O sassaricar de Júlia Capovilla

Manoela Sawitzki problematiza a impossibilidade do encontro e da felicidade no romance "Suíte dama da noite"
Manoela Sawitzki, autora de “Suíte Dama da Noite”
01/01/2010

A trajetória da protagonista do romance Suíte Dama da Noite parece, em uma primeira leitura, algo simplório e até simplista, mas é o oposto. Júlia Capovilla é uma mulher que, a exemplo de muitas da realidade, fez de tudo para ser feliz. O mundo exterior a ela sempre apresentou situações inesperadas e desconfortáveis, o que provocou não pouca tensão entre a personagem e o seu entorno. Júlia é complexa, até demais. Para realmente começar a conhecer essa mulher inventada por Manoela Sawitzki é necessário ler duas vezes, reler ainda mais uma terceira vez a longa narrativa, e somente depois dessas experiências sensoriais é que o livro começa a se revelar como é: uma obra-prima.

(Estou dentro de um táxi e o taxista diz que me conhece, você é o jornalista da cidade?, digo que sou jornalista, ele então comenta que tem um assunto que pode render matéria, pergunto o que é, o taxista afirma que 90% das pessoas que ele transporta enfrentam problemas no casamento, conto que sou casado, ele informa que as pessoas casadas não se suportam e não se separam porque a separação tem muito custo e cada um vive em uma cama e o casal já não transa mais e cada um tem o seu amante e tudo bem, digo que a vida pode ser uma experiência difícil, o taxista garante que o casamento é uma arte, peço para descer na próxima esquina, ele diz para eu não descansar nem me acomodar, nunca.)

O resumo do enredo de Suíte Dama da Noite cabe em uma única frase: Júlia Capovilla conheceu, quando menina, e se apaixonou por um homem mais velho do que ela, Leonardo, mas os seus caminhos não coincidiram, até que em um tempo futuro ela, na iminência de se casar com Klaus, fica sabendo que a irmã de Klaus, Ariana, também tem um noivo e, coincidência, esse noivo é o mesmo Leonardo por quem ela, Júlia, é apaixonada desde muito. As 222 páginas do romance vão tratar, em um plano mais evidente, desse problema. A trajetória de Júlia é um caminhar em meio a desencontros. Júlia, apesar de buscar, incessantemente, a felicidade, nunca vai saber o que é isso (felicidade), não pelo menos durante o tempo em que acontece a obra literária. Curioso é que, de um ponto de vista, Júlia parece apenas desejar vir a ser a esposa de Leonardo. Ela cresceu pensando que Leonardo a completaria, que com ele o seu mundo ficaria perfeitamente completo, como em um sonho clichê, mera ilusão romântica, tola até para o que se pode pensar sobre o tema se o observador for um humano adulto em 2010. Mas Manoela Sawitzki é uma competente, mais que isso, surpreendente artista e fez bem mais do que apenas narrar a trajetória fracassada e um tanto ingênua de Júlia Capovilla.

(Estou em um bar e um conhecido não pára de olhar para todas as mulheres que passam, eu gostaria de perguntar mas não perguntei se ele realmente sente atração por todas as mulheres do mundo, o conhecido vê uma mulher e diz que comeu aquela mulher e depois vê uma segunda mulher e diz que também comeu aquela segunda, novamente não pergunto mas gostaria de saber por que esse sujeito que é casado não abandona a esposa e procura outra companheira talvez mais satisfatória, o conhecido conta que tem duas amantes e gasta muita energia para esconder essa situação da esposa, tenho curiosidade em saber o que esse conhecido quer comunicar quando revela que tem duas amantes, o conhecido então diz que se morresse agora pelo menos sete centenas de mulheres iriam chorar em seu velório pois ele acredita que é e foi um grande amante e mais que isso foi o homem que amou as mulheres, e eu considero esse conhecido um imbecil mas não vou falar isso para ele por que estou sono e quero dormir.)

Mentira
Júlia Capovilla, a protagonista de Suíte Dama da Noite, é complexa e muito interessante porque o mundo interior dela nunca coincidiu com o seu mundo exterior. Ela se moveu (se move) devido a esse confronto. Júlia nasceu em uma pequena cidade do interior e sempre se considerou estrangeira em seu território de origem. Não por se achar especial, diferente ou melhor do que os outros. É que desde muito ela quis e ambicionou algo que não existia em sua rua, em seu bairro, em sua cidade. Nunca soube claramente o que procurava, mas sabia que deveria se movimentar. Em um ponto de partida e chegada de sua cidade, viu e se encantou por aquele sujeito que seria para todo o resto da vida proibido para ela. O desconforto existencial fez com que Júlia permanentemente mentisse para ela mesma e para os outros. A mentira deu e imprimiu o tom de sua vida. Mentindo ela pulou o mundo, atravessou pontes e transcendeu.

(Estou dentro de um avião e a meu lado um desconhecido diz para um interlocutor que ele [o desconhecido] não gosta mais da esposa mas não tem coragem de se separar, tenho vontade de perguntar o que o impede de se separar, o desconhecido continua a conversa e diz que filhos não seguram um casamento fracassado mas ele prefere deixar tudo como está para ver como é que fica, eu gostaria de saber o que os filhos têm a ver com a conversa e acima de tudo adoraria entender o que significa deixar tudo como está para ver como é que fica mas fico quieto, o desconhecido conta que tem uma amante e que se sente homem apenas com a amante, eu tenho o maior desejo do mundo em dizer para esse desconhecido que ter e manter amantes é a atitude mais cafona e nonsense do planeta e ainda perguntaria o que significa se sentir homem apenas com a amante mas permaneço calado, o desconhecido fala ao interlocutor que todo o homem para ser realmente homem tem de trair a esposa, e eu tenho um impulso de perguntar o que é esse bolero de ser realmente homem traindo a esposa mas sinto muita preguiça e uma certa ânsia.)

Júlia Capovilla, uma vez mulher (ou seja, não mais menina), vivendo em uma metrópole, vai se tornar amante de Leonardo. Eles vão se encontrar (ou melhor, se esconder) em um motel, na Suíte Dama da Noite. Ali, entre as quatro paredes de concreto, distantes e protegidos de quaisquer olhares, vão se entregar à luta corporal e estabelecer alguma interlocução. Júlia e Leonardo admitem, um para o outro, que cada um deles é infeliz demais em seu casamento e planejam um futuro juntos. Ela se separa de Klaus. Leonardo, por sua vez, morre. Júlia, então, mergulha ainda mais em seu mundo interior e não entende por que a realidade insiste em atropelar todos os seus projetos.

(Estou dentro de um barco e ao lado uma desconhecida diz para uma interlocutora que ela [a desconhecida] abomina a idéia de se casar por não acreditar na monogamia, tenho vontade de perguntar o que ela acha da poligamia e de relacionamentos abertos mas deixo a pergunta para o dia 32, a desconhecida fala à interlocutora que ela [a desconhecida] leu em algum lugar que a tendência agora é viver apenas várias e breves mas intensas relações e ela tem a certeza disso pois só gosta do homem nos três primeiros meses e depois sente nojo, tenho o impulso de perguntar se ela se relaciona com alguém ou apenas consome carne humana masculina mas olho para o lado e uma onda quase invade o barco, e a desconhecida segue a falar que hoje homem é artigo raro no mercado e que quando ela vê um solto ela abocanha, e quase pergunto se ela exibe homens como se fossem prêmios mas o calor me provoca um bocejo e quase desmaio.)

Manoela Sawitzki não entrega o jogo rapidamente, ela dribla, enfeitiça e encanta o leitor. Saracoteia. Sassarica. Faz isso, obviamente, quando escreve ficção e nesse Suíte Dama da Noite apresenta um mundo interno único e fascinante, o mundo de Júlia Capovilla, que no início do livro é uma personagem muito diferente de como será apresentada no último parágrafo, transformada: a anti-heroína pós-moderna consegue, enfim, se libertar de grades reais e imaginárias após algum caminhar que inclui barreiras, dores e provações. Suíte Dama da Noite é um romance que tende a perturbar o leitor e, se isso não acontecer, no mínimo viabiliza uma incrível aventura estética que é a experiência de ler essa prosa solta, incomum, que revela uma dicção de uma autora que já inscreve o seu nome na malha da literatura brasileira contemporânea.

Suíte Dama da Noite
Manoela Sawitzki
Record
222 págs.
Manoela Sawitzki
Nasceu em Santo Ângelo (RS), em 1978. Publicou o romance Nuvens de Magalhães (Mercado Aberto) e o texto da peça Calamidade (Funarte), cuja primeira montagem lhe rendeu o Prêmio Açorianos de Melhor Dramaturgia de 2006. Manoela colabora com revistas como Bravo! e Aplauso, além de assinar roteiros para audiovisuais.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho