Dezembro último, dia 12, o telefone toca. São 15 horas, e fico sabendo que Paulo Hecker Filho acaba de morrer em Porto Alegre, vítima de uma hemoptise, já sabedor, sem divulgar aos amigos, de um coágulo num dos pulmões. “Insuficiência respiratória” foi a causa mortis. Enfim — para ele que flertou com a “indesejada das gentes” durante 20 anos, no mínimo, desde 1985, com Perder a Vida (prêmio Cassiano Ricardo), quando retomou a carreira interrompida em livro desde 1955. Trinta anos depois, redivivo, ou redimorto, ali ele criava seu epitáfio, na página 16: “Do alto dos anos cai um grito mudo:/ ser hoje uma lembrança o que ontem foi tudo.”
Fui seu amigo pessoal durante três décadas. Não só o li e reli, como opinei sobre originais seus, chegando ele a reescrever alguns meus (era um “autor de autores” conforme, provocadoramente, eu o definia). Exatamente (ele nasceu a 12 de junho de 1926) com 79 anos e meio de idade essa amizade me fazia desanimar com o fim súbito de um longo ciclo, absolutamente previsível pela vida, porém inaceitável quando o afeto dá as cartas. A morte física.
O acaso é insuperável e, mesmo, um supremo juiz. Mais seis meses de vida e Hecker poderia publicar uma Lira d’oitenta anos ou algo similar. Com um título desses, só apelando ao humor; a sério, talvez homenageando seu mestre, Manuel Bandeira.
Paulo Hecker Filho tinha dois amores na literatura: Mário de Andrade e Bandeira. De Mário, ele seguiu a generosa disposição de epistológrafo, redigindo mais de 20 mil cartas durante 60 anos, cartas cordiais que, na maioria das vezes, eram tidas como nada cordiais; isso porque cometiam o supremo crime de comentar, sem tapinhas nas costas — mas sempre em tom afável —, os deslizes inevitáveis de qualquer escritor, mesmo os grandes. Não foram raros os casos de gente de renome (por respeito à memória deles, e talvez desrespeitando a de Hecker, para que este necrológio não resulte ressentido, não citarei nomes, que vão de A a Z) que lhe pediu: “Pode continuar me escrevendo, mas, por favor, não publica nada a meu respeito”. O Eclesiastes e seu versículo sobre a vaidade fazendo-se leitura obrigatória.
Quando o conheci, no inverno de 1974, disse-me, meia hora após me ver pela primeira vez, eu com 17, ele com seus 48, os mesmos que ostento agora, ou melhor, suporto hoje: “A vida te deu talento, mas não te deu bons dentes”. Era a franqueza desconcertante, de aparência agressiva, mas no fundo exatamente o motivo que me levara a visitá-lo. Eu havia lido um artigo seu num antigo suplemento cultural de um grande jornal de Porto Alegre. O artigo era sobre O homem de macacão, de Oswaldo França Jr. (quem lembra hoje?) e Feliz ano novo, de Rubem Fonseca. O título do artigo diz tudo: “Com um sentido menor, mas muito bem-feito”. E que dizer de seus ensaios, onde expunha cruamente a súmula de um mestre, e até de um gênero, como em A mente de Balzac, Simenon (outra de suas paixões) ou O romance segundo Doconzo?
Doconzo, na verdade, foi uma série de três ensaios, publicada em três semanas seguidas nas páginas centrais daquele suplemento, um ensaio para cada “sílaba” desse desconhecido Sr. Doconzo.
Dá para resumir o romance num só autor? Claro que não. Nem em três, mas aí já era uma quantidade suficiente para o atrevimento heckeriano. Do de Dostoiévski, Con de Conrad e Zo de Zola. Na verdade, o ensaio buscava a excelência do gênero, seu ápice, encontráveis na soma das qualidades individuais do trio. Somados, achávamos o romance perfeito. Quem se atreveria a tal exercício crítico? Um impressionista diletante embora muito culto, segundo alguns críticos quadradinhos. Um “esquisitão da província”, segundo Wilson Martins, a quem Hecker relembrara o erro de sublinhar a obra de Valdomiro Santana e pôr em segundo plano o advento Guimarães Rosa.
“Ele pode chamar qualquer um de ingênuo”
Caio Fernando Abreu, em 1982, quando recém lançara Triângulo das águas, mal desperto de um sono promovido pelo calor, sono interrompido por minha visita, confessou-me: “Devo tanto a um crítico que mal sabe o quanto lhe devo. Paulo Hecker Filho. Assim que publiquei O ovo apunhalado, reconheceu as qualidades do meu texto, mas me acusou de uma certa visão ingênua das coisas. Passei aquele dia, depois de ter lido o artigo de Hecker, trepado numa árvore, sem coragem de descer. Desci horas depois, por insistência de amigos. Está certo, quem escreveu Internato pode chamar qualquer um de ingênuo.”
Internato é a primeira novela explícita, digamos assim, sobre homossexualismo masculino, publicada no Brasil, em 1951. E suas qualidades, tanto de concepção narrativa quanto de mergulho psicológico na condição dos protagonistas, continuam atuais, embora tanto se tenha avançado nessa, enfim, área. Quem leu? Certamente não poucos, mas o silêncio às vezes é a única resposta quando não se está para brincadeiras ou quando matamos a praga milenar chamada insinceridade literária.
Paulo Hecker Filho publicou mais de 20 livros de poemas, com destaque para Araponga (1988), Ver o mundo (1995), Nem tudo é poesia (2001) e A cidade e o homem (2004); seis livros de crítica, entre os quais os notáveis Um tema crucial – Aspectos do homossexualismo na literatura (1989) e O caráter de Jesus (1998), onde ninguém menos que Jesus Cristo é examinado, com a única isenção possível, a da coragem, a partir de releituras de passagens do Novo Testamento, como um temperamento capaz de revidar — e sem a mínima piedade. Hecker produziu ainda para teatro, ficção (contos e novelas), chegando a aproximadamente 30 títulos. Não bastasse, traduziu autores que constituem um desafio, como Apollinaire, Fernando de Rojas (A celestina, um “caso” na literatura espanhola do tempo de Cervantes), Marquês de Sade, Drieu La Rochelle, Roger Peyrefitte e o argentino Benito Lynch, para Hecker autor da obra-prima da ficção latino-americana de todos os tempos, O inglês dos ossos.
Sua vida foi marcada pelos fidedignos amores tragicamente perdidos (a mulher, Dilu, artista plástica que sofreu um AVC nos anos 70 e teve no marido um enfermeiro dos mais dedicados, durante cerca de 20 anos, até o seu fim, em 96; a filha, Laura, morta durante um assalto no Rio de Janeiro no mesmo ano amargo; e o filho Daniel, o caçula, internado por problemas psiquiátricos advindos, sobretudo, de uma campanha da mídia após o envolvimento do rapaz num assassinato do qual ele fora unanimemente absolvido e ingenuamente implicado junto ao grupo responsável pela tragédia, filho que Hecker perderia pouco antes de morrer).
Como ele sobrevivia a tudo isso, eu me perguntava, vendo sua energia aos 75, já sem a mulher e a filha, e com o filho há mais de uma década confinado numa clínica, cada vez mais perturbado? Seria a filha do primeiro relacionamento, Dulce, psiquiatra recém-chegada na casa dos 50, brilhante e ágil como o pai? Os netos que ela lhe dera? Seria a literatura? Seriam pessoas como Celso Gutfreind, poeta, Antonio Carlos Resende, romancista, ou eu? Seriam essas pessoas a ligá-lo, apesar de tudo, a si mesmo?
Mas eu tinha recebido mais de 2 mil cartas nos últimos 31 anos e respondido uma meia dúzia, se tanto. Contentava-me em telefonar-lhe. Era mais fácil, e um atalho que, eu supunha, diminuía-lhe a solidão injusta.
Nunca se sentiu só. “Basta ler”, dizia-me, mas ia ao cinema três vezes por semana. Não há fita de qualidade que não tenha visto desde que o cinema passou a ser em cores. Espetáculos de dança, teatro — estava sempre lá —, e logo uma cartinha em corpo 8, batida em sua Royal fabricada nos anos 40 (cartinha crítica, muitas vezes com correções a esferográfica), chegava às mãos do diretor, de um dos atores, de um bailarino, de um escritor jovem, de algum consagrado, tratados todos de forma igual, sem subserviência. O que para os jovens era um atalho para o acerto, para os consagrados, um desaforo.
Soube, vivo ainda, que não chegara lá onde a maioria pretende. Não formou público. Tinha horror a aparições, a entrevistas. Mas não era um Dalton Trevisan nem um Rubem Fonseca (com quem, aliás, se correspondia). Realizava uma espécie de amizade através desses inumeráveis bilhetes onde a verdade, esse ato miraculoso e ousado, nunca cedia espaço à fama ou a qualquer demonstração de poder.
Não o esquecerei como esquecerei a todos, inclusive aos imperadores, e até à maioria dos amigos, sempre a meu lado, sim, mas chorando ao primeiro cisco.