Ao manusear um livro muito grande e com capa de brochura, ele se dobra e acaba por fazer uma curva que me faz recordar obras sagradas que os fiéis levam debaixo do braço — como acontece com a edição bilíngue e inédita da poesia do chileno Roberto Bolaño (1953-2003), A universidade desconhecida.
Antes, um comentário sobre a tradução de Josely Vianna Baptista: quando se apresenta os originais em castelhano/espanhol ao lado da conversão ao português, vejo aí um ato de coragem e convite. Sinto como se a tradutora nos estivesse chamando a participar de uma conversa com o texto e sobre suas escolhas, o que oferece — pode ser impulso poético que a leitura recente provocou — um ar ainda mais lírico diante desse livro com ares de sagrado.
A poesia de um prosador
Bolaño é um autor inescapável: qualquer um que queira lidar com as tensões literárias e existenciais mais cortantes de nosso tempo precisará enfrentar seus livros. O autor chileno enfrenta a tudo e a todos em sua prosa, discursando contra as definições coloniais que cunham o termo latino-americano e mostrando as afinidades eletivas (e violentas) que essa nomenclatura tem com as ditaduras sangrentas do sul do continente. Para o autor, o que está em jogo na literatura é a vida mesma, aquela que foi jogada dos aviões ilegais legalizados de Pinochet ou esta vida comezinha que convive com assassinatos sistemáticos, hoje e sempre. Para Bolaño, não há escapatória poética — mesmo o mais autônomo verso deve lidar com o cheiro terrível que entra pela janela do poeta que o escreve.
Para solidificar a interpretação proposta, de ter como ponto de referência a leitura religiosa do conjunto, alguns poucos versos já me convertem: “Escrever preces que você irá sussurrar/ antes de escrever aqueles poemas/ que pensará nunca ter escrito”. São palavras que funcionam como o famoso “no princípio era o Verbo”.
Há muitos poemas que serviriam como mote de interpretação para compreender a obra de Bolaño, mas existem convites que mais valem pela recusa: a ideia de ler o prosador poeta pode ser mais interessante do que a de ler o poeta prosador — jogos de palavras deixados de lado: no caminho oposto dos romances, as mais de 800 páginas funcionam como uma experiência sem necessidade de justificativas.
Ser poeta não é transcender a existência. Bolaño está com os dois pés enterrados na vida — que é, inclusive, reconhecível por nós. Para dar um exemplo: coloca a arte contra o amor, mostrando que um poeta que ama não é um homem inspirado e heróico, mas sim um reprodutor das relações mais terrenas e contumazes; não vê a si mesmo além da sua imagem emparedada, coisificada, de que é ele mesmo uma engrenagem teimosa modelada a fazer, trabalhar, ganhar um salário, pagar por seu pequeníssimo quarto.
Nunca pediu grande coisa da vida, basta-lhe ter um quarto e tempo livre para ler. Mas um dia conhece uma moça que mora em outra cidade e se apaixona. A moça virá morar com ele. Surge o primeiro problema: conseguir uma casa suficientemente grande para os dois. O segundo problema: conseguir tirar dinheiro para pagar essa casa. Depois tudo se encadeia (…)
Faço o convite àqueles que ainda não leram o “poema” em questão (no próximo parágrafo enfrentarei estas aspas) que descrevam rapidamente o que é este tudo que se encadeia.
O pensamento preenche a vida particular de cada pessoa, e desse preenchimento aparece um mote comum que permite a essas vidas particulares se engaterem umas nas outras, sobrepostas, como se fossem cadeiras de plástico que se encaixam perfeitamente quando empilhadas: pré-moldadas, elas nasceram para estarem uma sobre as outras.
A respeito da palavra poema entre aspas: uso-a mais por segurança semântica, já que muitos dos poemas são microcontos, manifestos estético-políticos e toda a sorte de gêneros — definidos ou não. A força poética, no entanto, não abandona a forma da poesia mesmo quando não há o óbvio uso de estrofes e versos ou dos famosos poemas em prosa.
Os poemas de Bolaño reafirmam que as palavras poéticas devem ser vistas. Isto significa dizer que não procuram narrar os espaços e os tempos por meio das palavras. Apresenta-se os poemas como fotografias desfocadas e, só depois de tê-los lido, vão adquirindo uma nitidez familiar, como alguém que experimenta com o poeta o que ele coloca diante de nós. A poesia não nos conta nada, ela nos torna intrometidos, enfia-nos na cena poética.
Às voltas com o poético
A vida comum, aos olhos de Bolaño, não é aquela matéria recorrente da poesia moderna (do centro ou da periferia, dos EUA ou latino-americana) que traz o prosaico para indicar uma abertura para o belo, como se existisse uma ponte firme entre arte e vida. O trivial, ao contrário, revela uma crueldade costumeira sem redenção na poesia do chileno, diferentemente do que pode acontecer naqueles romances russos em que o leitor é redimido pela ojeriza ou pela dor feroz. Bolaño é um kafkiano sem justificativas, ou seja, não pode de jeito nenhum deixar que o espantoso não lhe espante tal como faz o tcheco. Por isso, Bolaño nos faz perceber outro tipo resignação:
Passa as tardes sentado numa mesa do terraço do picadeiro tentando escrever, mas não consegue. Não lhe sai nada, como se diz vulgarmente. O sujeito reconhece que está tudo acabado. Só escreve breves textos policiais. A viagem se afasta de seu futuro, se perde, nunca jamais, e ele permanece apático, quieto, trabalhando de maneira automática entre os cavalos.
Imagino que, ao fundo, já se levantou alguém para apontar o dedo e vociferar: “Este é o olhar burguês entediado, não há apatia e quietude na vida dos perseguidos!”. A estes, basta apontar para o mundo: você já observou um ônibus lotadíssimo pela manhã e prestou atenção nos rostos daquelas pessoas empilhadas umas nas outras?
Transformar o cotidiano, aquilo que é terreno e mundano em eternidade não significa mais sacralizá-lo, como era praxe na poesia dita moderna. No conteúdo de A universidade desconhecida, transformar o que é terreno em eternidade é a exposição de que tudo pode estar perdido, de que não há saída.
Bolaño é o poeta que conta a resignação e ao fazê-lo, do modo que o faz, incorre no erro de crer (grifo do próprio autor chileno) ser possível outra coisa ou mesmo que seja possível um lugar onde não se encontre a mesmíssima coisa, o mesmíssimo encadeamento de tudo:
“Sei que há um lugar vazio perto daqui, mas não sei onde.”
As aspas do poeta dão ainda mais sarcasmo ao texto: quem sabe onde, afinal? Alguém tem essa resposta? O convite fica em aberto. Sei que, para mim, a poesia do Bolaño é inevitável.