O som e a palavra

Em "Sombrio ermo turvo", Veronica Stigger segue questionando as noções de gênero literário e interpretação
Veronica Stigger, autora de Sombrio ermo turvo
30/11/2019

(som.bri:o) 1. Que tem pouca luz 2. Fig. Que causa apreensão, receio ou tristeza 3. Fig. Tenebroso, lúgubre [Ant. alegre] 4. Que não tem alegria; que revela tristeza ou seriedade carrancuda. (…) 11. Diz-se de um lugar afastado, escondido; ERMO; ISOLADO

Um homem descobre, em um poço vazio, um buraco negro e encontra nele “o único caminho de retorno possível ao útero ardente da terra”. Como se entrasse em uma toca de coelho, o leitor é levado, depois deste texto de apenas um parágrafo, para o mundo da literatura de Veronica Stigger.

Para quem ainda não teve este encontro, pode-se dizer, de maneira muito simplista, que ler Stigger tem algo que lembra assistir a um filme de Tim Burton (os bons, pelo menos). Os dois apresentam um deslocamento de convenções de gênero que provocam um efeito de desnorteamento no receptor. Se em Burton o terror e o sobrenatural assumem tom de graça e inocência, em Stigger o violento e o absurdo parecem ter uma aura engraçada e irônica. É partindo de um mundo real, mas com pequenas alterações estranhas e exageros, que a autora constrói seu universo ficcional — e o mundo que cria acaba, com frequência, sendo assustadoramente próximo do nosso.

As quatro partes do livro são nomeadas de acordo com ritmos musicais (tema ao qual retornarei em outro momento da resenha), enquanto os contos têm títulos que repetem um padrão de artigo definido seguido por um substantivo: O poço, A ponte, A caixa, O maquinista etc. Não consigo pensar nestes objetos senão prototipicamente, como se a autora tentasse contar o mito de formação de cada um deles ou em algum tipo de história que os define.

Dou um exemplo: O sangue, texto que intercala poemas com um trecho em prosa. Construído com discurso indireto livre, relata o diálogo entre dois personagens que seguem em um carro que imaginam, com uma estética cada vez mais absurda, um acidente com um caminhão de sangue (ideia que é em si absurda). Em primeiro lugar, o conto mostra a fascinante perspectiva de se acompanhar a construção do absurdo se desenrolando, enquanto cada personagem surge com uma ideia cada vez pior (se não fosse a parte sombria, pareceria brincadeira de criança). Em segundo lugar, apesar do conto não fazer um mito de origem do sangue em si, mostra um pouco a noção do sangue que se tem socialmente — de tão banalizado, a imagem de um caminhão cheio de sangue passeando pelas ruas se torna quase verossímil. A origem do sangue moderno.

(er.mo) sm 1. Lugar desabitado ou afastado das grandes povoações: “No ermo em que se achava (…) aproveitava o fato de ser a única dama fidalga daquele lugar” (José de Alencar, O guarani) 2. Solidão, isolamento 3. Desabitado, isolado, abandonado, deserto [F.: Do gr. éremos, pelo lat. eremus.]

Na tentativa de montar uma imagem, Stigger parece uma andarilha que busca nos lugares mais ermos da literatura temas (e até técnicas) para suas narrativas. A festa, por exemplo, é uma fábula com a inserção constante de epítetos para caracterizar os personagens — um gênero e uma estrutura de tempos remotos da literatura renovados para o mundo de hoje.

Em termos de técnicas inusitadas, um dos contos mais interessantes é A neve. “Em 24 de agosto de 1984, nevou em Porto Alegre. Havia mais de 70 anos que não nevava na cidade. Houve quem dissesse que era o fim dos tempos”, começa. Aos poucos, surge um narrador em primeira pessoa, que está relembrando um período da sua infância em que seu pai, que fora sequestrado, volta para casa — uma cena que o olhar infantil não consegue decifrar plenamente. A neve, que cai inesperadamente, cobre o acontecimento de branco, encerrando o assunto e marcando o tom abafado e branco que o sequestro vai assumir na família a partir de então. Na memória, há ainda a imagem de uma outra criança, colega de escola, que afirmava guardar um pouco da neve em um tupperware, o que se revelou ser uma mentira. Porém, a última frase do texto revela: “Aquele colega do tupperware, na verdade, era eu” — uma frase que ressignifica o texto, as ações e o sentimento geral do texto.

Os temas ermos permeiam o livro todo: um homem que se recusa a cruzar uma ponte, três homens que carregam comicamente uma caixa de papelão, uma manifestação organizada em um campo de futebol, um diálogo nonsense sobre uma mancha de sangue numa sala, um drama familiar com cara de novela mexicana e duas mulheres que conversam sobre as opções sexuais de uma terceira, não presente em cena.

(Me pergunto o que mais pode estar escondido nos cantos ermos da mente de Stigger.)

(tur.vo) 1. Que apresenta opacidade (líquido turvo); EMBACIADO, OPACO: “O São Francisco não é turvo sempre?” (Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas) [Ant.: claro, transparente] 2. Que se encontra coberto de nuvens 3. A falta de claridade; ESCURO; OBSCURO 4. Que demonstra estado de espírito sombrio, inseguro 5. Que se apresenta agitado, transtornado; INTRANQUILO; INSTÁVEL: Estavam vivendo tempos turvos

A parte potencialmente mais turva da obra e o limite entre os diferentes gêneros textuais e as distorções de expectativas dos leitores, e os exemplos disso no livro são inúmeros.

O anão, por exemplo, começa com uma descrição que beira o politicamente incorreto e é constrangedoramente cômica: “O anão estava na mesa da janela, ao lado da porta do restaurante, sentado numa cadeira alta, normalmente reservada às crianças”. Espera nada mais nada menos que uma princesa. O diálogo que segue é uma extorsão na qual negociam um pagamento: o anão quer o filho dela. O diálogo se encaminha de maneira inusitada. Dois personagens completamente deslocados dos seus textos típicos — o anão e a princesa, que juntos figuram tantas histórias em tantos registros — parecem reencontrar seu gênero em meio ao texto, que termina com “seguiram pela avenida principal e foram, na medida do possível, felizes para sempre” (ainda que formem um casal inesperado).

Outro limite curioso que fica turvo na escrita da autora é o limite entre poesia e prosa. A pele é um texto com cara de prosa mas com um ritmo de leitura que associei com os poéticos enjambement. Uma frase se liga a outra, um parágrafo no outro, e as duas páginas parecem exigir ser lidas em um único fôlego. Tematicamente, explora a relação entre a aparência imaculada e monstruosa, entre herança genética e higienismo.

Quero mencionar um último texto, que ouso afirmar ser dos melhores do livro. O livro (sim, esse é o título do texto) é uma palestra fictícia, na qual um acadêmico, empenhado em estudar a obra de Veronica Stigger, investiga um suposto último livro da autora, que mandou um exemplar antes de ter desaparecido. O livro em questão seria sobre uma personagem que lê e performa sempre o mesmo poema sobre o ciclo menstrual de uma personagem em momentos-chave da sua vida. A palestra termina com uma hipótese do que teria acontecido com a autora. Como Michel Houellebecq, a autora se torna sua própria personagem.

Antes ainda do primeiro conto (palavra que assumo usar com uma certa insegurança, dado que o livro é classificado como um romance), a autora começa com uma epígrafe musical, compasso que minha ignorância não permitiu identificar. Mas o tema da música continua por todo o livro — os títulos das quatro partes marcam mudanças de ritmo de execução musical, como se indicassem para o leitor a maneira e o ritmo com os quais os textos deveriam ser lidos. O livro se transforma em uma espécie de ópera — com indicações de tempo e peças que funcionam tanto sozinhas quanto juntas. A epígrafe funciona como uma abertura feita somente pela orquestra. Allegro ma non troppo, un poco maestoso; Scherzo grazioso; Adagio molto semplice e cantabile; Andantino con fiocchi di neve e sabbia della spiaggia e pronto: a autora se transforma em uma espécie de maestra que encaminha a leitura, indicando ao leitor como explorar os cantos ermos do seu livro.

Todos as citações de dicionário são do Novíssimo Aulete: dicionário contemporâneo da língua portuguesa (2011), com cortes feitos de acordo com os interesses desta que vos escreve.

Sombrio ermo turvo
Veronica Stigger
Todavia
144 págs.
Veronica Stigger
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1973, e escreveu mais de 10 livros, entre eles Gran Cabaret Demenzial, Opisanie swiata e Sul, pelo qual ganhou o Jabuti na categoria Contos e Crônicas em 2017. É doutora em Teoria e Crítica de Arte pela Universidade de São Paulo (USP). Mora em São Paulo (SP) desde 2001.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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