A criatividade e as extravagâncias de músicos, sobretudo os dos anos 1980, se mantêm como uma rica fonte para páginas de livros, tanto os biográficos quanto os ficcionais. As tramas movidas a álcool, drogas e ataques de estrelismo têm um espaço fixo, praticamente incontestável, em livrarias e bancas de revista.
Se mesmo os artistas do clichê “minha vida é um livro aberto” despertam tanta curiosidade, o que esperar de uma cantora de sucesso da qual pouco se sabe a respeito? Essa é a primeira das muitas perguntas propostas por Um álbum para Lady Laet, de José Luiz Passos.
A trama tem como protagonista Lucineide (também chamada de Lucy), uma brasileira que vive em Los Angeles, nos Estados Unidos, e é filha de Lady Laet, cantora símbolo da contracultura brasileira dos anos 80.
Lucy tem pelo caminho a difícil tarefa de escrever uma biografia sobre a sua mãe, mulher com quem pouco conviveu e de quem quase não sabe a respeito. A ideia partiu de Saboia, ex-empresário de Lady Laet e um dos amigos mais próximos de Lucy.
Já na premissa está um dos muitos acertos do autor: apresentar uma biógrafa que pouco sabe a respeito da biografada. A situação inusitada faz com que os fatos sobre Lady Laet cheguem devagar, capítulo a capítulo, canção a canção, numa atmosfera que se aproxima da de um documentário. É aqui que o autor abre espaço para o ensaio e dá voz a memórias tão convincentes, que vez ou outra é possível se esquecer que Lady Laet é, na verdade, uma personagem fictícia.
Muito disso também se deve aos elementos introduzidos ao longo da narrativa, como detalhes sobre gravações e festivais, menções sutis a Gilberto Gil, Tim Maia, Bob Dylan, Beatles e Rolling Stones e trechos de entrevistas da própria Lady Laet e do guitarrista Mão de Gato.
As canções escritas e interpretadas pela cantora também aparecem diversas vezes e desempenham uma importante função narrativa. Trechos como “A música barata me visita. E me conduz. Para um pobre nirvana à minha imagem” e “Aposta na tristeza todo dia. Aposta que ela é tua guia” não servem apenas para estabelecer uma relação entre a artista e o que acabou de ser narrado, mas também como um meio criativo e eficiente de apresentar os anseios, as obsessões e o estado de espírito da cantora em cada momento de sua carreira e de sua vida pessoal.
Também é a partir do olhar mais atento para essas letras que Lucy conhece e compreende um pouco mais sobre aquela mulher que se estabeleceu como ícone da contracultura, mas não como mãe amorosa e presente. Assim, fica possível perceber a dedicação de Lucy à biografia como uma espécie de acerto de contas com o seu passado e com a sua relação com Lady Laet.
Não-pertencimento
Lucy, uma brasileira nos Estados Unidos, se vê como estrangeira em muitos sentidos. Está deslocada, insegura e pouco à vontade. Num primeiro momento, ainda se dá ao trabalho de fingir que está satisfeita com o pouco que sabe a respeito da mãe. Mas como péssima fingidora que é, não convence ninguém.
Dentre os muitos símbolos da rebeldia de Lady Laet há um que ganha bastante destaque na história: uma foto em que a cantora aparece estirada no colo de quatro homens. A imagem provoca em Lucy grande desconforto e desencadeia uma resistência ao lado festeiro da mãe, como se a filha quisesse retirar esse aspecto tanto da biografia quanto de suas memórias.
A busca pelo que contar e de que maneira contar é norteada por um desejo quase infantil de proteção e acalento. Lucy quer o carinho da mãe ausente e encontrar, em meio à sua pesquisa, algo que a torne tão especial quanto a música, ainda que no fundo saiba que para Lady Laet nada se compara à música.
Não por acaso, a construção de José Luiz Passos coloca a música em evidência na narrativa das mais diferentes formas. Além das letras, das gravações e dos festivais já citados, os solos de guitarra aparecem como elementos capazes de transmitir desde a doçura até a fúria. Nessa mesma condição, lugares e objetos ganham personalidade e funções próprias, como o túmulo de Marylin Monroe e o famoso letreiro de Hollywood.
E por falar em personagens, dentre os que aparecem ao longo do livro, os mais interessantes — além de Lucy e Lady Laet, é claro — são Saboia e Pablo. O primeiro, o ex-empresário da cantora, é repleto de contradições: em alguns momentos, soa protetor e empático, enquanto em outros parece ambicioso, frio e distante, como se a sua única preocupação fosse (e talvez seja) o livro pronto. Não lida bem com negativas, mas sabe como utilizar palavras carinhosas e presentes para obter o que deseja.
Já Pablo, provavelmente, é o que tem melhor desenvolvimento ao longo da trama, à exceção das protagonistas. Tem embates interessantes com Saboia e um papel essencial nas transformações vivenciadas por Lucy ao longo do romance.
Ilustrações
Outro ponto que chama a atenção no livro são as ilustrações feitas pelo próprio autor e colocadas no início de cada capítulo. Em geral, fazem referência a elementos presentes na narrativa, sem cair no óbvio. Não são simples versões ilustradas daquilo que pouco antes foi colocado em palavras, mas sim convites a novas perspectivas e à observação de aspectos subjetivos dessa história tão enérgica e convidativa.
As imagens quase sempre focadas em detalhes sugerem um paralelo com Lady Laet, personagem que se mostra pouco a pouco, no mesmo ritmo em que Lucy consegue avançar na biografia e pensar a respeito da própria vida.
Assim, com capítulos curtos e movimentos certeiros, José Luiz Passos constrói uma narrativa em que passado e presente ocupam o mesmo espaço temporal, na busca por uma história desconhecida e um afeto negado. Um álbum para Lady Laet é sobre música, contracultura e os anos 1980, mas, sobretudo, um convite para acompanhar uma estrangeira de si mesma na tentativa de compreender o passado e repensar possibilidades para o futuro.