O sutil retrato de uma família

Resenha de “O teu rosto será o último”, de João Ricardo Pedro
João Ricardo Pedro, autor de “O teu rosto será o último”
01/09/2013

Originalmente engenheiro, o português João Ricardo Pedro começou a escrever O teu rosto será o último, seu romance de estréia, depois de ser demitido da empresa em que trabalhava. Cerca de dois anos depois, ganhou o Prêmio Leya (editora responsável pelo autor tanto em Portugal como no Brasil), que escolhe um romance inédito por ano para receber uma soma em dinheiro e a publicação da obra. Foi assim que trocou uma vida de números por uma de letras.

O romance retrata, de forma não linear e incompleta, a trajetória de três gerações da família Mendes, passando por diversos períodos históricos e localizações geográficas de Portugal. Interligando-as, o livro se torna um retrato de mudanças políticas, de diferenças entre gerações e da vida no campo ou na cidade.

A narrativa começa no dia 25 de abril de 1974. Conhecida como Revolução dos Cravos, a data marca o golpe militar de Estado que depôs um regime ditatorial de quarenta e um anos e terminou com a implantação do regime democrático em 1976. No mesmo dia, a morte violenta de um dos moradores da pequena vila na serra da Gardunha, onde o Mendes avô (Augusto) era médico, intriga o grupo de pessoas que aguardava notícias do que acontecia no país.

Nesse núcleo da história, o meio rural é fortemente marcado. Augusto Mendes é o único médico da cidade e atende todos os casos que aparecerem, chegando a receber pagamentos em galinhas vivas ou compotas de frutas. O cenário que se apresenta é o de dias calmos e pacatos, com pouca influência do mundo. A vida ali acontece independentemente de mudanças políticas, sociais ou econômicas.

Uma das poucas relações da família com o mundo é por meio das cartas do amigo Policarpo, que, apesar de ter se formado médico junto com Augusto, decide viajar pelo mundo. Anualmente, manda notícias sobre si e sobre o que acontece ao redor — marcando ainda mais a diferença de vida entre as regiões e povoando a imaginação do mais novo dos Mendes, que ouve seu avô contando todas essas histórias como se fossem um grande romance.

O Mendes pai (António) serviu na África durante a Guerra Colonial, outro marco importante da história do país: inúmeros conflitos aconteceram nas colônias portuguesas na África, como Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, nos anos anteriores ao golpe militar. Esse pai mostra como traumas e experiências mudam para sempre uma pessoa: a guerra fica presente em toda a vida do casal e da família, por meio de histórias ou pela memória. Essa interferência da guerra na vida das pessoas acaba influenciando até a maneira com que a mãe morre.

Por fim, o Mendes filho, Duarte, viveu parte da vida no campo e outra na cidade de Queluz. Personagem principal da história, descobriu um talento nato para música em um órgão eletrônico sem pilhas, completamente mudo, quando ainda era criança. Para ele, tocar Beethoven ou Bach era um misto de audição e encenação. Quando cresce, a arte assume um papel maior e se torna o seu principal conflito.

Elipses
O teu rosto será o último é um romance sutil. Cada capítulo poderia ser lido como um conto e cabe ao leitor costurar um enredo completo entre os saltos temporais propostos pelo autor. Algumas características apresentadas no começo só passam a fazer sentido após algumas páginas, e a cronologia precisa ser montada aos poucos, ao longo da leitura.

Nessa formatação desconstruída, as histórias de alguns personagens vão se cruzando e interligando. Contudo, o romance foge das clássicas narrativas de vidas cruzadas por não completar totalmente o ciclo. No desfecho, quando personagens (e leitor) estão prestes a descobrir uma das últimas relações, a página que iria revelar o segredo não está lá e o livro não se fecha.

Uma opção do autor, em vez de apontar o sentimento ou característica do personagem como uma descrição, é criar uma cena representativa. Assim, se um personagem se sente confuso e perdido, o autor o insere em uma ação confusa, que se faz sem saber por quê. Cabe ao leitor interpretar e entender essa figura como uma espécie de pessoa real. Parece que nesse momento nem o personagem (nem o narrador) sabe o que sente.

De maneira semelhante, a escrita muitas vezes acompanha o sentimento ou rotina de um personagem. Quando com raiva ou distraído, há uma narrativa de fluxo contínuo de ações: “Pousou o telefone. Fechou as gavetas da secretária. Vestiu o casaco. Desligou as luzes do consultório”. O leitor entende que o personagem está com a cabeça em outro lugar.

Conversas
Ao longo do romance, é perceptível a maneira com que os personagens (principalmente as três gerações de Mendes) se influenciam e acabam sendo mais parecidos do que sugere a diferença entre suas gerações. Alguns medos e maneiras de encarar a vida permanecem, unindo ainda mais suas histórias.

Além disso, o livro tem um gostinho de café da tarde servido em mesa de varanda. Não há nenhum momento em que se narra a história oficial. Sempre se lê o avô contando para o neto sobre o amigo, o pai contando ao filho sobre a guerra, o professor de música de Duarte contando para a mãe deste por que seu filho decide parar de tocar. O teu rosto pode ser visto como uma grande conversa, cheio de versões de histórias transmitidas de um personagem para outro. Tanto passado como presente são contados entre eles.

Em nenhum momento o narrador fala sobre as guerras ou tenta contextualizar o leitor. O tom informal com que se abordam as questões históricas acaba trazendo uma identificação muito grande com o país. É um livro muito português, com histórias portuguesas contadas por famílias portuguesas — algumas referências podem ser perdidas pelo leitor brasileiro.

De tão português, não falta nem a referência a Fernando Pessoa. Depois da morte da esposa, o pai de Duarte fica meio que sem chão e abandona até sua fidelidade à tabacaria, acabando por pedir ao filho fazer a compra. Os donos chegam a sentir a falta do cliente. É quase impossível que o leitor não se lembre dos versos em que se perde toda a vontade do mundo: “estou hoje vendido, como se soubesse a verdade/ estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer”. Todo o desespero do narrador em Tabacaria pode ser visto em António — e de certa forma seu futuro também.

Outro aspecto relevante é a maneira com que o autor insere significados na morte de alguns dos personagens. O modo, o lugar e a velocidade com que acontecem revelam uma última característica, um último pensamento ou vontade do que o personagem foi em vida ou do que sentia.

O teu rosto será o último é construído como um desafio ao leitor. Personagens, história, arte, razões, morte e vida não são explicadas pelo autor, apenas apresentadas. Cabe a nós a sutil tarefa de unir os pontos e concluir o retrato de uma família.

O teu rosto será o último
João Ricardo Pedro
Leya
192 págs.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

Rascunho