Desde o célebre relato de campanha — De Bello Gallico — de Júlio César, na Gália, passando por obras notáveis como Servidão e Grandeza Militares, de Alfred de Vigny (que Paulo Rónai traduziu, com maestria, para a Biblioteca do Exército), até chegar a Seven Pillars of Wisdom e outras obras contemporâneas, há toda uma “literatura de caserna”, da autoria de generais e soldados que escreveram sobre suas vidas e feitos, na guerra como na paz, no front como nos quartéis que são o cenário quase claustrofóbico da segunda obra de T. E. Lawrence.
The Mint — A Matriz — editado, na Inglaterra, quando o tempo já aposentara o ferro quente sobre as fardas bem passadas dos antigos colegas de “T. E. Shaw” (um dos nomes usados por Lawrence), pertence à alta linhagem dessas obras de temas militares, escritas por profissionais das armas que muitas vezes extrapolaram do seu assunto, voluntária ou involuntariamente, para atingir o plano maior, literário e filosófico, da tradição das Meditações de um outro imperador — Marco Aurélio — , que escrevia entre as batalhas e via coisas em geral desprezadas por generais atentos só aos mapas borrados pela nevasca.
O leitor brasileiro que já conhece a primeira obra de Lawrence — a narrativa sobre a Rebelião Árabe, relato bélico transfigurado pela pena do herói atormentado — , aqui depara não mais o chefe das tropas irregulares, o comandante de guerrilheiros conduzindo homens livres para livremente combaterem rumo ao sol da glória etc., mas sim encontra, no seu lugar, um soldado desvalido, um recruta com as suas queixas diferentes das ordens emanadas dos Pattons.
Em A Matriz, não se encontra horizonte algum de grandeza que console — como Rumm consolava o rebelde do deserto — e a nova personalidade do revoltoso se presta, inesperadamente, à servidão dos que obedecem com estranho e quase perverso orgulho.
Quem não conheça Os Sete Pilares da Sabedoria (mas conheça a legenda dourada de “Lawrence da Arábia”) talvez não compreenda, de início, o que se passa em The Mint, o drama particular contido no livro de um grande espírito que se submete ao pior castigo: subordinar-se à mediocridade da rotina e conviver aquartelado com homens sem vontade exceto a de comer e dormir por conta dos ministérios da guerra distante.
Distante? A Matriz foi escrito a partir de 1922 — quando o coronel Lawrence ainda era uma lenda viva na Inglaterra e os “anos de sombra” estavam se avizinhando dos refúgios escolhidos por outros ex-combatentes cansados da carnificina e dos banhos de sangue. Lawrence vinha da frente oriental de quatro anos antes: seu corpo e seu espírito ainda tremiam do horror vivido de Akaba a Damasco e… Bem, essa história pertence ao outro livro — e a “Lawrence da Arábia” (apelido, para ele detestável, que lhe pespegara o jornalista Lowell Thomas). Na verdade, o autor de Os Sete Pilares apenas tem o mesmo nome do autor desta obra sombria, voltada para a caserna, do ponto de vista de quem pretendera, um dia, inscrever a sua vontade “no céu, entre as estrelas”… mas que viria a jogar fora todas as suas condecorações (junto com a patente e mais as medalhas conseguidas por bravura etc.), para se alistar, mais tarde, como recruta anônimo em busca da falsa paz da caserna sem honras. Desequilíbrio? Instabilidade emocional levada às últimas conseqüências?
Em The Mint fica esclarecido o “mistério” da atitude de um general improvisado e farto de hastear a bandeira das causas perdidas ou ganhas ao custo de milhares de vidas: “El Aurens” já não suportava o demônio que habitara no seu personagem da lenda, o guerrilheiro de vestes brancas na verdade maculadas pelo desfecho da ação em prol da causa nacional dos árabes traídos por políticos e negociadores da desonra de Versailles.
Como tenente, capitão e coronel (nos poucos anos de uma carreira meteórica), Thomas Edward Lawrence fora o agente dessa equívoca história de promessas e quebra da palavra “dada” pela Inglaterra. Pessoalmente, perante as tribos, avalizara a palavra do rei (!) ao se ver obrigado a “garanti-la” de algum modo, olho no olho, nas conversas com cada emir beduíno arrebanhado para a luta pela Pátria Árabe — como entidade quase mística que deveria se tornar realidade em troca da abertura de uma Frente Oriental que pudesse dividir o teatro de operações da Primeira Grande Guerra (e assim exigir esforços, ainda mais desesperados, das tropas do Kaiser — aliado da Turquia, que mantinha os árabes sob o domínio da Suprema Porta).
Esse é o cenário do relatório de guerra (na origem) que T. E. Lawrence transformou na obra-prima traduzida por C. Machado (?), já em 1938, no Brasil.
Verdade seja dita: não é o caso da segunda obra do “aventureiro”, e em The Mint não está presente o branco fantasma do deserto, nem tremem as páginas com as cargas de camelo em derrapagem pelas dunas iluminadas de sol. Não há Rumm, não há o desfiladeiro das grandes perguntas, nem se vislumbra, aqui, o abismo da resposta que o homem de ação temerária recebe quando indaga em Os Sete Pilares: “Quem sou eu?”
À tal pergunta, um novo Lawrence tem, nesse livro, uma resposta pronta e dolorosa: eu sou um mero recruta na companhia de outros recrutas; sou um soldado sem vontade e do qual pretendem extrair o resto da alma — como se arranca um dente sadio para colocar, na boca, uma peça sem brilho.
The Mint veio com as armas da denúncia da vida esmagada da tropa — e causou mal-estar e até mesmo escândalo, ao expor a ignomínia de dentro dos quartéis da RAF e do exército britânico. Seu autor — que buscava a “comum humanidade” — encontrou a malta de homens sem voz, a ralé abandonada nas galés dos campos de treinamento, e resolveu que iria anotar todas as ocorrências da caserna monótona e suja, todo o vazio das noites de insônia e todos os fedores e miasmas dos depósitos de homens entregues a tarefas inúteis. A voz que clamara arengas metafísicas para as tribos atraídas pelo arabesco de uma idéia está calada em A Matriz, pelo menos naquela eloquência majestosa do livro solar e muito diverso deste livro “lunar” (do lado mais escuro da Lua). Neste, gritam as palavras de um homenzinho cheio do desespero do próximo — no sentido figurado e literal daqueles alojamentos de camas separadas por menos de um metro entre iguais cansaços, idênticas humilhações e estreitos pensamentos similares: folga das faxinas, manhãs de domingo, café, almoço, janta e cabos doentes da barriga.
A voz de “Lawrence da Arábia” é, aqui, quase irreconhecível — pois busca apenas gritar mais alto do que podem gritar, nos alto-falantes, os oficiais que dão as ordens absurdas. E os que queiram de fato ingressar nas Escolas de Soldados tendo como cicerone este Lawrence de Bovington (e outros campos), esqueçam o mito vestido de roupas principescas, com o cinto de Meca e a adaga de ouro. A esperança de rever o herói de Damasco deve ficar na estrada para o pó dos lugares sem nome, pois este é um livro que busca o aniquilamento, a morte em vida — e a encontra nas estreitas paredes dos estabelecimentos militares dos confins da Disciplina e da Ordem.
Aparecido só em 1955 — em “versão expurgada” — , seu rumor desagradável (para os militares ingleses) ainda ecoa nos ouvidos de quantos se lembram do choque da alta oficialidade que sempre vira em T. E. Lawrence uma espécie de ser incompreensível e soldado irregular por excelência: numa palavra, um insubordinado. The Mint é da autoria, portanto, do “insubordinado” malvisto pelos militares burocratas, e é esse homem contraditório que torna a obra cheia da misteriosa amplidão de uma consciência livre que se quis submetida a todos os jugos… talvez para provar da liberdade, final, de abdicar da liberdade. Por isso, sua leitura é salutar (e, quem sabe, necessária) porque nos faz entender que somos feitos de massa estranha — numa lição que não vem das rotinas que o livro detalha, mas daquela dobra onde a banalidade, ainda assim, não alcança banalizar o herói na lama. De certa forma, livro é o rascunho bruto de algum poema obscuro, escrito em prosa rasa, contando coisas que os superiores nunca perdoaram ao autor-recruta tê-las contado por solidariedade e pura indignação servidas da experiência de um homem de letras. O azar quis que tal impertinente, “baronete malnascido”, se bandeasse para o lado dos humilhados e ofendidos — e o seu Diário das iniquidades da farda conseguisse envergonhar, até hoje, quem dê ordens. Tanto é verdade que The Mint permanece vivendo numa espécie de limbo (embora tenha determinado muitas mudanças, na RAF e no Exército — quando o autor do libelo já estava morto e sepultado sob a cortina final de cimento que mal protege do fantasma vestido de árabe ou de soldado).
Seja como for, no segundo livro de Lawrence se toca num homem vivo e descido aos infernos onde pisa no fundo para se tornar humano — demasiadamente humano — ao lado da multidão de soldados batidos, cunhados e trabalhados, em fôrma, para se tornarem no número sob as suas túnicas. A individualidade que restava em todos eles, o traço único de cada ser humano ofendido e humilhado por seus semelhantes, só não ficaram esquecidos porque restou esta matriz de indignação poderosa que é The Mint.