O selo das antas ou a “peleja” de Alberto Cavalcanti

O incansável Leon Cakoff pretende promover, durante a Mostra BR de Cinema 2002 — de 18 a 31 de agosto próximo —, uma homenagem ao cineasta Alberto Cavalcanti
01/04/2002

O incansável Leon Cakoff pretende promover, durante a Mostra BR de Cinema 2002 — de 18 a 31 de agosto próximo —, uma homenagem ao cineasta Alberto Cavalcanti, assinalando os 20 anos da morte do autor de En rade (1927). Uma retrospectiva dos filmes do brasileiro e o lançamento de um livro sobre a obra de Alberto — de autoria do diretor francês Bertrand Tavernier — já estão oficialmente programados.

O internacional Cavalcanti faleceu em Paris, às dez horas da manhã de 23 de agosto de 1982, de “velhice e extrema fadiga de viver”, segundo a pessoa que me telefonou, apenas um par de horas depois da morte de um homem que estava magoado demais com o Brasil para se permitir morrer na sua pátria. Tinha 85 anos — e uma longa carreira em dois continentes, na qual o seu nome figurava como importante pelo menos para três cinematografias: a francesa, a inglesa e a brasileira. Era um cidadão do mundo, uma figura legendária da “sétima arte”, conforme era chamada a linguagem nova, por ele abraçada em detrimento da arquitetura (na qual se diplomou em Genebra).

Fui amigo desse homem de extrema elegância e generosidade, carioca de ascendência pernambucana — pelo lado materno — e cuja mão firme desenhou os estudos de cena e vestuário de O Rei Póstumo, peça de teatro que escrevi em 1972, ano em que conheci o cineasta, na sua mais larga temporada em Pernambuco (depois do período de filmagens de O Canto do Mar).

Um dia, pretendo escrever sobre o Alberto que se desempenhou de tal “tarefa” — em Olinda e na Flórida — com o rigor de quem estivesse se dedicando ao trabalho para um texto da tradição do melhor teatro. Longe disso, a peça era inédita e o autor tinha vinte e quatro anos. Temerário, o moço foi “em frente” e solicitou os esboços do mestre que se iniciara na profissão justamente como cenógrafo, trabalhando com Marcel L’Herbier, Louis Delluc e outros nomes da “avant-garde” francesa. O famoso Alberto Cavalcanti não se importou que O Rei Póstumo fosse, em 1973, um texto ainda não encenado e da autoria de um estreante. Fez a sua parte, dando o melhor de si — e os estudos, de grande beleza, são hoje o maior atrativo da peça nunca montada. Lancelot do Lago, Guinevere, o rei Arthur, Merlim e outros personagens — além dos croquis do cenário — revelam uma das facetas do talento multifacetado do cenógrafo, arquiteto e diretor celebrado pela competência e domínio do métier etc. Os desenhos foram reproduzidos na edição primeira — e única — da peça em dois atos, publicada pela Editora Universitária (1974), mas não são eles o meu assunto, nem sequer a carreira prodigiosa de Alberto ou mesmo a retrospectiva de agosto, projetada para ser completa e ampla (fala-se em 80 filmes, entre curtas e longas).

Meu assunto é Nicholas Nickleby, de 1946, um dos mais estimados filmes dentre aqueles dirigidos, para a Ealing Studios, pelo cineasta que morreu longe do seu país e “esquecido dos brasileiros”. Baseado num dos romances “menores” de Charles Dickens, o filme é considerado uma das mais felizes adaptações do romancista vitoriano feitas até o momento. Para alguns, até mesmo a melhor — o que implica na comparação com longas-metragens dirigidos por Sir David Lean e outros diretores do mesmo nível.

Acontece que o cineasta brasileiro — e, aqui, mais inglês do que os britânicos — concebeu uma Londres de época (1830) irretocável nesse Nicholas Nickleby com toques Tudor e toda uma confusão pré-vitoriana que o tornam ainda hoje encantador. Talvez mais — de fato — do que os encantadores Grandes Esperanças e Oliver Twist, meio atropelados pela abundância de personagens e detalhes típicas do autor de David Copperfield. Essa lição albertiana do melodrama à Dickens, não poderá faltar, portanto, na mostra que se prepara para o próximo ano — pois já basta que tal lição tenha sido atropelada, um dia, pelos preconceitos de um exibidor brasileiro. Fiquei sabendo do que aconteceu com Nicholas, cá na “terrinha”, por carta do próprio cineasta, datada de 23 de dezembro de 1974 e enviada de Nova Iorque:

“Isto é um apêndice da minha carta de três dias atrás… Achei engraçada a ressurreição do filme — Nicholas Nickleby — pelo Natal, em um cinema elegante de New York!”

Abro parênteses: Alberto anexara, à carta, a programação (“Goings on about town”) natalina, na qual se anunciava o filme no Carnegie Hall Cinema, no dia 24 de dezembro. Claro que ver o velho Nicholas Nickleby “ressuscitado”, pelo Natal (conforme considerou, com elegante ironia), era muito agradável para o diretor… mas a carta prosseguia, a respeito dos dias já remotos do Brasil do anos 50, quando ele tentara promover a exibição comercial da película no Brasil, “nos cinemas da empresa de Luiz Severiano Ribeiro”. Depois de muita conversa e bons contatos, arranjara-se uma sessão especial para o todo poderoso exibidor, ao fim da qual Severiano dera o veredicto contrário às pretensões do cineasta. Acho melhor dar os termos sucintos da carta, na qual o próprio Cavalcanti compara a situação do filme encaixado na programação especial novaiorquina, na tela nobre do Carnegie Hall, com aquele julgamento severíssimo, ouvido do homem que detinha o poder de decidir o que os brasileiros iriam ver nos cinemas. Aspas: … e bem me lembro do Severiano Ribeiro tê-lo rejeitado (o filme) como julgando-o — sic — acima da mentalidade do público brasileiro! Um grande abraço do Alberto.

Foi mais uma decepção — dentre muitas — na experiência do cineasta com o seu próprio país. Essa, é verdade, das mais “leves” (as delongas e indelicadezas dos diretores da antiga Embrafilme, obstaculando o último projeto do cineasta — Antonio José, o Judeu — com certeza estiveram entre as mais duras), mas o caso de Nicholas Nickely me parece ter um sabor de “Febeapá”, todo especial. Também poderia ser relatado — como infeliz piada verdadeira — entre os “problemas inculturais brasileiros” que o escritor Osman Lins comentou e apostrofou, clamando no deserto. E servirá, agora, talvez para exortar os promotores da futura “Retrospectiva Alberto Cavalcanti” a de modo nenhum deixar de promover, em 2002, a “estréia” da antiga produção da Ealing (afinal!), 56 anos depois de realizada por esse brasileiro notável (que o Correio brasileiro, em 1997, infelizmente não considerou “notável” o bastante para figurar em selo comemorativo do centenário de nascimento), cuja “fadiga de viver” foi também a de sempre perder, no Brasil, na peleja da inteligência contra o selo das antas.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho