O templo absoluto de Eros

Com Cancioneiro, Francesco Petrarca lança as bases do lirismo universal
Francesco Petrarca, autor de “O templo absoluto de Eros”
28/08/2015

Certa vez, o poeta James Wright saudou Walt Whitman como “nosso pai”, identificando talvez uma ancestralidade irrecusável a todos os poetas pós-Whitman.

Se tal assertiva procede, então com mais razão podemos denominar o poeta toscano Francesco Petrarca como “nosso pai primordial”, aquele que instaurou em seus versos primorosos a noção mais titanicamente universal de um eu lírico.

O impacto de sua obra talvez já não seja perceptível, visto que a tradição ocidental a absorveu completamente. Porém, para apreender a sua força lírica em toda a singularidade é preciso considerá-la em seu tempo, a Idade Média, olhando para trás e atentando-se, no âmbito europeu, aos trovadores provençais, que o antecederam, e mesmo aos seus contemporâneos do dolce stillo nuovo, como Dante e Pistoia, para entender como Petrarca representa um passo adiante na consolidação de um lirismo universal, essencialmente por conta de seu Cancioneiro, que a Ateliê e a Unicamp trazem agora em edição integral e bilíngue, na tradução de José Clemente Pozenato.

O templo absoluto de Eros, construído em devoção à mítica Laura, amada imortal do poeta, esse Cancioneiro é a fonte vital de onde os poetas (em especial os da Renascença) beberam para modular os próprios versos:

Não tenho paz nem posso fazer guerra;
E temo e espero, e ardo e ao gelo passo;
E voo para o céu e jazo em terra;
E nada aperto, e todo o mundo abraço.

Esta prisão não abre nem me cerra,
Nem em si me retém nem solta o laço;
E não me mata Amor, nem me desferra,
Nem me quer vivo, nem me arrasta ao passo.

Vejo sem olhos e sem língua grito,
Clamo por perecer e ajuda imploro;
A outrem amo e me odeio a mim.

Sustento-me de dor, chorando rio;
A morte e a vida por igual deploro.
A este estado por ti, Senhora, vim.

É assombroso como este poema, composto no século 14, já preludia os jogos de paradoxo e antítese da estética barroca; o leitor experiente irá reconhecer ainda aqui, no aspecto formal e no conteúdo, a fonte de inspiração do soneto camoniano “Tanto de meu estado me acho incerto”, uma paráfrase da lira petrarquiana, cujos tercetos constam abaixo:

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém por que assim ando
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

O templo e seu ídolo
A princípio intitulada Rerum Vulgarium Fragmenta e impressa em 1470, a obra é sobretudo um monumento à Madonna Laura, que o poeta conhece em 6 de abril de 1327. A união é impossível pois ela é casada com o marquês Ugo de Sade.

O fruto dessa paixão traduz-se em espantosos 317 sonetos, 29 canções, 9 sextinas, 7 baladas e 4 madrigais; há aí inclusos poemas de cunho circunstancial e encomiástico, mas mesmo nesses se entrevê o implacável “Signor mio” (o Amor) cujo domínio imprime profunda ambiguidade na alma do poeta, como quando festeja a capitulação de um amigo em resistir a tal domínio:

Nem mais feliz (…) que eu, vendo-te depor a nua espada
Que fez ao Senhor meu tão longa guerra

Mais tarde, o próprio poeta refugia-se do jugo, sobre o qual deplora:

Fugindo da prisão de Amor, que fazia
Comigo tudo o que lhe era de agrado

Nesse território onde o Amor é onipotente, o eu lírico agiganta-se num páthos tão avassalador que se impõe, em sua dor, ao sofrimento universal:

Era o dia em que o sol escurecia
Pesaroso da morte do Senhor(…)
E, desatento aos golpes de Amor,
Segui, de mim seguro: e minha dor
Na dor universal assim nascia.

Nesse universo, Laura é a força motriz que fecunda variações de um mesmo tema e também a semideia que incorpora a tradição da dama cristã virtuosa, guia do poeta à virtude, mas que também o atrai à consumação carnal, tal as figuras mitológicas — embora Laura, em seu recato e altivez, seja por vezes comparada à Diana, deusa da castidade.

O “louro” é outra imagem recorrente, tanto aquele que fora Dafne, a amada do deus Apolo, como o laurel que consagra os poetas. A metáfora é expressiva, porque em Laura reside a esperança artística contra o ocaso:

Se eu aqui me demorar
Pode ser que o gentil renome dela
Eu consagre com esta exausta pena

E de fato, Laura representa uma nova noção do feminil na literatura; não é ela a Beatriz dantesca, esta quase a quarta pessoa na Trindade Divina. Em paralelo, Laura é mais real, o eixo de elevados anseios espirituais conjugados ao apelo material do desejo.

A obra expressa sutilmente tais nuanças, sendo dividida em antes e depois da morte de Laura. Num primeiro momento sua pintura divide espaço com a imersão no universo interior do poeta; descida pungente que vai se acentuando mais com o envelhecer dele (disso os versos fazem direta menção) e com os pressentimentos da morte dela. O ápice é quando formalmente a razão é obliterada, num jogo de contrastes do qual o soneto acima é bom exemplo.

Mas a esperança e o enleio à beleza ainda se fazem presentes. Após a morte de Laura, a melancolia reina, restando as lembranças e a indiferença pela vida:

Mas tu, nobreza que do céu me chamas,
Pela memória de tua morte e dores
Pedes que eu despreze o mundo de vez

É nesse momento que Petrarca refina o recurso alegórico, tão presente em Dante, e que é o esplendor da canção CCCXXIII, onde a morte de Laura é representada em seis distintas visões.         Afora o tema central, a obra segue os rumos da vida do poeta, registrando seu exílio em Valchiusa por oposição à corte papal de Avignon e o turbulento ambiente político da época, entre as tradicionais casa aristocráticas da Itália.

A tradução
Questão espinhosa a tradução de poesia. Por definição o fenômeno poético se materializa na transcendência da linguagem, explorando todos seus recursos, e submeter esse trabalho de ourivesaria a outra linguagem é temerário. O problema se eleva se o escritor é eminente.

Petrarca é um poeta de muitos recursos. Não raro recorre ao trocadilho (como em “Laura” e “l’aura”, isto é, “aura”, em português), o que dificulta muito, além de outros recursos estéticos:

Verdi panni, sanguigni, oscuri e persi
(Verdes panos, onde rubro tingidos)

Aqui a assonância se perde, o que por certo é inevitável. Em outros poemas o encadeamento das rimas é modificado, e não raro o tradutor apela para a ordem inversa.

Mas em que pesem tais contratempos, o trabalho de Pozenato é um digníssimo feito. O leitor poderá constatar, nessa edição bilíngue, como a fluidez se mantém, as dificuldades sendo contornadas com brio. O trabalho editorial não fica atrás, ilustrado inclusive com belas gravuras de Enio Squeff e contando com notas explicativas em todos os poemas.

Assim, essa edição do Cancioneiro deve ser saudada pelo leitor brasileiro que nela encontrará não apenas um momento vital para toda a tradição poética ocidental como também motivos de sobejo para aquietar as ânsias do poeta:

E se esta rima não cair no abandono
Por nobres intelectos consagrada,
Terá teu nome aqui memória eterna

Cancioneiro

Francesco Petrarca
Trad.: José Clemente Pozenato
Ateliê / Unicamp
536 págs.
Francesco Petrarca
Nasceu em 20 de julho de 1304, em Arezzo, na Toscana. Desde cedo começou uma vida de peregrinação que iria durar, com alguns intervalos, até sua morte. Por sua formação erudita e talento, teve apoio de importantes famílias aristocráticas, como os Colonna, bem como a admiração de artistas famosos da época, como Boccaccio, que fora seu amigo. Escreveu obras tanto em latim quanto em língua vulgar, sendo nesta última que compôs o Cancioneiro, obra que imortalizou seu amor por Laura, além de influenciar intensamente grandes poetas como Camões e, por consequência, toda a tradição lírica ocidental. Faleceu em 18 de julho de 1374.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

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