Dentre os episódios que delimitam o começo ou o fim das várias estações da vida, existe um especialmente marcante para qualquer pessoa: o momento em que se deixa de ser criança e se adentra de maneira irreversível num território assustador, vago, desconhecido, o assim chamado “mundo adulto”. Se quase nunca reconhecemos o fato desencadeador da mudança no tempo exato em que ele ocorre — às vezes são necessários anos para que se compreenda o seu real significado, noutras é preciso que um segundo fato se contraponha para dar ao primeiro a sua correta dimensão —, é indiscutível que essa travessia jamais acontece de forma indolor, caso contrário não seria completa: o sofrimento sempre cobra sua parte na transformação do ser humano.
“Nada pode ser tão banal, mas não é bem disso que estamos falando”. Uma única e singela frase, justamente a que abre Longe da água, terceiro livro do porto-alegrense Michel Laub e sua segunda incursão pela narrativa longa, resume de maneira precisa o que leitor terá pela frente: se a passagem para a vida adulta é de fato uma experiência banal, uma vez que ninguém estará isento de prová-la, Laub se encarrega de construir para o seu narrador-protagonista uma transição peculiar, calcada em duas tragédias que encontram uma correlação excêntrica, mas muito bem resolvida no plano ficcional.
Formado em direito e jornalismo, Michel Laub debutou na literatura aos 25 anos com a coletânea de contos Não depois do que aconteceu, publicada pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul em 1998, mesmo ano em que ele se transferiu de Porto Alegre para São Paulo, assumindo a editoria de livros e cinema na revista Bravo!, da qual é hoje o editor-chefe. Em 2001, lançou a novela Música anterior pela Companhia das Letras, que mereceu o prêmio Erico Verissimo da União Brasileira de Escritores na categoria Revelação. Legítimo representante da novíssima safra de ficcionistas brasileiros, Laub alinha-se com aqueles que guardam distância do hiper-realismo, privilegiando uma escrita sóbria que não faz concessões ao coloquialismo excessivo, à linguagem chula e à escatologia — elementos tão em voga que já se pode falar em corrente —, mas ainda em sintonia perfeita com o ideário contemporâneo. Tanto o livro de contos quanto as duas novelas não se aventuram muito além das 100 páginas; são textos curtos, fortes porque concisos, trabalhados à exaustão para que se restrinjam ao essencial. Modernos enfim, ainda que Laub se mantenha longe do experimentalismo: a palavra fala mais alto do que qualquer idiossincrasia.
Longe da água, outra elegante edição da Companhia das Letras — destaque para a bela capa de Raul Loureiro sobre o fragmento de uma foto assinada pelo alemão Wolfgang Tillmans —, conta a trajetória de um rapaz sem nome, desde Porto Alegre, onde vive a infância e a adolescência, passando as férias de verão no litoral gaúcho, como é hábito entre a classe média porto-alegrense, até a chegada e o começo da vida profissional em São Paulo. Ele tem um “melhor amigo”, Jaime, surfista extrovertido e namorador, no qual se espelha para vencer a timidez e a insegurança comuns da juventude. Jaime namora Laura, com quem o narrador acabará se envolvendo depois que o amigo morre num acidente no mar. A descoberta do sexo e as primeiras experiências amorosas fogem da banalidade expressa na abertura da novela pela sutileza com que são tratadas. Como já era esperado, Laub não cede ao apelo fácil de escancarar detalhes sobre sexo; ao contrário, o início da vida sexual do protagonista anônimo é narrado com espantosa contenção, o que exige uma participação maior (e melhor) do leitor para completar as lacunas todas que o autor deixa propositadamente em aberto. Aqui encontramos uma característica fundamental do estilo de Laub: o leitor é sempre convidado a participar, ora pela ambigüidade intencional do discurso, ora pelo subtexto tramado com perícia — reflexo óbvio da prática do conto —, também pelo fato de o narrador muitas vezes conversar diretamente com ele, e de uma forma muito mais freqüente e explícita que a deixada na herança machadiana:
“Dentro da casinha era viscoso, você está imerso na maresia, e é curioso porque quando criança é difícil entrar num lugar assim. Quando criança você não sabe o que pode haver nesse lugar, você nem está tão certo de que é impossível um desconhecido esperá-lo ali, encostado na parede, as mãos fora dos bolsos, só que Laura era um pouco mais velha: ela já sentara na madeira úmida, e ao seu lado havia um menino chamado Jaime. Você alguma vez ouviu falar de Jaime? Você sabe do que um menino um pouco mais velho é capaz?”
A epígrafe do livro — “Agora vai e busca água e lava este testemunho imundo de suas mãos” —, tirada de uma fala de Lady Macbeth, aponta para outro viés importante: o “testemunho imundo” de Shakespeare é mais que uma chave, senão a síntese perfeita do grande conflito em torno do qual Laub monta sua trama. Se a trágica morte do amigo tem de fato o poder de cortar os últimos vínculos do narrador com a infância, não será apenas por ele ter presenciado o acidente: a culpa torna-se ingrediente fundamental, a imundície, algo só definitivamente confessado no último capítulo, logo depois que a segunda tragédia vem à tona (e que se contrapõe à anterior justamente para que o protagonista alcance o seu exato significado). A traição sui generis é insinuada pelo exótico triângulo que o narrador compõe com o amigo já morto e sua namorada. E o final acaba remetendo ao começo: o leitor, que já desconfiava de alguma coisa nessa direção, vai descobrir enfim sobre o que se esteve realmente falando desde a primeira e enigmática frase.
Longe da água explora a tragédia numa dimensão essencialmente humana. Apesar do cenário de sol, praia, pranchas de surfe e da adolescência retratada em boa parte da história, o drama tem o caráter universal que o faz transcender à sua época e ao seu protagonista. Este visita a infância e a juventude já com olhar maduro, não numa perspectiva que venha amadurecendo no decorrer do tempo. Laub não se permite ter este tempo. Prefere investir a voluntária escassez retornando várias vezes às principais cenas para mostrá-las sob diferentes ângulos. Belo exemplo é o da cena do acidente com Jaime, à qual Laub recorre com insistência, sempre agregando a ela um novo significado. Mesmo assim, nada nunca é completamente às claras, mas insinuado, ambíguo, restando ao leitor uma sensação, nunca uma definitiva certeza, de ter compreendido o que foi dito. Os poucos personagens, assim como o discurso, são construídos com economia de cores, sem filigranas, restritos às características que sejam absolutamente imprescindíveis para a arquitetura da trama. Nada é gratuito, nada é arrebatado, muito menos caudaloso. Laub pesa cada detalhe para que as descrições sejam breves e não menos inspiradas:
“Albatroz é uma vila com calçamento de pé-de-moleque, com aluguel de charrete e doce de leite feito pela dona da padaria. Nada de diferente do resto do litoral gaúcho, a mesma linha reta e contínua para quem é rico ou pobre: sempre chega a hora das cigarras, da chuva que acaba não vindo, do cheiro de grama cortada numa nuvem de preguiça e enjôo.”
Contra todas as possíveis evidências geográficas e etárias, Longe da água não se trata de um relato autobiográfico, exceto pelo que traz, como qualquer outra peça ficcional, das experiências vividas pelo autor.
No que diz respeito à linguagem, são necessárias duas ligeiras ressalvas: às vezes — poucas, é bem verdade — o leitor se surpreende ao encontrar algum deslize contra a eufonia de um discurso composto, como já se disse, com notável esmero. É o caso de “Jaime já”, na frase final do capítulo 5, cacófato incompatível com o bom gosto dominante. Ao perceber o cochilo, é natural que o leitor se pergunte por que Laub batizou de “Jaime” seu personagem, nome que requer sempre a redobrada atenção do escritor na hora de empregá-lo para que ele não se estranhe com os vizinhos de frase. “Por causa dele li” é um segundo e derradeiro exemplo. Existem outros — sem eles não se justificaria a observação —, que igualmente inspiram cuidados, mas que poderão ser revistos para as edições futuras. Outro senão é a tendência de Laub de enfatizar palavras utilizando a grafia em itálico. Tal recurso é válido e precioso, mas, num texto de corte tradicional, deve ser usado com extrema parcimônia para que não se banalize e acabe perdendo, na repetição, o efeito desejado. Como também já se falou anteriormente, o discurso de Laub, ao dispensar experimentalismos e pirotecnias, aposta na força intrínseca das palavras, e o uso recorrente da ferramenta leva o leitor a pensar que o escritor vacila algumas vezes nessa convicção.
Problemas minúsculos, repita-se, quando comparados aos tantos e grandes desafios transpostos por Michel Laub para arquitetar uma obra importante, que figura desde já entre os bons lançamentos do ano.