O ser humano nas cordas

“Menina de ouro”, de F. X. Toole, aposta no boxe como metáfora ideal da vida
01/10/2005

A vida foi uma vagabunda desalmada com Jerry Boyd (1930-2002). Sempre fascinado por boxe, só se deixou envolver quando tinha mais de 40 anos. Treinou por um tempo, lutou poucas vezes e trabalhou como treinador e cut man — homem dos cortes, que estanca os sangramentos entre um round e outro. Inspirado por Ernest Hemingway — um notório apreciador do boxe —, Boyd decidiu escrever.

Para não misturar sua vida nos ginásios com a literária, pegou as iniciais do jesuíta Francisco Xavier, transformado em santo pela igreja católica, e o sobrenome do ator irlandês Peter O’Toole, criando o pseudônimo F. X. Toole — que aparece no alto da capa de seu único livro, Menina de ouro, levado ao cinema por Clint Eastwood e recém-lançado no Brasil pela Geração Editorial. Escrito assim, faz parecer que o católico e irlandês Boyd teve sorte e sucesso. O filme inspirado em sua obra venceu as principais categorias do Oscar neste ano, aumentando instantaneamente o interesse das pessoas por seu trabalho. Seus três filhos trabalham para editar o inédito e inacabado Pound for pound, de mais de 800 páginas, cujos direitos de adaptação ao cinema já foram vendidos.

Boyd morreu antes de ver o filme de Eastwood concluído e sem experimentar o sucesso que a posteridade lhe atribuiria. O máximo foi desfrutar o dinheiro ganho com a venda dos direitos à produtora Malpaso, do ator e diretor. Fim triste para um sujeito que passou mais de quatro décadas recebendo recusas de editoras. Em 1999, tinha 69 anos quando finalmente conseguiu publicar um conto na revista Zyzzyva, editada em São Francisco (Califórnia), fato que rendeu um contrato com o agente Nat Sobel e, no ano seguinte, a publicação de As cordas queimam — mais tarde rebatizado Menina de ouro —, antologia com seis contos, para os quais Boyd escreveu uma introdução, explicando sua relação com o boxe. A tradução ao português vem com pedigree e cada um dos textos é assinado por uma figura distinta: Marçal Aquino, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Moacyr Scliar, Sérgio Dávila, Wladir Dupont e Luiz Fernando Emediato.

Mailer vs. Boyd
Em A luta, Norman Mailer fala sobre o confronto entre Muhammad Ali e George Foreman naquele que é, possivelmente, o melhor livro a descrever a ação no quadrado de um ringue durante um embate histórico, realizado em Kinshasa, capital do Zaire (atual República Democrática do Congo). Mailer narra como poucos. O trecho a seguir, traduzido por Cláudio Weber Abramo, mostra os instantes finais da luta realizada em 1974.

Faltando vinte segundos para o final do assalto, Ali atacou. Por sua própria avaliação, por aquela avaliação decorrente de vinte anos no boxe, com o conhecimento de tudo o que aprendera a respeito do que se pode e do que não se pode fazer em qualquer instante no ringue, escolheu aquela ocasião e, deitado nas cordas, acertou Foreman com uma esquerda e uma direita, saiu das cordas para atingi-lo com uma esquerda e uma direita. Nesta última direita aplicou outra vez a luva e o antebraço, uma pancada estupefaciente que lançou Foreman aos tropeções para a frente. Enquanto ele passava diante de si, Ali acertou o lado de seu queixo e saltou das cordas, de modo a deixar Foreman próximo a elas. […] E então um grande projétil, do tamanho exato de um punho dentro de uma luva, penetrou no meio da mente de Foreman, o melhor soco daquela noite espantada, o soco que Ali guardara por uma carreira. Os braços de Foreman voaram para os lados como os de alguém que salta de pára-quedas de um avião e, nessa posição dobrada, tentou vaguear até o centro do ringue. Todo o tempo seus olhos ficaram voltados para Ali, e fitou Ali sem raiva, como se na verdade Ali fosse a pessoa que ele melhor conhecesse no mundo, que estaria com ele em seu leito de morte. A vertigem tomou George Foreman e o revolveu. Ainda dobrado pela cintura, naquela posição de incompreensão, os olhos o tempo todo em Muhammad Ali, começou a desmoronar e a ruir e a cair, mesmo não querendo ir ao chão. […] Foi ao chão como um mordomo de sessenta anos e um metro e oitenta, que acaba de ouvir uma notícia trágica, sim, caiu ao longo de dois desmoronantes segundos, ao solo foi gradualmente o Campeão e Ali voluteou em torno dele num círculo fechado, a mão pronta para atingi-lo mais uma vez, mas não precisou fazê-lo, uma escolta íntima durante o trajeto para o chão.

Boyd é mais seco e direto. Como se estivesse em uma luta franca. Quase todas as suas metáforas são vulgares e reforçam a atmosfera do boxe como um esporte essencialmente masculino, violento e, independentemente de regras ou juízes, sujo. A epígrafe que abre Menina de ouro foi tirada do livro Sobre boxe, de Joyce Carol Oates: “Boxe é para homem, sobre homem, é a essência de ser homem. Uma glorificação da religião perdida da masculinidade, ainda mais cortante por ter sido perdida”. A narrativa de Boyd é o que os americanos chamam de fast pace, a literatura rápida, aquela pela qual o leitor transita com velocidade, levado pelo ritmo dado pelo escritor. A luta que acontece no conto O judeu negro, traduzido por Scliar, serve de amostra.

A cadela loirinha vem rebolando com o cartaz número sete e aquela coisa de tiras no traseiro. Sorri para o Reggie como se ele fosse o rei. O gongo toca para o sétimo assalto. Reggie está respirando bem de novo, está renovado e se move como uma fera. Golpeia forte o Dashiki por três minutos, corta o olho do cara tão fundo que quando o Dashiki enxuga o ferimento ele mal pode acreditar que tem tanto sangue na luva. Reggie continua golpeando aquela luva como se estivesse comendo uma boceta, rebentando-o cada vez mais e insistindo no castigo. Chamo o Reggie, digo que o globo ocular do Dashiki está aparecendo através do ferimento, que assim ele vai ficar cego. Não é verdade, e Reggie sabe que não é verdade, mas Dashiki não sabe que não é verdade, entende? Dashiki protege o rosto e agora Reggie vai ao fígado dele, e ao plexo solar, e às últimas costelas, golpeia ao redor do rim. Reggie está lutando como se fosse o campeão do mundo.

— Baixa a bola, Reggie, te diverte! — eu grito. — Faz bonito para mim, garoto.

Reggie está destroçando o cara. Dashiki tenta reagir, mas ele está fora e sabe disso. Continuo gritando pro Reggie que o Dashiki não tem como reagir. Dashiki ouve e deve estar chamando pela mãe. O sino soa e Pats entra no ringue para tratar o lábio de Reggie. Mas primeiro ele tem de limpar todo o sangue do Dashiki que está sobre ele. Eu estou recolhendo o cuspe sanguinolento do Reggie quando ele salta do banco, corre ao redor do ringue e grita como um índio selvagem. Pats olha, eu olho.

O que nem eu nem Pats vimos é que o juiz veio vindo através do ringue: acena os braços assinalando que a luta terminou, que o Dashiki, lá no canto, desistiu, e que Reggie é o vencedor.

A primeira vez em que ouviu uma luta no rádio, Boyd estava com o pai. Por influência dele, passou a cultuar o esporte. “Meu pai era um fanático do boxe, e eu o adorava por me deixar ser parte desse mundo que ele amava”, escreveu no texto Membro do culto — uma introdução, o primeiro de Menina de ouro.

Conto a conto
Branco em um meio onde negros predominam, sempre teve de lidar com preconceito. Fascinado por saber do que um boxeador é feito, passou a treinar e a trabalhar nos corners — principalmente como cut man. A experiência rendeu o conto Cortes e cicatrizes, sobre um “velho bestalhão irlandês” que aceita trabalhar para um lutador chamado Hoolie e descobre que este mentiu sobre o valor do combate a fim de pagar menos (o cutman recebe 2% do que é dado ao boxeador). Ele decide então provar ao canalha como o homem dos cortes pode influenciar o resultado de uma luta.

O mau-caratismo aparece também no segundo conto, Judeu negro, no qual o promotor de lutas Harvey Silvershade beneficia o seu lutador, Dashiki — favorito nas bolsas de apostas —, enquanto tripudia sobre o desafiante, Reggie, relegando-o a um hotel inferior, pagando-lhe refeições duvidosas, atrasando o vôo de seu técnico, etc. (coisas que devem acontecer aos montes com atletas que se dispõem a enfrentar campeões). Reggie mostra determinação o suficiente para superar não só Dashiki, mas todo o jogo sujo de Silvershade.

A terceira história é Menina de ouro. O roteiro para cinema, escrito por Paul Haggis, faz uma colagem de vários textos de Boyd, acrescentando personagens e situações de outros contos. No livro, além de mais enxuta, a narrativa sobre a garota branca que passou a vida trabalhando como garçonete, sonhando ser campeã de boxe ganha em impacto. As primeiras linhas já se tornaram antológicas:

O boxe é um ato antinatural — sussurrou a voz. — Entenda isso, garoto. Tudo no boxe é ao contrário da vida. Você quer se movimentar pra esquerda, você não dá um passo à esquerda, você se apóia nos dedos do pé direito, assim. Para se mover pra direita, você usa os dedos do pé esquerdo, vê? O velho não olhava nos olhos, ele olhava através dos olhos, direto para dentro de sua cabeça. — Ao invés de fugir da dor, que é o natural da vida, no boxe você vai em direção a ela, entende? Então, agora que tomou a decisão de ser um lutador, você tem que saber como lutar, porque mesmo sendo durão, meu amigo, esses picas grossas vão te derrubar.

Maggie Fitzgerald, a garota branca em questão, é obstinada. Começa a freqüentar o ginásio Hit Pit disposta a ter Frankie Dunn como técnico — é dele a voz que abre o conto. Ele não treina garotas, mas vai abrir uma exceção. Maggie ascende rapidamente e sua queda consegue ser ainda mais veloz. A fatalidade da vida, inescapável, é o tema que faz desse um dos melhores contos de Boyd. O filme acabou alimentando uma discussão sobre eutanásia, reforçada por outro longa-metragem inspirado em livro, o espanhol Mar Adentro. Embora tanto na literatura quanto no cinema — mais no primeiro —, a morte induzida esteja apenas na margem da história.

Uma das mudanças mais significativas operadas pelo roteiro de Haggis foi colocar Scrap (Morgan Freeman), do conto Gelo na garrafa, como narrador do filme e braço direito de Dunn (Clint Eastwood). Todo lutador que trabalha duro tem a sua chance — e ela pode resultar em glória ou fracasso. Muitos têm apenas uma oportunidade de ganhar o título. Scrap teve seu momento, mas acabou derrotado. Mais uma vez, o boxe é a metáfora ideal da vida.

Nem todo mundo enxerga o boxe como um esporte. Para muitos, ele é um tipo de religião ou forma de arte. O jogo e a luta — Lutando em Philly fala sobre o cut man Con Flutey, velho branco com cabelos grisalhos e de óculos trifocais. Ele vai trabalhar no corner de Mookie na luta contra o Africano, a ser realizada no ginásio Blue Horizon, um famoso de Filadélfia (cidade da Pensilvânia apelidada de Philly). Quando Con chega à cidade, o narrador aproveita para criticar um dos filmes de boxe mais populares de todos os tempos: “Subindo a avenida, estava o Philladelphia Museum of Art e os degraus que Sylvester Stallone galgou como ‘Rocky’, a trilha sonora o empurrando para cima. O problema é que Stallone não conseguia transmitir o que o lutador sente”. É exatamente para o museu de arte de Filadélfia que Con escapa, horas antes da luta, disposto a ver obras de Michelangelo e Rodin. Depois, visita a igreja de São Francisco Xavier, pede a Deus para vencer a luta e reza pela alma de Ernest Hemingway.

No boxe, às vezes, é preciso vencer bem o suficiente para não haver dúvidas. E só o nocaute tem esse poder. Uma luta decidida por pontos pode facilmente ser embolsada por promotores ricos e influentes. Boyd parece dizer que o talento e a honestidade não são páreos para a canalhice bancada pelo dinheiro. No boxe (e fora dele), é necessário ser mais do que simplesmente talentoso e bom.

As cordas queimam pode ser considerado uma novela. É o derradeiro e mais longo texto do livro, com 90 páginas. É também aquele que trata o preconceito racial de forma mais contundente. O ex-policial branco Mac é o treinador do jovem negro Puddin. Eles vivem em vizinhanças barras-pesadas de Los Angeles. O ano é 1992 e Puddin se prepara para as Olimpíadas de Barcelona, na Espanha. A história sofre uma reviravolta quando o autor mistura fato e ficção. No dia 29 de abril, os policiais brancos que espancaram o negro Rodney King — o que ocorreu de fato, no dia 3 de março de 1991 — são absolvidos. A cidade vira um campo de batalha, vários são mortos, centenas terminam feridos e os prejuízos causados por depredações e incêndios custam muitos milhões de dólares. A atmosfera de hostilidade racial engole Mac e Puddin, levando-os a um desfecho hediondo. Diferentemente da do ringue, a violência das ruas é irracional e sem limites. O gongo é a maior vantagem do boxe sobre a vida.

Menina de ouro
F. X. Toole
Geração Editorial
293 pags.
Irinêo Netto
Rascunho