O século 20 produziu uma forma própria de fazer romances. Recebendo, do século anterior, o legado de uma linguagem realista consolidada, de que o exemplo maior, em língua portuguesa, é Eça de Queiroz, o século das guerras mundiais resolveu ser mais realista que o antecessor, e se deparou com contradições elementares do romance. O realismo da memória desembocou no romance sem fim de Marcel Proust, o realismo do cotidiano desembocou nos jogos de escrita de James Joyce, ambos os casos em que o realismo não se separa de uma escrita que produz a representação, ou seja, inventa uma realidade e, no entanto, não é “fruto de imaginação”.
Enquanto Eça de Queiroz gostaria muito que os leitores reconhecessem os desvios e inversões morais da sociedade portuguesa representada em seus romances, imagino que Joyce ou Proust gostaria que os leitores reconhecessem os desvios e inversões do estilo produzido para representar a vida de seus personagens e narradores.
O legado desta espécie de “era do romance” na literatura não podia deixar de ser notado num tempo que se vê, em muitos sentidos, como posterior à modernidade, pois ela já deixou uma tradição por onde passou. Assim é que o romance contemporâneo se coloca sempre numa relação problemática com a tradição do romance, e isto é feito de maneira extremamente exemplar em As três vidas, do português João Tordo. Não é à toa que se trata de um romance muito premiado.
Originalmente publicado em 2008, o livro recebeu, no ano seguinte, o Prêmio José Saramago, concedido ao livro de prosa de ficção de autores lusófonos com até 35 anos. Aliás, as três últimas edições do prêmio, que é bianual, deram publicidade a três autores que constituem uma nova geração da prosa portuguesa: além de Tordo, receberam o mesmo prêmio livros de Gonçalo M. Tavares e Valter Hugo Mãe. Cada um desses nomes pode ser lido como um modo de ler o romance moderno.
Publicado no Brasil no final de 2010, pela coleção Ponta de Lança da editora Língua Geral, uma coleção indispensável para quem deseja ler a prosa contemporânea, A três vidas está atualmente entre os 10 finalistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura.
Manto de mistério
Esta posição de prestígio em que o livro se encontra parece ser conseqüência do seu caráter exemplar. Ele apresenta a história de um homem, o narrador, jovem professor de inglês, que, à procura de trabalho para sustentar a si, a mãe e a irmã, se depara com um convite um tanto misterioso, que aceita. Passa a trabalhar e a morar numa casa muito ampla, chamada Quinta do Tempo, na pequena cidade de Santiago do Cacém, arquivando as fichas dos clientes de seu curioso patrão, António Millhouse Pascal. Tudo naquele lugar precisa ser protegido por um manto de mistério, e o narrador muito a custo começa a compreender um pouco do que ali acontece.
Logo sabemos que Millhouse Pascal, antes de retornar a Portugal, viveu na Espanha durante a Guerra Civil, na Inglaterra durante o governo Churchill, nos Estados Unidos pós-guerra. Além disso, quase todos os clientes do lugar eram estrangeiros que ocupavam ou tinham ocupado altos cargos de confiança na política de seus países, inclusive em agências como a Gestapo, a CIA, a Stasi. Figuras curiosas, chegavam de quando em vez à Quinta e ficavam alguns dias “em tratamento”. Numa espécie de terapia misteriosa, saíam outros daquele lugar, atiçando a curiosidade do narrador.
Esta casa, isolada no espaço, “onde o tempo parou no tempo” (na fala de um dos personagens), acolhia e desejava curar as narrativas do submundo do poder no século 20. Ao organizar os arquivos destes clientes, o narrador não poderia ser mais explícito ao perceber o que se delineava em sua história: “naquele pequeno escritório camuflado dentro da biblioteca, estava a revisitar a história de um século que tinha sido vivido pelo meu patrão com uma intensidade invulgar”. O livro deixa muito claro ao leitor, desde o começo, o lugar que deseja ocupar, sendo ele mesmo uma quinta do tempo, de localização imprecisa, onde se revisita o século. A consciência que demonstra do lugar que se espera para a literatura contemporânea, o de uma literatura que estabeleça outras relações com a modernidade, é que é exemplar.
Essa transparência do projeto do romance é muito comum hoje. A necessidade de o livro ganhar visibilidade editorial para que possa ser mais lido se traduz na clareza que muitos escritores manifestam em seus livros, muitas vezes inseridos em séries maiores de publicação — trilogias, ciclos, projetos. O caso de João Tordo não apenas é bem-sucedido, mas também traz alguns elementos para pensar essa situação. De todo modo, logo se vê que As três vidas é um romance que, no mínimo, coloca para si problemas fundamentais da literatura contemporânea, e o faz de maneira singular, procurando fazer a história das heranças que recebe.
É curioso que, a um dado momento, ao listar as leituras que Millhouse Pascal lhe propunha, o narrador coloca lado a lado romances e um livro de filosofia, ou melhor, um livro que é ao mesmo tempo filosofia e literatura: 1984, A montanha mágica, Crime e castigo, O apanhador no campo de centeio e A república, de Platão. Embora o romance de George Orwell, 1984, reapareça mais vezes ao longo de A três vidas, o livro de Platão guarda uma famosa alegoria que ilustra muito bem o romance de Tordo. É como se a Quinta do Tempo fosse equivalente à caverna imaginada por Sócrates, e o século passasse como um cinema, projetado naqueles arquivos e naqueles personagens. Deixo para os leitores descobrirem se este narrador se tornou um filósofo, conseguiu se desvencilhar das correntes e sair da caverna.
Pouco convincente
Independentemente disso, o fato é que o narrador estava lidando, no seu trabalho, com enigmas que ultrapassavam seus conhecimentos. Por um lado, esta relação com os enigmas se dá de maneira simplista, pois o livro, de cerca de 600 páginas, anuncia, em tom de suspense, alguns acontecimentos terríveis e intrigantes que acabam por se mostrar pouco convincentes. Por exemplo, ao ser submetido à “experiência” que Millhouse Pascal proporcionava a seus clientes, o narrador perde as referências de realidade, o que se explica, no romance, por uma separação muito clara e muito bem organizada entre as zonas de mistério e de realidade:
“O teu pai continua morto, ainda que o tenhas visto.”
“Ele estava aqui, nesta sala.”
“Ele encontra-se numa dimensão diferente desta. Tal como o cão de que falaste. Essa dimensão é acessível, mas cada viagem tem custos tremendos para a psique.”
Esta separação muito clara acaba por reduzir, algumas vezes, o suspense tão anunciado durante o livro, pois ele se explica muito claramente através de projeções dos personagens (“uma dimensão diferente desta”).
Por outro lado, esta relação que o narrador precisa estabelecer com enigmas, ou com o século como um enigma, é figurada de maneira tensa e difícil em diversos momentos. A começar, desde a primeira frase do livro ficamos a saber das habilidades que foram aprendidas durante os anos de trabalho do narrador.
Ainda hoje, sempre que o mundo se apresenta como um espetáculo enfadonho e miserável, sou incapaz de resistir à tentação de relembrar o tempo em que, por força da necessidade, fui obrigado a aprender a difícil arte do funambulismo.
Esta arte, a da corda bamba, foi conhecida pelo protagonista através dos três netos de Millhouse Pascal, mais especificamente através de Camila, a neta adolescente, pouco mais nova que o narrador. A relação com os adolescentes proporciona os momentos mais libertadores e prazerosos do livro, entre os quais a bonita cena em que, de carro a caminho do encontro com os amigos, ao som do álbum Abbey road, dos Beatles, os jovens têm uma divertida e gostosa conversa, que precede uma noite de jogos e bebidas. Deste universo também parecem sair o sobrenome de Millhouse Pascal (ao lado do filósofo, Pascal, o Millhouse mais conhecido é um personagem do seriado Os Simpsons) e a representação da Quinta do Tempo como uma espécie de “neverland”, uma referência ao livro de J. M. Barrie, o Peter Pan. Este universo de referências, que oferece uma leveza inesperada para um livro de grande amplitude, é sugerido desde a epígrafe, retirada de um seriado televisivo norte-americano chamado Sete palmos de terra.
O lado pop do livro participa desta coleção do século, sobre a qual o narrador, um homem comum, um arquivista de narrativas do submundo do poder durante o século, dá o seu testemunho. Um longo testemunho: João Tordo conta histórias muito bem, mas é preciso gostar muito de ouvi-las e se deixar envolver pelos suspenses para atravessar as centenas de páginas — que, diga-se de passagem, passam bem rápido, fluem na leitura. O testemunho de um arquivista.
Em que momento começamos a perceber que uma coleção de atos, obras, acontecimentos, que constitui uma história, precisa do testemunho de alguém para não morrer? O romance de João Tordo parece estar à volta desta pergunta. E o faz sentindo falta da história de um século, não para resgatá-la, como se estivesse esquecida. (Muito pelo contrário, é por demais lembrada pelos próprios acontecimentos que nos cercam.) Mas para se diferenciar dela, para elaborar uma diferença entre aquilo que produz e aquilo que já se produziu. Penso que esta produção de uma diferença, de um descolamento, como uma homenagem — póstuma — marca o projeto de João Tordo em A três vidas, tornando a sua leitura um desafio para o leitor que considera a arte um instrumento de conhecimento de si e do tempo.