🔓 O som enérgico da ausência

Em "Um álbum para Lady Laet", de José Luiz Passos, filha escreve biografia sobre mãe que mal conheceu
Jose Luiz Passos, autor de “Um álbum para Lady Laet” Foto: Fernanda Fiamoncini
01/03/2023

A criatividade e as extravagâncias de músicos, sobretudo os dos anos 1980, se mantêm como uma rica fonte para páginas de livros, tanto os biográficos quanto os ficcionais. As tramas movidas a álcool, drogas e ataques de estrelismo têm um espaço fixo, praticamente incontestável, em livrarias e bancas de revista.

Se mesmo os artistas do clichê “minha vida é um livro aberto” despertam tanta curiosidade, o que esperar de uma cantora de sucesso da qual pouco se sabe a respeito? Essa é a primeira das muitas perguntas propostas por Um álbum para Lady Laet, de José Luiz Passos.

A trama tem como protagonista Lucineide (também chamada de Lucy), uma brasileira que vive em Los Angeles, nos Estados Unidos, e é filha de Lady Laet, cantora símbolo da contracultura brasileira dos anos 80.

Lucy tem pelo caminho a difícil tarefa de escrever uma biografia sobre a sua mãe, mulher com quem pouco conviveu e de quem quase não sabe a respeito. A ideia partiu de Saboia, ex-empresário de Lady Laet e um dos amigos mais próximos de Lucy.

Já na premissa está um dos muitos acertos do autor: apresentar uma biógrafa que pouco sabe a respeito da biografada. A situação inusitada faz com que os fatos sobre Lady Laet cheguem devagar, capítulo a capítulo, canção a canção, numa atmosfera que se aproxima da de um documentário. É aqui que o autor abre espaço para o ensaio e dá voz a memórias tão convincentes, que vez ou outra é possível se esquecer que Lady Laet é, na verdade, uma personagem fictícia.

Muito disso também se deve aos elementos introduzidos ao longo da narrativa, como detalhes sobre gravações e festivais, menções sutis a Gilberto Gil, Tim Maia, Bob Dylan, Beatles e Rolling Stones e trechos de entrevistas da própria Lady Laet e do guitarrista Mão de Gato.

As canções escritas e interpretadas pela cantora também aparecem diversas vezes e desempenham uma importante função narrativa. Trechos como “A música barata me visita. E me conduz. Para um pobre nirvana à minha imagem” e “Aposta na tristeza todo dia. Aposta que ela é tua guia” não servem apenas para estabelecer uma relação entre a artista e o que acabou de ser narrado, mas também como um meio criativo e eficiente de apresentar os anseios, as obsessões e o estado de espírito da cantora em cada momento de sua carreira e de sua vida pessoal.

Também é a partir do olhar mais atento para essas letras que Lucy conhece e compreende um pouco mais sobre aquela mulher que se estabeleceu como ícone da contracultura, mas não como mãe amorosa e presente. Assim, fica possível perceber a dedicação de Lucy à biografia como uma espécie de acerto de contas com o seu passado e com a sua relação com Lady Laet.

Não-pertencimento
Lucy, uma brasileira nos Estados Unidos, se vê como estrangeira em muitos sentidos. Está deslocada, insegura e pouco à vontade. Num primeiro momento, ainda se dá ao trabalho de fingir que está satisfeita com o pouco que sabe a respeito da mãe. Mas como péssima fingidora que é, não convence ninguém.

Dentre os muitos símbolos da rebeldia de Lady Laet há um que ganha bastante destaque na história: uma foto em que a cantora aparece estirada no colo de quatro homens. A imagem provoca em Lucy grande desconforto e desencadeia uma resistência ao lado festeiro da mãe, como se a filha quisesse retirar esse aspecto tanto da biografia quanto de suas memórias.

A busca pelo que contar e de que maneira contar é norteada por um desejo quase infantil de proteção e acalento. Lucy quer o carinho da mãe ausente e encontrar, em meio à sua pesquisa, algo que a torne tão especial quanto a música, ainda que no fundo saiba que para Lady Laet nada se compara à música.

Não por acaso, a construção de José Luiz Passos coloca a música em evidência na narrativa das mais diferentes formas. Além das letras, das gravações e dos festivais já citados, os solos de guitarra aparecem como elementos capazes de transmitir desde a doçura até a fúria. Nessa mesma condição, lugares e objetos ganham personalidade e funções próprias, como o túmulo de Marylin Monroe e o famoso letreiro de Hollywood.

E por falar em personagens, dentre os que aparecem ao longo do livro, os mais interessantes — além de Lucy e Lady Laet, é claro — são Saboia e Pablo. O primeiro, o ex-empresário da cantora, é repleto de contradições: em alguns momentos, soa protetor e empático, enquanto em outros parece ambicioso, frio e distante, como se a sua única preocupação fosse (e talvez seja) o livro pronto. Não lida bem com negativas, mas sabe como utilizar palavras carinhosas e presentes para obter o que deseja.

Já Pablo, provavelmente, é o que tem melhor desenvolvimento ao longo da trama, à exceção das protagonistas. Tem embates interessantes com Saboia e um papel essencial nas transformações vivenciadas por Lucy ao longo do romance.

Ilustrações
Outro ponto que chama a atenção no livro são as ilustrações feitas pelo próprio autor e colocadas no início de cada capítulo. Em geral, fazem referência a elementos presentes na narrativa, sem cair no óbvio. Não são simples versões ilustradas daquilo que pouco antes foi colocado em palavras, mas sim convites a novas perspectivas e à observação de aspectos subjetivos dessa história tão enérgica e convidativa.

As imagens quase sempre focadas em detalhes sugerem um paralelo com Lady Laet, personagem que se mostra pouco a pouco, no mesmo ritmo em que Lucy consegue avançar na biografia e pensar a respeito da própria vida.

Assim, com capítulos curtos e movimentos certeiros, José Luiz Passos constrói uma narrativa em que passado e presente ocupam o mesmo espaço temporal, na busca por uma história desconhecida e um afeto negado. Um álbum para Lady Laet é sobre música, contracultura e os anos 1980, mas, sobretudo, um convite para acompanhar uma estrangeira de si mesma na tentativa de compreender o passado e repensar possibilidades para o futuro.

Um álbum para Lady Laet
José Luiz Passos
Alfaguara
128 págs.
José Luiz Passos
É autor de cinco romances e vencedor do Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura, atual Oceanos, com O sonâmbulo amador. Também foi finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo, com O marechal de costas. Vive entre Recife, Austin e Los Angeles.
Bruno Inácio

É jornalista e escritor. Autor de Desprazeres existenciais em colapso (contos) e Desemprego e outras heresias (romance)

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