Há alguns dias, assisti de madrugada na televisão a uma entrevista do editor Raimundo Gadelha. Ele falava sobre a importância das editoras apresentarem livros mais bem acabados, se preocuparem para além do conteúdo. Esta seria mais uma cartada, mesmo das pequenas editoras, para tornar o produto literário mais atrativo aos olhos dos que ainda não foram seduzidos pela prática da leitura. Entendi exatamente o que ele quis dizer quando chegou às minhas mãos o livro Vida útil do tempo, justamente do poeta Raimundo Gadelha. Um livro belíssimo, cuja edição é uma obra de arte no conteúdo e na forma apresentada. A capa dura é revestida com lona de caminhão que além de denotar a eterna viagem no tempo, apresenta um aspecto desgastado, aquele que todos nós vamos adquirindo a partir da ação deste que não conseguimos parar desde o momento em que viemos ao mundo. Neste livro encontramos mais um projeto gráfico muito feliz, bem realizado mesmo. A primeira gravura é um relógio de sol e ao passar as páginas(tempo) somos sempre lembrados de que este símbolo da nossa corrosão está presente em tudo o que fazemos, o tempo todo. É o inexorável que traz a galope “a indesejada das gentes”, como já bem frisou um dos maiores poetas da língua portuguesa. Só que Raimundo Gadelha não se desfaz num rosário de lamentações. Ele usa o tempo a seu favor, à procura de si mesmo, quando faz as viagens de volta que marcam escritores de peso mundo afora. O poema que dá nome ao livro é um belo exemplo disso. “Hoje acordei com o tempo na cabeça/ E, por incrível que pareça, da janela/ eu não senti, eu vi o vento/ Era um menino barulhento…” A idéia geral do livro é a de que a viagem é mais importante que o destino e isso é dito com uma linguagem livre, solta. É com oralidade rara que o poeta comunica suas preocupações universais, percepções que marcam a vida como rugas, registros da história visíveis no espelho. A força de suas metáforas revela um autor de rara opulência. “Foi-se o tempo que o rosto,/ encravado na pedra, julgou-se eterno/ A pedra, em sua imobilidade,/ é pedra pétrea/ e pedra parece que nada fez/ Fez-se o peso do passar do tempo/ Pedro veio no vento/ e, vendo o rosto na pedra, espanto se fez/ Pedro, pedra/ Vida, veio…/ Lâmina, lapso, tempo/ Pedro, por um segundo,/ na espera,/ espelha-se na pedra do tempo.” Gadelha destila poesia com a mesma vontade e fluidez que procura novos autores. Sua atuação no campo literário pode ser resumida com a máxima que está na primeira página do livro: “Tudo é útil, quando não é fútil a vida do tempo”.
Vida útil do tempo
Hoje acordei com o tempo na cabeça
E, por incrível que pareça, da janela
eu não senti, eu vi o vento
Era um menino barulhento…
Carregado estava de graves e de agudos,
de cores e formas
No tempo, em minha cabeça,
apressadamente, ele espalhava
todos os sons e imagens do passado
E vento, soprando um canto familiar,
Levou-me às longínquas cidades do interior
E de lá, eu tentava descobrir quem mais eu sou:
este que hoje está ou aquele que pra trás ficou?