O servo da palavra

Carlos Nejar mantém os pés firmes sobre a terra, com os olhos voltados para Deus
Carlos Nejar, autor de “A espuma do fogo”
01/09/2002

Hoje a poesia é, ao mesmo tempo, procura e encontro de Deus, para que o homem possa se ligar e até compreender o mistério do sublime, da divindade. “Depois do meu encontro com o Deus vivo, a minha criação tomou uma nova dimensão, a da Eternidade”, diz o poeta Carlos Nejar, membro da Academia Brasileira de Letras, autor de livros significativos da poesia contemporânea de um país feito de muitos equívocos e mentiras na área da poesia. “O homem não é apenas um animal político e social. É também espiritual. Tudo compõe a integração dentro do Universo”, assegura.

Nejar acaba de lançar em Portugal A idade da eternidade — poesia reunida (Imprensa Nacional-Casa da Moeda – Coleção Escritores dos Países de Língua Portuguesa), volume com 420 páginas que reúne três obras inéditas: Livro de Vozes, Os mortos visíveis e Rumor das idades, escritas entre 1980 e 1989, e ainda A idade da aurora: fundação do Brasil (1990), Memórias do porão (1985), Elza dos pássaros ou a ordem dos planetas (1993), Aquém da infância (1995) e A ferocidade das coisas (1980).

Outro lançamento do poeta tem o título A espuma do fogo, que Nejar chama de sinfonia pampeana em Sol e Dor Maior, um longo poema de 2791 versos escritos em 1996/97, revisados em 1999 onde ele vive, no seu Paiol da Aurora, na praia de Guarapari, no Espírito Santo. O poeta observa que quando alude ao peito do pampa, refere-se à região das vinhas: Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Farroupilha e cidades lindeiras, em diálogo com Inês de Castro, de Luiz Vaz de Camões. No longo poema, o poeta observa que “viver é ir convalescendo as coisas”. Nessa viagem lírica e ao mergulhar na terra onde nasceu, o poeta revela: “O tempo vai na corrente/das coisas e jamais pára”.

Poesia acima de tudo, a narrativa é também um profundo mergulho na vida, no que não existe mais, no que está ainda por vir. Essa paisagem da absoluta intimidade com o gesto poético, o dizer em acenos e palavras às vezes severas, num tom bíblico que tem na terra a sua raiz, nessa mesma terra do nascimento, onde vivem os presságios, as aves, os antepassados calados em fotografias antigas, moldura dourada a revelar o tempo, todas as histórias do tempo, todo o tempo que suga a existência, a misericórdia, a palavra, o reminiscente.

Um canto. Um longo canto da vida e para a vida, para a própria descoberta. Nejar diz: “Esse canto sobre o pampa, talvez tenha nascido da contemplação do rutilante mar de Santa Mônica, que me diz tanto da coxilha. E deste silvo de vento, como choronas esporas na barriga do cavalo. Ou da lembrança de meu avô Miguel, que povoa minha infância, tal como a aldeia de São Miguel das Missões povoa a infância do Rio Grande, com Sepé Tiaraju, índio guerreiro, morto na devesa de sua gente”. Nejar ensina: “…um filho nunca deixa a terra. Por trazê-la em si”.

Saindo de A espuma do fogo, temos a antologia publicada em Portugal. Um volume vigoroso da poesia de Nejar, a começar pelo A idade da aurora: fundação do Brasil, que pode ser lido como um romance com começo, meio e fim. Nejar explica o longo poema com palavras de Abgar Renault: “Livro que cria novas formas de expressão poética. De Idade da Aurora ninguém sai como entra”.

Trata-se, como diz o poeta, de um retorno amoroso ao sentimento de nação, natureza, povo, terra, floresta. Um retorno ao Brasil, no início de seu destino, uma redescoberta épica e também lírica. Se pode ser lido como um romance, também pode ser entendido como uma longa oração à vida do homem diante e dentro de si mesmo, como sempre a procurar-se na escuridão. E isso vale perfeitamente também para Memórias do porão, Elza dos pássaros ou a ordem dos planetas e Aquém da infância, uma poesia feita exclusivamente da existência do homem a lidar com seus anseios de liberdade, o que implica ansiar sempre pela vida, especialmente quando se acredita que tudo, absolutamente tudo, é eterno. À semelhança de Deus.

Carlos Nejar assume ser hoje um “servo da palavra”, ao olhar o mar no seu Paiol da Aurora, na praia de Guarapari, o mar imenso, quase verde, quase cinza. Seus poemas (“prosopoemas”, como quer em alguns casos) se desenvolvem com uma narrativa quase bíblica, um mergulho onde ainda vivem as paisagens que o poeta não quer perder, já que fazem parte de sua vida, equivale dizer, fazem parte de sua poesia.

Ao situar o Livro das vozes, para citar apenas um exemplo, ele recorre a Paulo (I, Coríntios, 14:10): “Há, sem dúvida, muitos tipos de vozes no universo e nenhuma delas é sem significação”. Essa é a tarefa de Nejar, que ele se impõe naturalmente como uma missão: Todas as palavras têm um significado e é preciso fazer com que as palavras sejam limpas diante de um mundo feito de muitas sombras e pouco sol.

Os três livros inéditos incluídos no volume, na verdade, podem fazer uma única obra poética em que a morte, especialmente, é uma espécie de planta que cresce de verso para verso, de poema para poema, numa linguagem de absoluta convicção na vida, porque afinal é a vida que vale, é a vida que prepara e conduz à eternidade dela mesma, acima de dores e de angústias. E depois o mundo é feito só de coisas efêmeras, como se não existissem: “Irei num dia frio/ com a roda de meus ossos/ os olhos de alecrim/ e o incrível desforço/ de viver onde posso/ e de morrer em outro” (O livro das vozes, pág. 310).

Nejar explica a constante presença da morte, que ele quer com M maiúsculo: “É a morte que morri tantas vezes e a que também eu vi morrer. E essa morte da Morte é a crença poderosa no poder da palavra revelada. Sobretudo, o poder ‘Daquele que é a Palavra’, de que somos apenas o relâmpago ou centelha”.

Nejar quer dizer em seus poemas que a morte não é fim como se pode imaginar ou até mesmo como pode o poema sugerir. Não. “Renascemos dela. Não estou entre os seus arautos. Estou entre os que crêem absolutamente na Ressurreição. O Espírito de Deus em nós realiza a proeza de continuar vivendo. É o mistério da poesia.”

A poesia de Nejar revela que o poeta lamenta o mundo que hoje se apresenta e se revela fragmentado e, em muitos casos, destruído. Assim, tenta viver dentro do sonho e da poesia ainda possíveis, da palavra que ainda existe, já que, para ele, “o homem pode encontrar a poesia onde encontrar a vida, o amor e a liberdade”.

Carlos Nejar hoje se afirma acima dos gêneros literários. Defende seu único espaço, o de ser livre em relação à existência e à literatura. Assegura que cada vez mais quer ser um poeta da poesia e menos poeta do verso, já que seu trabalho é com a linguagem.

Não há invenções em seus versos, ou nos “prosopoemas”. A poesia se revela e busca segredos e faz constatações dentro e fora do tempo, onde dorme a própria memória do homem. Nejar é um poeta missionário. Ele quer dar seu testemunho de fé na vida e na poesia que deve ser feita para o homem, se quiser ter alguma serventia no mundo. Diante disso e nessa condição — ele diz com absoluta convicção para que não pairem dúvidas em relação à sua obra: “Ao escrever, estou, na verdade, sendo escrito. Nas pegadas de Deus”.

Dois poemas de Nejar

Copo de água

Deus é um copo de água
um copo de água
um copo lento
de água.

É como se o tempo
arqueasse em mim
e fosse o comandante
e eu, comandado
no navio que começa
de onde vim
e onde acabo.

O coração é um caminho
um caminho
um caminhante.

Não correm nele
Palavras.

(de “Livro de Vozes”)

O texto

Deus é o momento de vidência
o momento fatal
de minha alma,
potentíssima escada,
sibilante.
E só na minha morte
hei-de escrevê-lo.

Na minha morte última,
dispersos os sentidos,
animais cegos
num labirinto.

Mas escrever é Deus
preso no texto.

(De “Os Mortos Visíveis”)

A espuma do fogo
Carlos Nejar
Ateliê Editorial
106 págs.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho