O sonho de uma sombra

As coisas que não existem são mais bonitas Felisdônio/Manoel de Barros, O Livro das Ignorãças
Manoel de Barros, autor de “Escritos em verbal de ave”
01/01/2002

I

Quando ao Manoel de Barros, e ao seu novo livro Tratado Geral das Grandezas

do Ínfimo que, recém-lançado, em vez de, leve, ascender como os anteriores

já oscila atado a pedras à beira de um abismo,

a gente entende tudo se aplicarmos, também à Literatura, as três forças das Gunas,

como nos revelam os Vedas:

a que dá o Impulso inicial — que cria o Ser das coisas/

 a que recolhe esse impulso na Inércia — para que as coisas possam permanecer no Ser conformado por algum tempo/

e a que Dilui sua própria criação — para que o Ser, tendo cumprido seu tempo de ser conformado em si, e reimpulsionado para o Nada que é Tudo, possa seguir

a viagem de sua vocação final: o Efêmero.

Isso não tem nada a ver com o talento humano em si, esse pequeno Dom do livre arbítrio,

 que só arbitrariamente pode tomado como uma Asa autônoma, como coisa separada também daquilo que, no Tao, Chuang-Tzu chamou de o Motor Sutil. Tem a ver com o tempo que é dado ao talento humano para se manifestar no Visível, se manter visível à tona e outra vez mergulhar no Invisível,

pois o talento humano, como tudo, também não está contido nessas Leis Totais

que tudo movem&imobilizam&desmobilizam?

É assim. Para que do diluído e suas Cinzas outros Fogos se acendam

soprados ainda outra recém-nascida vez pela voz do Sopro Original, esse sim, se mantendo sempre em si — pois sendo o criador e o mantenedor das Gunas e suas leis severas.

 Nesse desamparo é que me sinto à vontade para falar do novo livro

do Manoel — que nem li ainda, só pelo que já li dele, antes,

nos seus livros anteriores: pois se trata do caso, raro, de um criador

de que se deve ler o mundo todo inteiro que cria, sendo as obras isoladas

que vão lhe dando forma fragmentos de um Todo sempre contaminadas pela Matriz,

assim como uma frase musical de Bach contém todo o Bach, uma pincelada de Van Gogh,

todo o Van Gogh, uma página de Kafka todo o Kafka e um pensamento

de Schopenhauer todo o Schopenhauer.

Um acorde já acorda em nós, em sua mônada, toda a Mônada Mãe,

como percebia Leibnitz.

Ressurgir depois de um tempo de Silêncio, acima, abaixo ou no mesmo plano do fragmento anterior da construção, não tem senão uma importância superficial, em se tratando de obras como essas. Feitas de momentos todos iguais a si mesmos.

Na verdade, nem são outros momentos, são o mesmo momento se repetindo em outro plano do projeto. É uma Construção necessariamente irregular em sua tessitura, mas não em sua aparência exterior: como o Homem se apresenta a nós nas irregularidades de sermos vários momentos humanos.

II

Sejamos sinceros, mas sem rancor de sermos assim, apenas homens: quem jamais

tropeçou quando pretendia ter na ponta do pé apenas um passo firme?

Ou não se engasgou com a água que bebia sem a menor dúvida de que não era pedra?

Todos estamos expostos a isso, esses Issos: são iscas semeadas na Penumbra de sermos.

Homo ludens, então, e não mais homo sapiens,

e sendo mesmo, se quisermos que sejam, as coisas que não existem mais bonitas,

digo do livro do Manoel que ainda nem li — nem vou poder ler, pois mesmo que leia no seu caso serão sempre releituras —

que uma aproximação apenas pela qualidade literária do texto seria a leitura que menos

vem ao caso: precisamos ir mais atrás da página nova escrita por ele, Manoel,

precisamos ir em sobressalto por nós mesmos até a Página em Branco

que a todos nos escreve.

E ver, Lá, o Ser Manoel enquanto sendo escrito.

Sendo escrito abaixo do que já escreveu ou foi escrito, acima

 do que já escreveu ou foi escrito.

Que exigências caprichosas nos faz a arquitetura da Construção, da qual jamais

vemos o conjunto, só as partes?

Ei-lo: o que escreve e é escrito — como sabia Jabès — inteiramente submetido às necessidades, ao plano, sempre oculto,

do Livro, da Construção, içando lages às vezes — geralmente — acima das suas forças,

escravo de Pirâmides que sempre serão versões mais ou menos bem realizadas do projeto original — humano — da Torre de Babel.

III

Estar em ascensão ou decadência, nesse fundo misterioso das coisas,

só tem a ver muito tangencialmente com a coisa Literatura. Por exemplo, menos em seu fazer do que em sua percepção, como quando Pessoa diz: Qualquer coisa caiu e tiniu no infinito.

IV

Rulfo então estaria certo quando por via das dúvidas preferiu não arriscar

e ficar sempre lá pelas alturas que havia atingido não escrevendo mais nada

depois de El llano en llamas e Pedro Páramo?

V

Uma parábola tosca & pueril que de improviso aqui invento para melhor tentar

 dizer o que penso sobre isso: Era uma vez um Nômade que sempre passava por um oásis onde havia um Poço e um velhinho, pedia água, o velhinho dava.

O Nômade matava a sua sede,

agradecia e seguia viagem através do Deserto, com uma bolsa que ia enchendo

a cada visita ao Poço cada vez mais de apreço e respeito pelo tal velhinho.

Durante muitas caravanas isso se deu.

Mas uma vez o Nômade voltou e o Poço havia secado.

 Movido pela sede quem sabe, cego de sede, se diria, insultou o velhinho por não ter sabido

cuidar do Poço e derramou fora todo o conteúdo amoroso da bolsa na areia do deserto,

gratidões e apreços devolvidos ao pó.

Não voltou mais por aquele caminho.

Muito do mal-agradecido, espalhou por todo o deserto a decadência do Poço,

desviou dele outros peregrinos, achou outro poço onde matar sua sede

e esqueceu o Poço do velhinho.

Certamente esse novo poço que achou um dia também irá secar, pois tudo um dia seca,

dizem as Gunas ou o Motor Sutil olhando esta historinha

lá — de Onde? — ou é em nós, dentro de nós?

O que ele, o Nômade, não sabia, e nunca soube, pois nunca mais voltou por lá,

é que o Poço ex-poço do velhinho havia novamente minado:

e agora a água que ele brotava não apenas matava as sedes físicas,

também matava as sedes que nos assaltam em sonhos nos sonhos em que nos vemos

vagando através de nossos desertos imensos por dentro sem nem sombra de oásis à vista,

sem uma gota sequer como miragem em nós.

VI

Eu, por mim, sou muito grato à Água que o Manoel já me deu para beber.

Se o poço dele desceu de nível por uma Estação adversa do seu Ser

— o que ainda nem sei — rezarei pedindo novas chuvas.

É o mínimo que a minha gratidão me manda fazer.

Ou melhor: aguardarei a próxima chuva das Gunas, conforme a vontade sutil

que nos ondula.

É isso aí.

E não deve ser outro impulso meramente humano — não autorizado a devolver ao Silêncio

em que já onde foi mantida durante longos anos de sua vida a obra de Manoel,

tão tardiamente descoberto — e que por tão pouco tempo teve a alegriazinha de permanecer por algum tempo à tona.

VII

Agora, vou atrás do Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo do Manoel.

Para quebrar algumas unhas ajudando o velhinho da parábola a escavar mais fundo o Poço

e reencontrar a Água que dele se escondeu?

Vou atrás do livro do Manoel.

Mas sempre ludicamente, e pensando: Quem sabe a missão dele não é, se decaiu,

não, nos dar as coisas da poesia, mas nos dar a defesa da poesia — contra si próprio,

 ou nos ameaçar com a Angústia de vê-la fugindo de nós
quando queríamos era mais uma vez vê-la vindo ao nosso encontro

— e, com isso, ainda contra si próprio — nos rearmar de Paixão por ela?

 Sei lá? Lá sei?

É uma hipótese que pode estar passando a galope por nós, e não vemos, homo sapiens

rigorosos demais com o exato das coisas que existem.

E por isso ainda os homens de Hazlitz, aqueles de quem Hazlitz dizia que são os únicos animais que riem e choram, porque são os únicos animais golpeados pela diferença

entre o que as coisas são e o que elas deveriam ser.

 Por outro lado — e mantendo também aqui aberto o olho ludens — para melhor brincar

à vontade de leitor cabra cega — posso bem ver o que se propõe ser já em seu próprio título o Livro, nisso muito preciso: um Tratado.

E, agora, diante dessa Visão que não posso mais recusar,

lhes faço a pergunta pelo menos para mim inquietante:

— E se Manoel ao dizer que escreveu um Tratado
quiser dizer exatamente isto: que escreveu um Tratado, que o Livro é um Tratado?

Se pudéssemos aceitar isso, o próximo passo seria aceitarmos o que o Livro é, quem sabe.
Reparem, abrandando a ira: Manoel não deu ao Livro um título romântico alemão,

como Hinos à noite de Novalis — ou Zen, como o Dogen da Lua na Gota
de Orvalho
— ele não deu ao seu livro — sempre no liminar de uma ascensão ou de um abismo — o título poético As Grandezas do Ínfimo.

E se é assim, todo o Livro, e isso vem de bem
antes: todas as palavras do Livro que vêm já imediatamente depois

da palavra Tratado do título,

estão irremediavelmente desmerecidas, submetidas a essa palavra fria, contaminadas por ela, esvaziadas por essa palavra não-poética.

Seria essa uma outra Chave de leitura? O que me dizem dela?

E o que faz esta frase de Manoel em Livro sobre Nada/Desejar ser, nos dizendo:

O que ponho de cerebral nos meus escritos é apenas uma vigilância pra não cair na tentação de me achar menos tolo que os outros.

Por generosidade ou pavor ante a possibilidade de cometer uma injustiça,

sobretudo em se tratando de um livro tão belo porque para mim ainda não existe em si,

abro aqui esta outra flor de hipótese. Que a todos agora já ostensivamente nos pergunta:

— E se Manoel quis exatamente
fazer isso, sei lá com que intenção, com que gosto ou desgosto,

ou com que Outra alegria Interior: isto: reduzir toda a sua ars poetica, neste Livro, a um
esquema pervertido, perversamente? Perversor de si mesmo?

Lá sei? Lá sei?

A hipótese vai passando, a trote. Trata-se, aliás, de um trote de Manoel no que

se entende por fazer poesia?

E se fôssemos por algum tempo mais ignorante do
que somos, seríamos mais sábios do que somos?

Acho que vale a pena tentar algo nesse sentido. E tenho um motivo pessoal para isso.

VIII

 Lhes conto: conhecem Witold Gombrovicz?

Conhecem também o livro O humano em busca do humano — uma longa entrevista que ele

deu ao poeta francês Dominique de Roux falando de toda a sua vida & obra?

Pois o final é uma das coisas mais tristes e miseravelmente desesperadoras

que eu já vi.
Gombrowicz, se lamentando, diz: — Veja, Dominique, durante toda a minha vida
tentei escapar dos lugares-comuns, e fui criando um mundo estranho, uma linguagem original, para me ver agora irremediavelmente condenado a escrever como Gombrowicz:

Gombrowicz escravo de Gombrowicz.

IX

Tais são as agonias, de partir o coração, lhes juro, os abismos por onde vai caindo

um homem às vezes quanto mais tenta se ascender de si.

X

Teria Manoel o direito de se libertar da escravidão de ser Manoel escravo de Manoel?

O seu Tratado seria uma citação de Píndaro, mas não literalmente?
Daquele Píndaro que, celebrando outras breves glórias humanas,

as do corpo quando cintila,

também quis apagar as luzes, escrevendo: O homem é o sonho de uma sombra.

Vicente Franz Cecim

É escritor, autor de Viagem a Andara, o livro invisível (Iluminuras, 1988), Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, 1995) e Ó Serdespanto (Íman Edições, Lisboa, 2001).

Rascunho