O seu crítico

O que é necessário para um crítico literário ser um verdadeiro crítico literário, na opinião de Carlos Eduardo de Magalhães
01/11/2007

O que torna uma pessoa crítico literário? Apenas sua assinatura num texto opinativo sobre um livro qualquer, publicado num jornal ou revista, ainda que importante? Não. Os primeiros que tornam alguém um crítico literário são o caixa da padaria, a moça que pede a identidade para preencher uma ficha qualquer, a secretária do médico. Caso o sujeito seja chamado pelo primeiro nome, com intimidade, ele não é um profissional que se deva respeitar. Caso se dirijam a ele como seu Fulano, ou dona Fulana, aí sim. Porque o crítico deve ser um senhor. Todo crítico devia escrever sua idade ao lado do nome, no fim de seu artigo. Com menos de 35 anos não devem ser levados a sério. Entre 35 e 40, tornam-se crítico júnior. Um crítico deve ter acima de 40 anos. Assim como só se vota acima dos 16, se dirige acima dos 18, mesma idade em que se pode beber. Infelizmente, o que se viu nos últimos anos foi um assassinato da crítica literária e dos críticos, de sua credibilidade. Crime cometido pela visão de curto prazo, pela pressão de baixos salários, pela função marqueteira do texto, pela desimportância da literatura como moeda no mercado, pela visão equivocada de que as universidades com seus títulos de mestrado, doutorado, garantem a qualidade da crítica. Não garantem, pelo contrário. Cooptam-na.

Por que alguém novo é despreparado para a função? Primeiro, pela falta de repertório. Segundo, pela falta de maturidade. Terceiro, pelo excesso de impetuosidade. Quarto, pela vontade oportunista de se fazer conhecido e gritar verdades. A função de um crítico não é achar um livro bom ou ruim, o que, diga-se, é fácil. É desconstruí-lo. É enxergar no livro suas origens. Descobrir de que autores o autor criticado bebeu, de quem ele se apropriou. É enxergar nele seu passado e seu futuro. É entender como se estabelece o diálogo livro-realidade. Já conversei com pessoas que escreveram críticas em veículos relevantes que nunca leram Faulkner. Um crítico tem, necessariamente, que ter lido Faulkner. E, antes dele, Hemingway seu contemporâneo que o influenciou, ainda que tenha sido para contrapor-se a ele. E também Joyce, que mexeu com as estruturas do romance. E também Balzac, Stendhal, Flaubert, Dostoiévski, Kafka, e tantos outros. E também Cervantes, que o inventou. Assim como deve ler Xavier de Maistre antes de ler Machado de Assis. E ler Machado de Assis antes de ler qualquer autor brasileiro. Mais, precisa ler o que de melhor estão produzindo no momento, aqui e lá fora. Identificar na literatura contemporânea as possíveis influências de seu autor-trabalho. O autor não precisa desse repertório todo, basta um seu particular, o leitor tampouco, mas o crítico sério é obrigado, ele deve ser a própria a história da literatura. É isso que dele se espera. É ele quem vai nos garantir a autenticidade, quem vai esclarecer o caminho, quem vai mostrar que o que parece novo é apenas uma cópia tosca e que o que parece pálido traz embaixo da primeira camada cores surpreendentes. Quem vai nos apontar livros que parecem bons, e não são, livros que parecem inexpressivos a um primeiro olhar e que são excelentes. Porque o primeiro olhar é determinado pela moda, pela geração de leitores. Um crítico tem de estar acima disso.

Para ilustrar, sugiro o filme Sindicato de ladrões, de Elia Kazan. Depois de ver o filme, assistir aos extras. Lá, explica-se que a cena da conversa entre irmãos, no banco detrás de um carro, é das mais importantes da história do cinema. Diz que foi ali que Marlon Brando reinventou a arte da dramaturgia. Sem o crítico, uma informação que se perderia. Porque o crítico é um estudioso, ele sabe disso. Já que falei de cinema, uma menção a Cidadão Kane, de Orson Wells. O personagem que dá nome ao título termina um texto que o amigo, crítico de seu jornal, estava escrevendo descendo a lenha na apresentação de canto de sua mulher. E mantém o tom duro das linhas já escritas. Não tivesse despedido o amigo no dia seguinte, Kane seria um bom patrono para os críticos. Desculpemo-no, afinal, a mulher da gente é a mulher da gente, ainda que cante mal. Em tempo, ser crítico não é um prêmio, é um fardo.

Degustar e julgar
Mais que puramente formal, ou técnico, a função de um crítico é identificar, ao se torcer o livro como se torce um pano úmido, gotas da alma humana que porventura pinguem dali. É levar à boca esses pingos, prová-los como a uma sopa de muitos ingredientes, reconhecer cada um, esclarecer ao leitor, recomendar ou não que se saboreie o caldo. O grande escritor desvenda a alma humana. O grande crítico degusta e julga.

Em vez de socos e pontapés, palavras e frases que se encaixam umas às outras, visões de mundo que se chocam e se complementam. O crítico deve encarar uma leitura como uma luta. E deve querer a vitória. Quando ele sai derrotado, o livro vale a pena. Quando ele vence, não vale os cobres. São adversários, críticos e escritores. O maior respeito que um crítico tem com o escritor é ler seu o livro com raiva, para depois ser firme sem perder a elegância. O crítico deve se contrapor à obra, não promovê-la. Tese, antítese. E a síntese é a própria literatura. Por isso, críticos-escritores é algo difícil de engolir. Quer por esse conflito interno; quer por um corporativismo que compromete a honestidade intelectual (amigos falam bem de amigos, jornalistas falam bem de jornalistas, acadêmicos falam bem de seus pares), e honestidade intelectual é o maior, se não o único, patrimônio de um escritor; quer por achar que tudo que é diferente do que escreve é ruim; quer por simples inveja, do texto, da editora, do espaço que o autor-trabalho tem e que ele merecia e não teve. Jamais vi um escritor-crítico desancar algum livro da editora que o publica. Além de um trocado, pois se paga mal, um dos motivos que levam o escritor a escrever críticas é a divulgação de seu nome. É assombroso, o prestígio muitas vezes vem desse trabalho e não de sua produção literária. Não consigo, de bate pronto, pensar em alguma profissão em que isso aconteça. Como se o jogador de futebol fosse contratado por ser bom comentarista, como se você confiasse no médico não por seu histórico de tratamentos e diagnósticos, e sim pelas fofocas que ele faz dos outros médicos. Escritor, escritor, literatura mesmo, não é profissão. Não. É um trabalho árduo que não permite concessões, que consome tempo e energia. Não apenas o tempo em que se fica preenchendo de letras a tela do computador, mas o tempo que o projeto toma na fila do metrô, o silêncio que vem na mesa do bar enquanto todos riem de alguma piada, as caminhadas olhando o chão, as vezes em que se acorda no meio da madrugada, o piso frio a gelar os pés, para anotar uma solução que parecia impossível. Existem alguns escritores que exercem a crítica de maneira muito consistente e, mais importante, independente. Pelos textos que li, o paranaense Cristovão Tezza é um deles. Tem mais de 50 anos.

Tenho minhas dúvidas se o Estado deve prover bolsas de auxílio a artistas, tendo a achar que não. Porém, estou seguro que bolsa ao crítico seria importante. Sua formação é cara e demorada, e eles são fundamentais, balizam a produção literária de um país. Nivelam-na. Por cima, ou por baixo. Não devem estar ligados à academia, nem ter amigos em editoras. Se não tiverem amigo algum, melhor. Deveriam, também, comprar os livros sobre os quais irão se debruçar, assim como um crítico gastronômico sério vai ao restaurante sem se identificar e paga a conta. E não é um trabalho rápido, por mais que seu consumo seja breve, minutos da concentração de um leitor. Alguém que escreve uma crítica por semana não tem como fazer bem feito. Porque o livro deve ser lido, inteiro. Depois, deve ser decantado. Uma crítica cuidadosa, bem escrita, responsável, demanda tempo.

O seu, ou a dona, deve ter personalidade forte e ser meio ranzinza, ainda que seja generoso. Aliás, a generosidade de um crítico com autores de vinte e poucos anos é importante para a construção posterior de livros maduros. Contudo, não é demais lembrar que uma crítica elogiosa a um livro sofrível é tão danosa ao autor iniciante quanto uma crítica que estraçalha um livro bom.

Honestidade intelectual, cabelos brancos, repertório, personalidade forte, não garantem excelência, assim como passar no exame da OAB não garante um bom advogado. Mas é um começo, ainda que um começo por exclusão. São só pré-requisitos. Aí vêm as competências, uns são mais capazes que outros. Uns talentosos, outros esforçados. Uns originais, outros meio Google. Até que aparecem uns tipos raros, que conseguem separar a arte do truque. Não, truque não é arte, é truque. Arte é mágica. Truque é algo para fora, a arte para dentro. O crítico deve estar aí por nós. Desmascarar o que carece de rosto. E o resto, é por nossa conta.

Carlos Eduardo de Magalhaes

Nasceu em São Paulo (SP), em 1967. É autor de nove livros, dentre os quais Mera fotografia (1998), Os jacarés (2001), O primeiro inimigo (2005), Dora (2005) e Trova (2013). É editor da Grua Livros.

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