fichas no texto agolopado, como um Guimarães Rosa sem freios caatinga abaixo.

Eugenio Araújo
Rascunho