O som do exílio

Em "Réquiem", Karl Alfred Loeser faz da fuga do horror nazista uma sinfonia sobre exílio, culpa e sobrevivência
Karl Alfred Loeser, autor de “Réquiem”
01/11/2025

É possível identificar um veio das projeções políticas do período ditatorial nacional-socialista na produção estético-literária alemã. E esses romances têm despertado o interesse dos leitores brasileiros, como atestam alguns lançamentos de traduções e recentes pesquisas universitárias.

Os dois primeiros romances de Irmgard Keun — Gigi, eine von uns (Gigi, uma de nós) e Das kunstseidene Mädchen (A moça de seda artificial), inéditos em português — desmantelam com humor e ironia a ideia de que haveria de fato uma “mulher moderna” naqueles tempos da “Nova objetividade”, em meados da República de Weimar. Em ambas as obras, uma estenotipista faz as vezes da mulher profissional de escritório, sujeita às invectivas do assédio masculino e às suas próprias limitadas ambições.

Ambos os romances trazem à tona as transformações dos papéis sociais em termos de gênero e de classe, tendo as aspirações das personagens fundidas nos acontecimentos contemporâneos, de maneira a gradualmente desvendar o ocaso de uma era promissora. Esses dois livros obtiveram grande êxito por volta de 1930. Com a instauração do regime ditatorial em 1933, contudo, foram incluídos como “textos indecentes” na “lista negra” da Câmara de Literatura do Império.

A escritora Irmgard Keun refugia-se em Oostende, onde conhece Joseph Roth, com quem passa a ter um relacionamento amoroso bastante tumultuoso, não por último em virtude da dependência alcoólica de ambos.

Para o veio que ora interessa, Keun escreveu, em 1937, o romance Nach Mitternacht (Após a meia-noite), protagonizado pela personagem Susanne, uma moça de 19 anos. Os episódios de intrigas, traições e denúncias têm lugar sobre o pano de fundo das 48 horas de cerimônias políticas, com aparato de desfile militar pelas ruas, que marcam a visita de Hitler a Frankfurt em 1936.

A última recensão literária escrita por Walter Benjamin em língua alemã constitui um exercício metaliterário, na medida em que se reporta à conjuntura específica em que vivia. Faz referência ao romance de Stephan Lackner, Jan Heimatlos (Jan sem pátria), publicado em 1939:

Enquanto na Alemanha os laços que prevaleciam entre o povo alemão e os judeus alemães estão sendo destruídos por tempo indeterminado, surge um romance que se propõe a retratar a natureza desses laços. […] Movido pelo desejo de levar consigo a amante dos anos de juventude e de persuadir seus pais a deixarem a terra natal, esse jovem [que em 1933 resolveu viver no exílio] retorna em 1936 a uma Alemanha completamente transformada. Ele chega bem a tempo de se deparar com as maquinações destinadas a expropriar seu pai.

O autor da resenha, Walter Benjamin, comete suicídio ao tentar atravessar a Cordilheira dos Pirineus da França à Espanha, por não suportar a exaustão e a pressão da Gestapo em seu encalço.

O passageiro é igualmente obra de um autor cuja biografia trágica complementa sua literatura. Perseguido em seu país por ser filho de pai judeu (a mãe era protestante), o berlinense Ulrich Alexander Boschwitz, aos 20 anos, precisou procurar refúgio na Suécia, na Noruega e na Inglaterra. Embora fosse refugiado judeu, a polícia inglesa o prende como “enemy alien” e o envia a um campo na Austrália, onde permanece até 1942. Quando viajava de volta à Inglaterra, transferido a um campo na Ilha de Man, o navio Abosso, que o transportava, foi bombardeado por um torpedo do exército alemão.

O passageiro teve traduções em vários idiomas por ocasião de sua publicação. Recentemente, 82 anos depois da primeira edição, foi redescoberto e relançado na Alemanha. No Brasil, a tradução de Gisele Eberspächer saiu pela DBA.

Réquiem
Toda essa arrolagem de obras alinhadas na representação das atrocidades perpetradas na esteira do ideário eugenista tem por fim introduzir o lançamento de Réquiem. A acepção estrita do termo réquiem, no âmbito da música, diz respeito ao formato de missa católica cantada pela intenção do descanso eterno dos fiéis mortos.

Distinguindo-se dos destinos dos escritores mencionados, o judeu Karl Alfred Loeser foge para a Holanda em 1934 e, sentindo-se acuado pelas perseguições, segue viagem com a esposa Helene para o Brasil. Tenta se estabelecer no Rio de Janeiro, mas é em São Paulo que é bem-sucedido na busca de emprego ao ser admitido como funcionário do Holandsche Bank Voor Zuid-Amerika.

É curiosa a história desse bancário que, nas horas vagas, se dedicava a escrever, sem que familiares e amigos tivessem conhecimento da natureza literária da obra. Descobriram o teor de seus escritos somente em 1999, quando Karl Alfred Loeser morreu aos 90 anos.

No posfácio, o editor Peter Graf informa que o escritor chegou a traduzir ao português o livro que anteriormente se intitulava Der Fall Krakau (O caso Krakau), evidenciando o objetivo de publicá-lo no Brasil, mas talvez não tenha levado o projeto adiante, temendo represálias do Estado Novo de Getúlio Vargas, que se inclinava às colaborações com a Gestapo. Não são conhecidas as razões pelas quais o livro tampouco nos anos seguintes foi publicado.

O romance se estrutura em 28 capítulos e conta com um epílogo. Tudo começa num sarau do conservatório, com um jovem músico tocando ao violino a música Träumerei (Devaneio), de Schumann. Os elogios do pequeno público, quase uma reunião de familiares, lhe sobem à cabeça; ele se convence de que é um virtuoso, pensa finalmente ter descoberto seu lugar no mundo. Os aplausos despertam a ambição do músico miserável.

Ele considera que poderia inclusive chegar a ser violoncelista do Teatro Municipal daquela “cidade relativamente pequena da Vestfália”. O pai, mestre padeiro, e o tio, diretor da Escola de Música, conveem que, em vista das boas conexões políticas dentro do partido, talvez não fosse má ideia colocar Fritz na orquestra — sobretudo porque talvez ainda houvesse músicos judeus que ocupavam essas posições. Eis o disparador do estopim neste plot.

A posição a que aspira o inexperiente músico Fritz Eberle, porém, não está vaga. É ocupada pelo violoncelista Krakau, que possui qualificação reconhecida no âmbito internacional e reputação ilibada. Assim, por várias razões, esse profissional se mantinha como o único músico de origem judaica remanescente na orquestra, não obstante todos os ventos hostis. Mas, sem ao menos ser capaz de justificar a campanha contra Krakau, que nunca lhe fizera mal, Fritz Eberle investe a partir daí nessa ofensiva.

Há um vento frio soprando neste país, um vento que corta o coração e faz o sangue congelar. O que está acontecendo? O que está acontecendo aqui? Será realmente um despertar, uma redescoberta da alma do povo com ela mesma, como tem sido proclamado com tanto orgulho e entusiasmo? Será que nada mais é que uma eliminação natural das forças e influências estranhas, como lemos por todos os lados? Mas então, por que os rostos tensos, as máscaras convulsivas que parecem ter esquecido como rir, por que os tantos informantes e denunciantes, por que tamanho terror e violência?

Krakau faz confidências ao amigo Dr. Spitzer: a esposa, Lisa, tem andado ansiosa; ele não sabe bem como lidar com isso. O médico prescreve repouso, pois os nervos à flor da pele, associados à gravidez, permitem até mesmo aproximar a condição de Lisa à imagem de uma frágil flor do Oriente: a papoula.

A bela flor vermelha demanda tratamento sutil, não suporta ser vergada ao sabor do vento. Assim como essa flor se recolhe atrás dos milharais em busca de proteção, Lisa talvez evite se confrontar com a realidade por meio de evasivos devaneios e sonhos.

A dura realidade que a perturba inconscientemente é a situação de risco e ameaça que perpassa aqueles tempos sombrios. Em vista das circunstâncias, o próprio médico diz que está se preparando para deixar o país e recomenda que Krakau faça o mesmo — que também comece a planejar a fuga juntamente com Lisa. Ele, por seu turno, promete enviar uma carta com notícias tão logo chegue ao destino.

Revolta, rebelião, revanche
A intriga contra o músico Krakau adquire maior complexidade com base nas cartas comprometedoras que o enredam num complô. Ele pode perder o cargo de violoncelista da orquestra e, pior, ser preso e morto pelos inimigos. As cartas são evidências de que teria auxiliado um suspeito procurado pelo regime, o Dr. Spitzer, a escapar da Polícia Secreta do Estado.

Este romance extraordinário franqueia o caráter hipócrita das personagens na urgência da sobrevivência, todavia redime o músico Krakau. As figuras pecam às vezes por contornos um tanto caricaturais, mas as generalizações buscam se alçar à abstração:

E, se desviarmos, por um momento, os olhos do jovem que caminha por ruas suburbanas, um tanto curvado e desleixado, e o deixarmos vagar por todo país, veremos o mesmo fenômeno acontecendo em todos os lugares.

Após os desenlaces, o violoncelista é recebido efusivamente na Holanda. Esse destino se assemelha, na vida real, ao do irmão do autor, o compositor e crítico musical Norbert Loeser, que igualmente se estabelece com sucesso nos Países Baixos. O escritor do livro, assim como um contingente de judeus alemães estimado entre 16 e 19 mil pessoas entre 1933 e 1945, refugia-se e passa a viver no Brasil.

Réquiem
Karl Alfred Loeser
Trad.: Jess Oliveira e Raquel Alves
Companhia das Letras
264 págs.
Karl Alfred Loeser
Nasceu em 1909, em Berlim (Alemanha), numa família judia. Em 1934, com a perseguição nazista em curso, fugiu primeiro para Amsterdã e depois emigrou para o Brasil, onde se estabeleceu em São Paulo, trabalhando no Holandsche Bank Voor Zuid-Amerika. Somente após sua morte, em 1999, foi descoberto o manuscrito de Réquiem, escrito décadas antes e publicado agora pela Companhia das Letras.
Maria Aparecida Barbosa

Professora de Literatura e tradutora do alemão.

Rascunho