As imagens da infância, em literatura, costumam ser encaradas com certa ambigüidade. Entre a transfiguração lírica do mundo pela experiência da criança e a ironia inevitável pela qual o adulto a revive, a criança que o adulto imagina reflete o drama de um sujeito que se vê dividido entre o tempo perdido, com suas memórias, e o tempo presente, de difícil história. A mescla entre o tempo perdido de um mundo impregnado de infância e o tempo presente do mundo irônico dá o tom das obras que, desde O ateneu (1888), de Raul Pompéia, povoam a ficção produzida no Brasil, tão jovem, de crianças que, desde cedo, amadurecem num espaço de relações sociais difíceis.
Às vezes, a infância não é só o tempo em que se passa a narrativa, mas também a chave para a produção de uma obra: Manuel Bandeira afirma, no começo do Itinerário de Pasárgada (1954), que “o conteúdo emocional daquelas reminiscências da primeira meninice” identifica-se com a emoção “de natureza artística”, e Manoel de Barros propõe, em O livro sobre nada (1996), que a “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Experiências assim são imprescindíveis à formação de uma literatura infanto-juvenil, que, no Brasil, ganha seu mestre a partir da década de 1930, com a série do Sítio do Pica-Pau Amarelo, criada por Monteiro Lobato como alegoria de um Brasil que, na mesma década, via surgirem as leituras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Teríamos que esperar, no entanto, até a década de 1970 para encontrar uma geração brilhante da literatura infanto-juvenil, da qual faz parte a obra do mineiro Bartolomeu Campos de Queirós.
Ele, que acaba de publicar a novela Vermelho amargo, pela editora Cosac Naify, construiu a melhor parte de sua numerosa obra com livros que não perdem em nada quando lidos tanto por jovens quanto por adultos, como é o caso de O peixe e o pássaro, sua estréia literária, e Ciganos. Mas, ao que tudo indica, em que pese a precocidade do julgamento, Vermelho amargo é o seu melhor livro, pois nele a sua dicção toda metafórica e sempre à procura das imagens fantásticas que carregam a dor de sua criação encontra uma sintaxe extremamente cuidada e entrecortada, não deixando que o livro nos leve ao mundo mágico da fantasia e da correção moral. Ao mesmo tempo, em lugar das tradicionais ilustrações, o projeto gráfico toma as letras como imagens, e a conversa que as letras estabelecem com o formato do livro é precisa e prazerosa — pondo o leitor diante de um livro-objeto. Não estamos no terreno da literatura infanto-juvenil, estamos no terreno da literatura, ponto.
Barra pesada
Narram-se, no livro, memórias de infância. Não se lerá, no entanto, a história da formação do escritor, mais diretamente. O que se lê, desde o começo, é a dificuldade de narrar a amarga infância, a barra pesada de encarar um momento de dor que o tempo não curou. O amargor do vermelho revela-se menos na capa, mais sanguínea, que dentro do livro, em tom de vinho tinto, onde se lê o começo essencial: “Foi preciso deitar o vermelho sobre papel/ branco para bem aliviar seu amargor”. Após a advertência, todo o livro se escreve neste vermelho amargo que impregna a cor das letras de uma memória afetiva — o alívio do amargor.
As palavras em vermelho assumem a dupla função de atuarem como um elemento antiilusionista, pois nossos olhos estão acostumados às letras pretas, e como lembrança formal da dor de escrever, tornando a narrativa ainda mais comovente. Além disso, a capa dura e espessa, de papelão, dá um ar de caixa à obra: abrir o livro é abrir um baú de memórias com palavras que costuram o amargor a fim de aliviá-lo. Assim, os elementos gráficos do livro — como a cor das palavras — são simbolizados pela própria obra e interferem ativamente na experiência da leitura, modificando a percepção do texto. Só por ser rara uma incorporação tão bem-sucedida do projeto gráfico à prosa de ficção, o livro já merece uma atenção especial.
Se, no aspecto gráfico, o livro traz essa marca própria da tradição da literatura infanto-juvenil, que dialoga o texto da ilustração com o texto escrito, no plano narrativo a história se constrói sob a memória dos contos de fada. É que se lê um momento na vida de uma criança que perde a mãe e passa a ser criada pela madrasta, assim como uma série de personagens heróicos das narrativas de tradição oral. Todo o livro narra, de fato, o desenlace da sombra da mãe, presente inclusive nos mínimos detalhes, como na frase de abertura, permeada pela sonoridade da palavra “mamãe”: “Mesmo em maio — com manhãs secas e frias — sou tentado a mentir-me”. O signo de corrosão — a mentira — que abre a ficção — a mentira que se quer verdade — em frase tão bonita encena a queda do protagonista, que se inicia bem antes da perda da mãe: “Nascer é afastar-se — em lágrimas — do paraíso, é condenar-se à liberdade”.
O eco existencialista desta dicção lapidar, ou proverbial, vai construindo um personagem que não se deixa fazer de vítima encantada dos males do mundo, como os heróis dos contos de fada. Em lugar disso, em lugar de confiar na reversão moral — porque o bem sempre vence o mal —, o menino, diante do espelho invertido da madrasta, inverte as palavras e desconfia delas. Condenado à liberdade e tentado a mentir-se, o jogo com as palavras é o antídoto à dor, uma reelaboração que reencaminha o menino para as ambigüidades da dor. Comum à mãe e à madrasta, o preparo cotidiano do tomate é a cena desta novela que condensa tais ambigüidades.
A esposa do meu pai prezava o tomate sem degustar o seu sabor. Impossível conter em fatia frágil — além da cor, semente, pele — também o aroma. Quando invertida, a palavra aroma é amora. Aroma é uma amora se espiando no espelho. Vejo a palavra enquanto ela se nega a me ver. A mesma palavra que me desvela, me esconde. Toda palavra é espelho onde o refletido me interroga. O tomate — rubro espelho — espelhava uma sentença suspeita.
Entre “te amo” e “te mato” — sentenças suspeitas —, o “tomate” insosso da madrasta — “fatia frágil” — é a armadilha necessária para a qual o menino se sente atraído, ou seja, a armadilha da linguagem: “A mesma palavra que me desvela, me esconde”. Assim, diante do afunilamento das saídas literais e verdadeiras, a mentira se transforma na verdade do menino, e o jogo da literatura então começa.
A força deste jogo, além de embaralhar os sentidos da história do menino, chega a reorganizar os elementos que sustentam a sua vida. Assim, à história previsível contrapõem-se as surpresas que a linguagem nos revela: “Colher rosa, uma tarefa perigosa e não valia a pena, ou valia tantas penas. Na rosa, a vida é breve, e, nas feridas, a vida é longa”. Em meio ao ritmo entrecortado e atravessado por rimas (rosa/perigosa, feridas/vida) e jogos de palavras (valia a pena/valia tantas penas), “a vida” aparece como um elemento autônomo às coisas e presente tanto nos seres biológicos (rosas) quanto nos subjetivos (feridas). Em lugar de uma frase mais previsível (“a vida da rosa é breve”), o desmembramento “a vida na rosa” entende não que a flor tem vida, mas que a vida está na flor, o que faz com que a noção de vida se manifeste em todos os seres que sejam nomeados por uma palavra (rosas, feridas, tomate etc.), em lugar de se basear científica, religiosa ou culturalmente.
Por isso é que, na obra de Bartolomeu, os jogos de palavras, as ilustrações, o diálogo com o projeto gráfico são sempre etapas necessárias para um salto, para a recriação do mundo através da linguagem. Vermelho amargo conflui assim duas linhas da literatura brasileira, uma que parte de uma experiência de extrema angústia do personagem e se mistura a imagens fantásticas numa ambiência irreal — como em Cornélio Penna, Lucio Cardoso e, depois, em Clarice Lispector — e outra que transfigura o universo do personagem através de um trabalho artesanal de construção da escrita — nela, a obra de Guimarães Rosa é o ponto alto.
Embora a identificação de linhagens não atribua, por si mesma, valor à obra, o seu lugar de confluência entre essas duas tradições tão significativas e a da literatura infanto-juvenil é único no panorama da literatura brasileira. É por esta confluência que se pode compreender melhor a “prosa poética” do livro — termo freqüentemente atribuído à escrita de Bartolomeu, que muitas vezes é admirada pelo ar romântico que seu estilo metafórico sugere: “Eu suspeitava que o embaraço das letras amarrava segredos que só o coração decifra”. Essa positividade do coração, porto seguro do sentido, convive com a negatividade da corrosão, aquela mentira necessária à ficção.
É esta corrosão que movimenta a narrativa, cheia de idas e vindas, num crescendo durante o qual a perda do porto seguro materno vai se confundindo com o ganho da deriva narrativa, uma equação que apresenta uma complexidade especial. Quando, em dado momento, lemos “minha primeira leitura se deu a partir de um recado rabiscado pela faca no ar cortando em fatias o vermelho”, parece que tudo se encontra: então o tomate cortado pela faca se confunde com o vermelho amargo em fatias que, ao fim e ao cabo, de acordo com a advertência que o livro nos colocara, são as próprias letras lançadas sobre o papel branco.
Por este caminho, é possível encarar o livro de Bartolomeu como um ensaio sobre a leitura — pois, “para bem aliviar o amargor”, a narrativa da infância, quase que paralisada diante da cena do tomate cortado, faz o narrador perceber que todo o investimento afetivo nesta cena explodiu-lhe os significados e abriu o espaço necessário à escrita. “Sua partida me legou, como herança, a habilidade de explorar meu tesouro em seu vazio.” A leitura é uma ocupação textual daquilo que não chegou até nós, uma instalação à deriva.
LEIA a participação de Bartolomeu Campos de Queirós no Paiol Literário.