O romance moderno no Brasil

Estudo de Luís Bueno é um dos mais completos levantamentos da produção romanesca brasileira da década de 30
Luís Bueno, autor de “Uma história do romance de 30”
01/06/2007

Uma história do romance de 30, de Luís Bueno, é um estudo abrangente, verdadeiramente totalizador, da ficção que sucedeu às experiências do primeiro modernismo, nascido com a Semana de Arte de São Paulo, em l922. O autor debate, inicialmente, a questão de se saber se as experiências criadoras do período devem ser entendidas como de continuidade da revolução literária que, sob a inspiração das vanguardas européias do primeiro pós-guerra, sacudiu as bases da cultura brasileira como um todo. Levanta a tese de João Luiz Lafetá, segundo a qual não houve solução de continuidade entre as duas fases, o que ocorreu foi simples alternância, dentro do mesmo projeto, entre uma preocupação preponderantemente estética e outra preponderantemente ideológica. Em seguida, faz referência à distinção entre utópico e pós-utópico estabelecida por Haroldo de Campos, que se valeu de uma expressão de Ernest Bloch, para definir a vanguarda como movimento fundado num “princípio-esperança”, voltado para o futuro, invariavelmente sucedido por um movimento estabelecido sobre um “princípio-realidade”, ancorado no presente. O fato de que, na década de 30, tenha ocorrido a tomada de consciência do subdesenvolvimento, levou Luís Bueno a considerar que o romance produzido nessa fase constituiu uma manifestação pós-utópica.

A geração que se firmava insistia na sua não vinculação com a precedente. Jorge Amado foi quem mais enfaticamente exprimiu esse ponto de vista. José Lins do Rego, em resposta a Sérgio Milliet, declarou que nem mesmo no trato com a língua a postura dos dois grupos era a mesma. Afirmou que o instrumento usado por Mário de Andrade em Macunaíma, por exemplo, não passava de um produto de fabricação, “mais um arranjo de filólogo erudito do que um instrumento de comunicação oral ou escrito”. Mas Luís Bueno argumenta que tanto Mário quanto José Lins desejavam a mesma coisa, a “língua literária despida dos atavios da forma”, alegando que o clima de grande aceitação pública para os que vieram depois foi conseqüência da obra do escritor paulista e do modernismo como um todo.

Esse espírito aguerrido, de combate, tornou-se a característica de atuação, principalmente dos escritores nordestinos, que vencido um primeiro momento de indecisão ideológica, abraçariam o comunismo, à semelhança do que ocorria em amplos setores da intelectualidade brasileira. Tratava-se de reflexo da ascensão política da classe média e do fenômeno do crescente adensamento dos setores obreiros nas cidades de maior porte. O romance social e proletário, sob a liderança de Jorge Amado, que além de realizar a sua obra de criação, sustentava combativa campanha teórica em artigos pela imprensa, tornou-se a linha mais dilacerante do período, na medida em que determinou a polarização entre direita e esquerda. Essa corrente estabeleceu o contraponto maior entre o modernismo utópico de 22, que refletia o idealismo do país novo em fase de construção, sob a influência da arrancada desenvolvimentista de São Paulo, apoiada na produção cafeeira e na indústria nascente, e o modernismo de 30, que procurava desnudar as carências sociais de um povo que não podia alimentar a ilusão de qualquer progresso, pois a seca e o banditismo do sertão constituíam a dura realidade a manter a consciência do subdesenvolvimento.

A expressão dessas áreas desfavorecidas, entretanto, não contemplou apenas o ponto de vista do indivíduo socialmente inferiorizado. A perspectiva do grande proprietário — o senhor de engenho ou o usineiro — foi utilizada para revelar a outra face estrutural de um conjunto em decadência, com destaque especial nos romances do Ciclo da Cana-de-açúcar, de José Lins do Rego, vasto painel inegavelmente influenciado pela obra sociológica de Gilberto Freyre. Neles, a contestação cede lugar a uma compreensão tolerante, saudosista, diante de um mundo que vai sendo superado pelos novos tempos. A memória é o instrumento de reconstituição do esplendor passado, que chega cercada de forte impregnação sentimental. A relação entre o trabalhador rural e o patrão é narrada de forma paradigmática em Menino de engenho, no qual Carlos de Melo retrata o avô, José Paulino, arremedo de senhor feudal, que impõe com rigor a disciplina, mas possui um coração sensível à compreensão e generosidade. Apesar da disparidade ideológica, o romance proletário e o romance do engenho são admitidos, mesmo pelos mais radicais, como pertencentes ao mesmo movimento. Eles formaram uma frente única que renovou o ambiente literário naquele momento por meio de um neo-realismo que teve como conseqüência estabelecer a diferença e o confronto entre a produção de sentido social e a de sentido psicológico, melhor dizendo, entre o que se fazia no norte e no sul.

O romance psicológico — que medrou a princípio de maneira enrustida, que nunca se tornou um espetáculo público empolgante, razão por que só excepcionalmente circulou em grandes tiragens, embora tivesse também a seu favor uma militância crítica ardorosa — representou a tendência adversária, não exclusiva das áreas economicamente mais desenvolvidas. Luís Bueno mostra que a sua origem e a do competidor praticamente coincidem em data, ao identificar Sob o olhar malicioso dos trópicos, de Barreto Filho, aparecido l929, como seu precursor. A manifestação criadora desse tipo não deixaria de ter implicações sociais, principalmente no seu amadurecimento futuro, mas a base ideológica que mais a caracterizou era proveniente do movimento católico, a princípio liderado por Jackson de Figueiredo e Tristão de Ataíde. A ênfase maior da preocupação religiosa iria se dar com a insurgência do fascismo de Plínio Salgado, pano de fundo do regime forte instituído por Getúlio Vargas em 1937. A radicalização comunista teria a contrapartida da radicalização integralista. O Estado Novo, entretanto, determinará o reposicionamento dos grupos opositores, com a polarização passando a ser entre a getulistas e não-getulistas, “sendo que esse segundo grupo contava com comunistas e não comunistas”.

Elemento estético
Finda a hegemonia do romance social, que veria a diminuição de presença por volta de 1933, maiores possibilidades são abertas para o romance psicológico. E em ambas as vertentes começam a aparecer livros que, “aceitando plenamente o modelo de sucesso nos anos anteriores, procuraram, no entanto, desvinculá-lo do seu sentido político ou ideológico”. O elemento estético é que emergirá em primeiro plano, estabelecendo nova perspectiva que possibilitará a ampliação de público para autores que não haviam se comprometido de forma exclusivista com a opção social ou a psicológica e, em conseqüência, até ali não haviam alcançado reconhecimento na medida que mereciam. Uns se exibem de maneira indiscutível, muito exteriorizada, com as duas faces intercambiadas. Outros, à primeira vista aparentam ser adeptos exclusivos da introspecção, porém a análise mais arguta vai demonstrar que a realidade é mais complexa do que se imagina.

Optando por uma leitura extensiva, não seletiva, o ensaio de Luís Bueno se apresenta como o mais completo levantamento da produção romanesca do período. Ele se referiu às datas de l930 e l939 como demarcatórias do lapso de tempo coberto por suas leituras, mas o certo é que, não aceitando como ponto pacífico a tendência geralmente aceita de apontar A bagaceira, de José Américo de Almeida, livro de 1928, como o marco inicial da tendência criativa em estudo, remontou a discussão até O estrangeiro, de Plínio Salgado, que é de l926. Atacando o grosso do material através da desmontagem do conteúdo das obras — mais precisamente do exame de tramas narrativas — para indicar o vinculo ideológico de cada uma, as leituras realizadas adquirem maior consistência analítica à medida que surgem os textos que impõem a consideração também da camada estilística, e vai terminar com o estudo de quatro autores fundamentais — Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Dyonélio Machado e Graciliano Ramos —, cujas criações são examinadas com um aparato crítico de maior complexidade. É o momento em que a divisão entre romance social e romance psicológico perde sentido, pois o que acaba havendo é a integração das duas tendências. Na interpretação do legado desses escritores, Luís Bueno trabalha com uma característica que aponta como indissociável do romance de 30 — a maneira pela qual é tratada a relação com o outro, mais especificamente o proletário, a mulher, o louco, o homossexual — que é rastreada ao longo de todo o ensaio. Nos quatro romancistas postos em destaque verifica-se o que pode ser considerado uma exacerbação desse elemento de natureza estrutural. Tudo aquilo que vinha sendo projetado no trabalho dos criadores menores terminou sintetizado e ganhou expressividade verdadeira nas mãos dos realizadores de maior porte da ficção do segundo modernismo.

Aspecto relevante do monumental painel levantado sobre o romance de 30 vem da disposição do historiador de não se limitar ao estudo isolado do fenômeno nordestino, deixando na sombra, como tem acontecido, a corrente oposta dos que trabalhavam no plano de uma arte sem compromisso com as formas realistas ou naturalistas de retratar o mundo. O ensaio, com muita procedência, procura encontrar, no período, antecedentes que guardam indiscutível afinidade com a obra de Clarice Lispector, autora considerada por uma crítica desatenta, como um fenômeno surgido no espaço, sem família brasileira reconhecível.

Outra ascendência que Uma história do romance de 30 procura reivindicar para o período é a de Guimarães Rosa, cuja impostação de contador de casos teria ligações com a realização, mesmo desproporcionalmente menor do que a de José Lins do Rego de Menino de engenho. Sem deixar de reconhecer que possa haver essa irmandade, sou levado a admitir que o criador mineiro extrapole muito os limites de tal parentesco, pois a sua obra realizada é a síntese do modernismo inteiro, desde 22, com a absorção de tudo o que foi feito por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, indo buscar nutrimento até mais atrás, seja nas obras de Afonso Arinos, seja nas de João Simões Lopes Neto.

Uma história do romance de 30
Luís Bueno
Edusp/Unicamp
707 págs.
Luís Bueno
Doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp. Atualmente, é professor da Universidade Federal do Paraná.
Rui Mourão
Rascunho