O silêncio da colheita

Família de fumicultores enfrenta exploração, silêncio e depressão em "A árvore mais sozinha do mundo", romance de Mariana Salomão Carrara
Mariana Salomão Carrara, autora de “A árvore mais sozinha do mundo”
01/09/2025

Usar um acontecimento real como base para uma obra de ficção representa um grande desafio. E se esse acontecimento já carrega um peso dramático, como é possível construir uma narrativa literária com originalidade sem cair em excessos? O resultado que a escritora paulista Mariana Salomão Carrara conseguiu com A árvore mais sozinha do mundo equilibra bom texto, história envolvente e uma habilidade única para manusear temáticas delicadas.

A autora conta, em entrevistas, que a ideia surgiu a partir da leitura de uma reportagem da BBC Brasil sobre suicídios em série entre produtores de tabaco. Nesse período, ela ainda produzia Se não fossem as sílabas do sábado — obra com a qual venceu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2023, na categoria Melhor Romance —, mas logo iniciou essa nova investigação para um próximo livro. Conversou com produtores rurais e outros profissionais, consultou artigos especializados e chegou a visitar lavouras no interior do Rio Grande do Sul.

A trama acompanha a rotina de uma família de fumicultores: o casal Carlos e Guerlinda e seus jovens filhos Maria, Alice e Pedro, além de Elvira, mãe de Guerlinda, figura central para o enredo. Explorados pelos compradores da produção de tabaco e desafiados pela evidente e aguda depressão de Carlos, os personagens vivem uma dura realidade, mesmo que, às vezes, pareçam não compreender muito bem todos os problemas que os cercam.

Embora tenha tema e ritmo diferentes dos outros livros de Carrara, A árvore mais sozinha do mundo ainda reflete seu interesse pela dinâmica da intimidade familiar e pelo modo como o ambiente doméstico ajuda a contar a história das pessoas. Nesse ponto específico está um dos grandes acertos da obra: conhecemos cada membro da família pelo ponto de vista de objetos do seu entorno. Além da árvore, são narradores um espelho português antigo na sala da casa; uma capa de proteção usada para aplicação de defensivos agrícolas na plantação; e uma nostálgica caminhonete Rural.

A escolha desses narradores foi cuidadosa, porque são testemunhas de situações bastante simbólicas para os personagens: a árvore observa as movimentações externas, como a chegada de visitantes, o trabalho no campo e os momentos mais reflexivos, como quando as crianças brincam à sua sombra, por exemplo. A capa de proteção acompanha o duro trabalho na terra. O espelho, posicionado onde tudo acontece em uma casa, presencia e analisa desde as discussões até o despertar da adolescência de Maria e Alice. Já a velha caminhonete é quem nos conta histórias do passado e descreve as incursões da família pela cidade.

Cada narrador carrega personalidade, linguagem, sotaque e pensamentos muito próprios sobre a vida. E é a partir do afeto que eles sentem pelos fumicultores que nós, leitores, construímos também nossa ligação com os conflitos individuais dos personagens.

Significado profundo
O título do livro também foi inspirado em uma notícia real e ganha um significado ainda mais profundo explicado pela árvore. Vale mencionar ainda a bela capa de Ana Heloisa Santiago, com obra de Gustavo Magalhães, que mostra a família de costas, observando a plantação em um dia ensolarado. O casal e o filho menor estão apoiados na caminhonete, enquanto as meninas caminham sobre as folhas de mãos dadas. A narradora principal não aparece: analisa a todos “do lado de cá”.

A habilidade para trabalhar os movimentos da família de forma que cada um desses narradores possa acompanhá-los, e ainda construir um enredo que faça sentido, são exemplos do talento que coloca Mariana Salomão Carrara na lista de autores de destaque da literatura brasileira contemporânea. Essas estratégias também são eficazes para reforçar o isolamento da família no campo, a ausência de interlocutores e de informações para orientá-los sobre a própria condição — assim como a árvore também está isolada.

Ao longo da narrativa, a família parece mergulhar em um profundo silêncio — talvez pressentindo seu destino. Carlos segue cada vez mais deprimido ou, como diz a principal narradora, se transformando em uma árvore, cada vez mais estático. Algumas passagens trazem comparações entre a condição humana e a natureza, sublinhando o vínculo definitivo entre nós e a terra.

E no fundo somos mesmo assim ilhados em dores particulares, que não venham dizer que Ah este é o problema de uma árvore contar história de gente, a árvore não podia nem saber o que é um pé infantil entortado de chutes na terra, como se não fosse a minha raiz também um pé entortado de chutes na terra.

Farpas e cumplicidade
Enquanto isso, as crianças se protegem do cenário dramático cultivando seus próprios sonhos. Maria, combativa e perspicaz, é a única entre os três filhos que frequenta a escola e deseja ser “minivereadora”, enquanto Alice se prepara, ao longo de toda a trama, para um concurso de beleza chamado Musa do Sol. As irmãs oscilam entre trocas de farpas e cumplicidade, repetindo a rivalidade que marca a relação da mãe com uma tia ausente.

A vida no campo, a injustiça que se infiltra na simplicidade das pessoas e, em especial, os sonhos que ocupam os pensamentos das filhas do casal como esperança de outro destino fazem lembrar a atmosfera do filme As maravilhas (2014), da diretora italiana Alice Rohrwacher. O longa mostra a rotina de produtores de mel em uma pequena vila na região da Toscana. A família vê surgir a chance de mudar de vida por meio de um reality show que promete valorizar as “maravilhas” rurais. As crianças — especialmente as meninas, personagens mais complexos da trama — são responsáveis por acrescentar novas aspirações à rotina familiar. Além do tema, as duas obras se aproximam pela habilidade de narrar e pelos aspectos fantásticos que iluminam a trama.

Nós da natureza definitivamente não temos isso de ilusões. Temos justas expectativas de que as coisas sigam seus ciclos, mas não podemos entender o que é isso de criar uma ideia impossível e cultivá-la, propagá-la aos filhos, talvez para que sejam felizes enquanto podem.

A árvore mais sozinha do mundo está dividido em duas partes. Na primeira, conhecemos os personagens em profundidade; na segunda, a narrativa se concentra na chegada de Elvira, mãe de Guerlinda, que vem ajudar no período da colheita. Elvira introduz um elemento de tensão: sua personalidade contrasta com a atmosfera da casa, habituada ao ritmo dos moradores. A avó cutuca feridas antigas — fala da disputa entre as duas filhas, comenta as relações familiares, mas, acima de tudo, está ali para oferecer apoio.

A força de sua presença, embora movimente a casa e provoque reflexões, não é suficiente para salvar a todos de um destino que já parecia selado desde as primeiras páginas. A tristeza que marca a condição dos personagens se intensifica no desfecho, mas o romance sustenta a firmeza narrativa e a sensibilidade.

A árvore mais sozinha do mundo
Mariana Salomão Carrara
Todavia
208 págs.
Mariana Salomão Carrara
Nasceu em São Paulo, em 1986. Além de escritora, atua como Defensora Pública. É autora de Idílico (2007), Fadas e copos no canto da casa (2017), Se deus me chamar não vou (2019), indicado ao Prêmio Jabuti; É sempre a hora da nossa morte amém (2021), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e também indicado ao Jabuti; Não fossem as sílabas do sábado (2022), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura; e o infantil Sabor paciência (2025).
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho