Ler Gertrude Stein é um exercício de liberdade. As palavras nas mãos dela se transmutam em malabares. Ela joga, pega, joga de novo, solta e o leitor entra nessa órbita que surpreende a cada meia volta. A leitura em voz alta potencializa a sonoridade do texto, que é puro acorde musical. Os personagens, aliás, cantam um bocado. A narrativa, de tão teatral, nos leva a imaginarmos atuando num palco onírico a ser explorado durante a vigília.
Nas palavras de Edith Thacher Hurd, companheira de Clement Hurd (ilustrador da edição original de The world is round): “Como a maioria dos bons escritos, O mundo é redondo não produz instantaneamente seu significado completo”.
Ao ler o livro, não se chega mesmo a um lugar definitivo, é simplesmente um caminho, a possibilidade de um encontro. Tal encontro depende do leitor, pode ser com ele mesmo ou com outro alguém. A narrativa é, portanto, uma viagem em busca da identidade. “Uma rosa é uma rosa é uma rosa” — essa célebre frase de Gertrude Stein, retirada do poema Sacred Emily, publicado em 1913, refere-se a uma afirmação de identidade: as coisas são o que são. Uma rosa basta para ser uma rosa, não precisa de outra palavra que a descreva. Não por coincidência, a personagem principal do livro chama-se Rosa.
Viagem interior
Rosa, cuja cor preferida é azul, sai em busca da sua identidade ao criar uma meta: chegar ao topo de uma montanha e lá se sentar numa cadeira azul. Para isso, a personagem se mune de coragem, persistência e esforço, afinal, carregar uma cadeira como bagagem numa caminhada não é tarefa fácil. Para a façanha, mergulha em aventuras, em florestas e até enfrenta um leão. Estar sozinha dentro de si (floresta) é realmente assustador, como relata a menina nesta passagem:
Bem quando você está totalmente sozinho na floresta mesmo que a floresta seja adorável e aconchegante e se há lá uma cadeira azul que nunca pode ser má, mesmo assim se você ouve sua própria voz cantando ou mesmo apenas falando bem ouvir qualquer coisa, mesmo que seja tudo seu mesmo e você ouve sua própria voz então é assustador.
No entanto, a ideia de olhar o mundo do topo de uma montanha com a visão panorâmica de 360 graus é o que nos prende — e também a personagem — à história. Metaforicamente, caminhamos para longe de tudo até alcançarmos o topo de nós mesmos.
Técnica literária
A autora vai à exaustão com a palavra, numa repetição livre. Brinca com a expectativa e com a angústia da demora em se chegar ao ponto desejado. Nessa trajetória, tagarela igual a uma criança no banco de trás do carro durante uma longa viagem. Esse fluxo da consciência é um espelho para o pequeno leitor. O termo “fluxo de consciência”, conceito cunhado pelo filósofo americano William James na área da psicologia, migrou para a escrita literária. Em tempo: James foi professor de Gertrude Stein.
A liberdade não está somente na forma consagrada da escrita de Stein, mas também na estrutura do roteiro. Alguns personagens simplesmente somem da narrativa, são como instrumentos para se chegar em algum lugar e, quando desnecessários, não voltam mais. É o caso do pobre leão Leonel: “Então isso era tudo que havia sobre o Leonel o leão e ele nunca esteve lá jamais em nenhum lugar nem aqui nem ali nem ali nem aqui, Leonel o leão nunca esteve em nenhum lugar. Fim de Leonel o leão”. Há um corte seco: ele se esgotou, por que voltar.
Sentiu falta do ponto de interrogação na frase anterior? Percebe-se esse recurso no texto inteiro. Ela não usa o ponto de interrogação porque esse caractere lembrava os sinais para marcar gados. E, de fato, no contexto da escrita, ele — o ponto de interrogação — realmente não faz falta. A vírgula também é um recurso usado com parcimônia. A autora, inclusive, deixou uma orientação de leitura:“Não se importem com as vírgulas que não estão lá, leiam as palavras. Não se importem com o sentido que lá está, leiam as palavras mais depressa. Se tiverem alguma dificuldade, leiam mais e mais depressa até não terem”. Se pensarmos que o texto carrega a forte característica da oralidade, as vírgulas são hiatos invisíveis para tomadas de ar, mas na escrita sem vírgulas podemos ler (e reler) as frases de uma maneira autoral, respirando e criando nossos próprios silêncios e entendimentos.
Histórico e tradução
O mundo é redondo foi publicado em 1939, a convite de Margaret Wise Brown, da então recém-fundada Young Scott Books. Um ano antes da publicação, a editora enviou uma carta convidando Stein, entre outros escritores, como Pound, Apollinaire e Hemingway, a escreverem uma narrativa para o público infantil. Stein respondeu entusiasmada que acabara de escrever um original dessa natureza. No texto, reconhecemos a mesma Stein dos livros para adultos. Escreve sem subestimar o leitor, qualquer que seja sua idade, numa profunda sinceridade e ousadia. Algumas liberdades deste mundo redondo: desdizer o que acaba de dizer “… Rosa foi encontrada. Ela nunca foi perdida e então como poderia ser encontrada mesmo que tudo anda ao redor e anda ao redor”; repetir quatro vezes o título de capítulo (Noite é o título dos capítulos 19, 20, 21 e 23), enfatizando o cenário interior da narrativa e também da personagem, já que é de noite que os medos e monstros aparecem. E muito mais. O resultado é o que podemos chamar de leitura crossover, ou seja, apesar de classificada como literatura para a infância, é uma obra para todas as idades.
A tradução empolgante de Dirce Waltrick do Amarante e Luci Collin, que participaram também do segundo livro infantil de Gertrude Stein — Para fazer um livro de alfabetos e aniversários —, garantiu a sonoridade, a graça e o ritmo musical da obra. Como coautoras, deram toda a liberdade às palavras para manter o jogo sonoro da leitura. A dupla também assina o posfácio.
Imprevisível
O acontecimento do último capítulo é um final empregado em tantas narrativas que, neste livro, se torna imprevisível. Ao ignorar rótulos, limites e etiquetas, a autora consegue surpreender até mesmo com o mais banal dos desfechos.
Os grandes e pequenos podem embarcar nessa viagem literária. “Quando vejo que vi que posso. Sim eu posso”, diz a personagem Rosa, dividindo com o leitor a força íntima que habita lá no topo da montanha particular de cada um. Basta que estejamos dispostos a subir.