O tamanho do inferno

Duas biografias se complementam e oferecem um panorama complexo, rico e cativante de Dante Alighieri
Dante Alighieri por Ramon Muniz
01/05/2023

Você já se perguntou qual o tamanho do inferno?

Galileu Galilei, já. Na verdade, perguntaram para ele.

Em 1588, quando contava com apenas 24 anos de idade, o matemático e astrônomo italiano foi incumbido pela Academia de Florença de calcular o tamanho e a localização exata do inferno, tomando como base a Divina comédia — clássico da literatura mundial escrito por Dante Alighieri entre 1304 e 1321.

Como os nove círculos infernais descritos por Dante se agrupavam na forma de um enorme cone invertido, Galileu decidiu que o primeiro passo seria calcular a extensão e localização do domo que cobriria a sua extremidade. De acordo com os cálculos feitos pelo jovem polímata e futuro precursor da ciência experimental, o centro do domo que cobriria o inferno estaria em Jerusalém e sua dimensão iria de Marselha, na França, até Tashkent, no Uzbequistão.

Feito isso, o próximo passo, então, era definir a espessura deste mesmo domo. Para ajudar a desvendar o resultado, Galileu buscou influência na famosa arquitetura do domo da Catedral de Florença feita por Filippo Brunelleschi entre 1420 e 1436, com 45,5 metros de diâmetro e 116 metros de altura. Baseado nessas proporções, que configuram um dos maiores feitos arquitetônicos da humanidade, Galileu chegou ao resultado: o domo do inferno deveria ter cerca de 600 km de espessura.

Com os cálculos feitos, Galileu os apresentou nas suas Due lezioni all’Accademia fiorentina circa la figura, sito e grandezza dell’Inferno di Dante, e aproveitou das conquistas que vieram como resultado dos seus esforços matemáticos. No entanto, havia um pequeno problema na solução apresentada, descoberto apenas depois: uma estrutura tão grande, sem qualquer tipo de suporte, não seria capaz de se sustentar sozinha e, sendo assim, acabaria por ruir desastrosamente em pouco tempo. Uma resolução incompatível com uma estrutura que deveria contar com milhares de anos de existência.

Quando descobriu as falhas nos cálculos que havia feito, Galileu preferiu fazer boca de siri e não contar a ninguém sobre o seu erro matemático, já que não queria correr o risco de perder o posto de catedrático que tinha acabado de conseguir na Universidade de Pisa. Mesmo sabendo exatamente onde tinha errado quase desde o início, o erro só foi admitido publicamente em seu último livro, Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a due nuove scienze, publicado em 1638, que inicia fazendo um elogio dos erros, argumentando como eles nos ajudam a transpor barreiras e encontrar novas ideias. Como exemplo, Galileu usa a sua tentativa frustrada de desvendar os tamanhos do inferno.

Esta peculiar aventura de um dos maiores nomes da história da ciência serve para ilustrar duas coisas: os perigos de se reduzir a experiência artística a uma simples tradução literal ou matemática; e a enorme influência que a obra de Dante Alighieri teve na formação da imaginação e pensamento de todo o Ocidente. Uma influência que foi capaz de atravessar o tempo e de se espalhar pelos lugares mais distantes.

 A influência de Dante
Em 1808, nos tempos do idealismo alemão, por exemplo, durante as famosas reuniões feitas pelo pequeno grupo de amigos formado por Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, Friedrich von Hardenberg (mais conhecido como Novalis), Ludwig Tieck, Caroline Schlegel, Dorothea Veit e os irmãos Friedrich e August Wilhelm Schlegel, Dante estava entre os assuntos mais comentados. Sua Divina comédia era usada por Friedrich para ensinar aos amigos os princípios da língua italiana e suas formas, rimas e estrutura ilustravam o quão perfeita a poesia poderia ser.

Sobre Dante, T. S. Eliot escreveu: “Dante e Shakespeare dividiram a modernidade entre si”. O poeta italiano Eugênio Montale ousou ir mais adiante: “Frente a Dante, não existem outros poetas. Não há espaço para um terceiro”. James Joyce, o colosso da literatura mundial moderna, declarou sobre o poeta florentino: “Para mim, só existem Dante e a Bíblia. O resto não serve”.

Dentre os grandes autores que tentaram decifrar os versos e a vida do poeta florentino, Giovanni Boccaccio foi um dos primeiros que se lançou com maior paixão e dedicação. Autor do Decameron, Boccaccio era conterrâneo e quase contemporâneo de Dante, além de ser responsável por acrescentar o “Divina” à “Comédia” dantesca.

Os dois nunca se encontraram pessoalmente, mas Boccaccio desde cedo se viu arrebatado pela beleza e pela força dos versos de Dante. Mais do que um poeta de valor divino, tratava-se de um verdadeiro herói, que sofreu na carne as mais vis injustiças terrenas e que merece ser reconhecido e exaltado por todas as gerações. Para Boccaccio, Dante foi responsável por trazer as musas da poesia de volta às terras italianas. Por isso, lançou-se na missão de espalhar a palavra do seu herói por onde quer que fosse, quase como um evangelista. Não à toa ele foi o primeiro professor de Florença a ser pago para dar aulas públicas sobre A divina comédia.

Um dos seus maiores atos em prol da divulgação da importância e valor da obra de Alighieri foi a publicação de Vida de Dante, pequeno livro escrito por volta de 1350, que narra de maneira apaixonada e comovente os caminhos, aventuras e lutas do autor de outros livros importantes, como Convívio e Vida nova. Por meio da homenagem feita por Boccaccio, temos acesso a informações sobre a importância, já naquela época, da principal obra dantesca, que começou a fazer sucesso durante o exílio.

Pela pena de Boccaccio, sabemos que, quando a notícia da morte de Dante se espalhou, literatos de muitas regiões entraram em pânico, pois não sabiam se o autor havia de fato terminado A divina comédia, pois as edições que circulavam eram incompletas. Também ficamos a par das polêmicas envolvendo o orgulho do poeta, que mesmo com saudades imensas de sua terra, se recusava vivamente a passar por cima de seus princípios para garantir o seu retorno:

Dante teve a chance de retornar a Florença, mas precisaria ficar preso e, depois, em ato público, seria entregue à igreja da cidade e então perdoado. Algo que ele negou.

Mesmo sendo curto, o ensaio de Boccaccio sobre Dante traz em si força e lirismo, estilo e reflexão não apenas sobre o biografado, mas também sobre a sua época, com seus costumes e idiossincrasias. Um pequeno livro que abriu caminho e influenciou na feitura de outras grandes biografias, como a Vida dos artistas, de Giorgio Vasari, e as magistrais obras de Samuel Johnson sobre a vida de diversos poetas, incluindo Shakespeare.

Muitos estudiosos julgaram os esforços de Boccaccio de escrever uma biografia de Dante Alighieri como contaminados pela infinita admiração, respeito e veneração. Como consequência, diversas outras biografias e estudos inundaram os espaços literários e acadêmicos.

Pesquisa exaustiva
Dentre os mais recentes, destaca-se Dante: a biografia, do historiador italiano Alessandro Barbero, que se lança a um trabalho exemplar, profundo e com uma pesquisa exaustiva que investiga a genealogia e as relações familiares, literárias e pessoais de Dante. Possivelmente o retrato mais completo feito até hoje, nele conhecemos o Dante poeta, político, negociante e militar.

Para além de todos os dados, escavados em documentos antigos e revisão crítica de relatos feitos por outros historiadores importantes, Barbero tem uma escrita viva, que não se perde na frieza de números e datas. Embora o volume de informações (entre cifras, datas, lugares e nomes) possa assustar em alguns momentos, seguir avançando na leitura oferece a recompensa de conhecer minúcias da vida do poeta, como a sua relação com Beatriz, com outros poetas do período e com a vida cotidiana.

Sem medo e com os olhos atentos aos detalhes e a incongruências, Barbero se lança a desconstruir certos mitos, muitos deles apoiados nas descrições apaixonadas de Boccaccio. Dante era, acima de tudo, um devoto dos estudos? Sua família era, afinal, nobre? A aparência de Dante que conhecemos hoje é próxima da realidade? Além disso, é exemplar a descrição que ele faz dos imbróglios políticos que levaram o poeta ao exílio, que marcaria para sempre a sua existência.

No fim das contas, Alessandro Barbero e Giovanni Boccaccio nos oferecem duas visões distintas da vida, ou das vidas, de Dante. Uma de caráter quase apostólico, exaltando as virtudes e as dores do maior poeta italiano, outra mais comedida, que reconhece o brilho e a grandeza do biografado, mas que não se furta de apontar deslizes e desfazer equívocos, por mais narrativamente tentadores que estes sejam.

Duas leituras que se complementam e que oferecem um mosaico complexo, rico e cativante de uma das figuras mais importantes da literatura, que nos deu muito mais do que uma visão particular de um inferno, um purgatório e um paraíso: nos deu a noção do quanto a arte pode ajudar a moldar nossa relação com a realidade que nos cerca.

Dante – a biografia
Alessandro Barbero
Trad.: Federico Carotti
Companhia das Letras
370 págs.
Vida de Dante
Giovanni Boccaccio
Trad.: Pedro Falleiros Heise
Penguin | Companhia
104 págs.
Giovanni Boccaccio
Nasceu provavelmente em Certaldo, pequena cidade perto de Florença (Itália), em 1313, onde passou a primeira infância. Obrigado pelo pai a se dedicar à carreira jurídica, Boccaccio, no entanto, desde cedo se apaixonou pelas Musas e se tornou um autor prolífico. Autor de Decameron, foi um dos mais importantes cultores da obra de Dante, responsável por um ciclo de leituras públicas da Comédia de 1373 a 1374, interrompidas pela doença que acometeu Boccaccio e o levou à morte no final do ano seguinte.
Jocê Rodrigues

É jornalista, escritor e editor.

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