O romance do escritor inglês

"A burguesia inglesa", com seus trejeitos e frivolidades, está no centro de A mulher do tenente francês, de John Fowles
John Fowles, autor de “A mulher do tenente francês”
01/09/2008

A mulher do tenente francês, romance do britânico John Fowles (1926-2005), é daqueles livros que, mesmo na sociedade da informação, permanece desconhecido para grande parte do público leitor – ou, por outra, para o público leitor das listas dos mais vendidos. Embora o negócio do livro seja um sucesso retumbante (vide o último grande evento do livro no Brasil, a Bienal Internacional do Livro de São Paulo, entre 14 e 24 de agosto), é correto afirmar que nem todos os escritores e seus respectivos livros desfrutam do mesmo espaço midiático na era do espetáculo. Nesse ponto, enquanto o vencedor afirma estar só, a despeito das entrevistas, das resenhas e dos comentários elogiosos nos suplementos culturais do Brasil e do mundo, aqueles que se dedicam à arte literária tal como esta se estabeleceu ao longo da história da cultura – isto é, sem a pressão dos grandes conglomerados e do deus mercado – estão fadados ao limbo dedicado aos perdedores. A lógica, nesse caso, não faz qualquer justiça: a boa literatura, afinal, não depende do grande número de cópias vendidas, ainda que isso seja sinal do interesse do leitor.

Ocorre que não só o interesse do leitor que constitui o mercado deve ser levado em total consideração. Ou melhor, talvez não apenas o interesse da moda deva ser seguido cegamente pelos editores. Fosse assim, um romance como o de John Fowles jamais teria sido publicado, uma vez que o autor insiste em produzir uma peça de erudição e estilo, prestando homenagem aos clássicos da literatura do século 19, mesmo que Fowles fosse um homem do tormentoso século 20, a época em que viu o desejo triunfalista da modernidade ruir nos dois grandes conflitos mundiais gerando a sensação de mal-estar que, anos depois, seria friamente analisada pelo pensador polonês Zygmunt Bauman em seus livros. Fowles, contudo, não quer saber desse mal-estar, especificamente. Interessa ao escritor britânico a forma e os costumes dos ingleses no século da consolidação das revoluções burguesas. Essa classe, a burguesia, merece bastante atenção do romancista. É com base nesse segmento, diga-se, que alguns dos conflitos dessa história se desenvolvem.

Em A mulher do tenente francês, lê-se a história de Sarah Woodruff, mulher que pode ser considerada a mais completa tradução de desonra, segundo o código de costumes daquela sociedade. O motivo é simples. Conforme relata (sem muitos detalhes) Ernestina Freeman a seu noivo Charles Smithson, logo nas primeiras páginas do livro, Sarah foi ultrajada por um tenente francês, de quem ficaria eternamente à espera. De um lado, para além de uma ligeira crônica de costumes e valores do século 19, o romance de Fowles busca, baseado no cenário de época, ilustrar de que forma os conflitos de classe e o desejo de status envolviam os interesses e as mais distintas personalidades daquele tempo. Por outro lado, mais do que a recriação de um cenário, o texto fowlesiano, como sói ao grifo acadêmico, extrapola o romance de cunho vitoriano ao apresentar não somente um, mas alguns finais possíveis, tendo em vista a participação do narrador ao comentar alguns momentos da história. Nesse sentido, John Fowles, a um só tempo, não soa anacrônico e volta a pertencer ao século do fim das grandes mudanças estéticas, como já afirmou um historiador.

Artífices da narrativa
A despeito desse item, o que chama a atenção no texto de John Fowles é a estratégia que o autor faz uso para trazer profundidade às 491 páginas do romance. As epígrafes, nesse caso, mais do que a homenagem, funcionam como artífices da narrativa, uma vez que dialogam pontualmente com cada capítulo. O leitor mais atento, de fato, há de notar essa relação, como quando o autor menciona O capital, de Karl Marx, para traçar um perfil dos serviçais naquela sociedade de classes. Esse esforço de erudição fica visível, também, no momento em que Fowles cita Darwin – e, nesse caso, não só na epígrafe, mas também ao longo de alguns capítulos, ora para comentar, mesmo indiretamente, a personalidade de Charles Smithson, ora para enfatizar o embate entre paixão e razão, religião e ciência, ocorrido no século 19. Pelo que se lê no romance, o ponto de vista científico parece ter saído parcialmente vitorioso, uma vez que as doutrinas da racionalidade estavam absolutamente consolidadas em determinada classe social.

Sobre essa questão, aliás, o escritor não foge à tradição do romance britânico ao fazer uma elaborada descrição dos anseios daquele grupo, os burgueses, em franca expansão. Ao realizar tal abordagem, Fowles aponta de que forma a elite da época demonstrava certa resistência ao reconhecer aquela classe como igual; dessa maneira, sobram ironias e outras maledicências direcionadas para a burguesia. Do ponto de vista histórico, é curioso observar como esse tipo de reação foi, aos poucos, assimilada por esse mesmo grupo que outrora era espezinhado. Observa-se, assim, a formação do novo-riquismo como classe intermediária, em busca de um status mais possível de ser alcançado. Mesmo o gosto estético foi sendo articulado a fazer parte dessa distinção, tanto quanto os costumes. Assim, não era de bom tom aceitar a srta. Sarah Woodruff como membro distinto da sociedade porque esta não estava à altura da idéia de dama naquele período, segundo a moral daquele grupo no século 19. É evidente que hoje, num tempo em que o sexo casual virou mote para as séries de TV, essa discussão soa ultrapassada. Ainda assim, a observação de Fowles é pertinente porque descortina o estado das coisas naquele período.

Observa-se, ainda, agora no tocante ao estilo usado por Fowles, uma espécie de fusão entre o moderno e o contemporâneo. O moderno está no uso do grande relato para contar uma estória, ainda que esta não seja para mostrar a verdade, como desejou o discurso científico da modernidade. Já o contemporâneo aparece na intervenção consciente do narrador, provocando o leitor sobre os desfechos possíveis dessa história. Nesse caso, o relato, antes de apresentar uma versão, discute possibilidades ao questionar um único final possível. O que se percebe nessa dicotomia é a busca pela opção mais arriscada, sob pena dessa imaginação literária parecer mero exercício de estilo. Como literatura, este romance de John Fowles, muito além do best-seller, direciona-se ao leitor ansioso por uma narrativa localizada entre o passado e o futuro.

A mulher do tenente francês
John Fowles
Trad.: Adalgisa Campos da Silva
Alfaguara
491 págs.
John Fowles
Nasceu em Leighton-on-Sea, Essex, em 1926, onde viveu até o início da Segunda Guerra Mundial. Estudou Fine Arts em Oxford e, depois de formado, ministrou aulas de inglês no Reino Unido, na França e na Grécia. A partir da década de 1960, o autor se dedicou exclusivamente à literatura. Além de A mulher do tenente francês, que foi sua obra mais conhecida (tendo sido adaptada para o teatro e para o cinema e figurou na lista dos 100 romances mais importantes entre 1923-2005 pela revista Time), escreveu O colecionador e The magus.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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