O romance, depois

Histórias de amor estão no centro de “Garimpo”, nova coletânea de contos de Beatriz Bracher
Ilustração: Beatriz Bracher por Tiago Silva
03/02/2014

Beatriz Bracher.
É engraçado notar como basta dizer esse nome — numa frase como “ah, vou resenhar o novo da Beatriz Bracher para o Rascunho” — para, em certo rol de amigos, qualquer outro assunto ser abortado a fim de que todos tenham sua vez de dizer o quanto gostaram de Antonio, o quanto esse romance da escritora os arrebatou, esse tipo de coisa. Ainda que cada um tenha gostos muito específicos e uns leiam mais que outros, quase todos leram a obra e concordam que foi um dos melhores livros que leram em muito tempo — mesmo que não cheguem a um acordo a respeito de qual dos três narradores é o melhor ou de qual dos três personagens ausentes e misteriosos é o mais interessante.

Uma amiga sempre dá umas três palminhas antes de dizer “Ah, eu quero uma vida com as mãos”.

O comentário remete diretamente ao sumiço de Antonio, jovem desenvolto e com um futuro promissor que abandona tudo e passa a viver no campo, cuidando de animais e da terra — meio Raduan Nassar da parte dele. Parece louco: cansou da linguagem, da vida só em pensamentos e passou a vivê-la com as mãos, nada além do que elas podiam pegar. Há uma baita poesia nisso tudo, filtrada pelo olhar de Isabel — sua mãe e minha narradora favorita — e pela habilidade da escritora em seu processo criativo.

Não seria possível esperar algo semelhante de Garimpo, livro mais recente de Beatriz Bracher. Este é uma coletânea de contos escritos e publicados em veículos diversos (entre eles, as revistas Piauí, Cult, Coyote, Serrote, Bravo! e Granta) entre 2009 e 2012. Mais diferente de Antonio, só se fosse livro de poesia. Decidi que leria os textos sem buscar algo que os unisse, tal como se não tivesse comigo um livro, mas uma coleção de recortes dessas revistas e jornais.

Ao ler Durante a imensidão, do amanhecer até depois do cair do sol, senti-me como se lesse um capítulo do meio de um livro sagrado — um Alcorão, por exemplo. No condutor de caravanas que deixa seus bens para seus filhos antes de partir, vi toques shakespearianos — Rei Lear, logo penso. Não sou muito afeito à concisão como principal meta de um contista — em outras palavras, não sou um bom morador de Curitiba —, mas entendo o apelo de ler pouco e interpretar muito quando leio contos como esse de Bracher. Saber que trechos “são transcrições literais de textos de papiros egípcios” dá novas dimensões ao texto: onde termina o papel pólen soft 80g/m², onde começa o papiro prestes a esfarelar?

O desconhecimento dos limites da escrita de Bracher se estende a Um sapo e um violino, uma história de amor escrita em parceria com Noemi Jaffe — cada autora escrevia uma parte, enviava à outra e, a partir da resposta, dava seqüência ao conto. Não dá para saber quem é responsável pela criação do Guilherme e quem se encarregou de dar vida à Manuela — eu gostaria de que o primeiro fosse de Bracher (gosto muito do trecho em que o personagem ganha um nome e este reverbera pelo parágrafo), mas acho que a última é mais o estilo dessa escritora. Acompanhamos os dois desde a infância até os encontros no transporte coletivo e, a partir daí, o encontro das vidas dos dois. Emocionante.

(O que me lembra de uma história de amor, uma graphic novel, que seria co-escrita por mim e por um amigo. A única coisa que decidimos era que os protagonistas teriam os nomes retirados de um livro que adorávamos: ele seria homônimo do título; ela, da autora. Antonio e Beatriz. E isso foi tudo o que deu para fazer em matéria de história de amor: o projeto não foi adiante.)

Amor esquisito
Mas não só de histórias de vida inteira são feitos os amores em Garimpo. O terceiro conto da coletânea, Michel e Flora, é resultado da encomenda “de uma história sobre jovens que se passasse daqui a cinquenta anos”. É uma história de amor à sua maneira: os dois protagonistas conversam virtualmente, em dialeto próprio (parecido com o atual, misturado ao inglês e à sonoridade deste, mas potencializado ao ponto de, pelo menos uma vez, um ter de perguntar ao outro o que significava determinada abreviação). Não se fala em internet ou em computadores, um acerto — fácil imaginar como será a comunicação no futuro, difícil é conceber os meios. O amor brotando, o amor daqui a cinquenta anos; um amor esquisito, precoce.

Todavia, o amor acaba, tal como o título do livro de crônicas de Paulo Mendes Campos. Em Para um filme de amor, acompanhamos uma personagem de contornos não muito distintos, uma “ela” que se constrói no decorrer do conto — uma personagem nuvem, por assim dizer. Temos por certo apenas que:

Ela sai de casa, vai andar, muitas coisas acontecem, ainda não sei quais. Lá pelas quatro da manhã, vagando pelas ruas, não bêbada, mas cansada e triste, não desesperada nem chorando, mas querendo morrer, ela vê que o sebo do seu amigo está com a luz acesa.

O trecho é o único que se repete e nos dá alguns parâmetros de expectativa. É de se duvidar do “não sei quais”. O narrador pode não sabê-los, mas há segurança na escrita de Bracher, uma segurança que não nos deixa temer o “não ir a lugar algum”.

A inspiração em Cuide de você (obra da artista plástica Sophie Calle, criada a partir de uma mensagem real, em que seu namorado terminava o relacionamento com ela), permitiu que a escritora enveredasse novamente pelo tema do amor findo. Mas, ao contrário de em Para um filme de amor, a personagem nuvem de Um pardalito sequer pode se reconhecer como humana no espelho. O forte trauma provoca transformações abruptas: “Vejo uma cabeça de um lobo castanho e bonito no espelho” e, pouco depois, “meu rosto é de porco”. O desespero de não saber o que se é quando há pouco tempo pensou ser um com o outro.

(O que não existe, penúltimo conto do livro, foi guardado para um dia chuvoso ou de um mormaço enervante, em que algumas páginas de literatura, escritas por uma autora em quem confio, certamente me animarão.)

Dois contos de Garimpo fazem parte de uma tentativa de romance que a autora escreve desde 2007: Suli e O pensamento de Rubens. Este, mais curtinho, interessou-me mais pela breve indicação de uma ascendência libanesa e pela seguinte frase, referente a jóias antigas: “É difícil adivinhar o sentimento das mãos de seu primeiro homem e criador, modificado pelo formato e líquidos dos muitos dedos, pulsos e colos que as usaram, além dos flocos de fumaça e poeira entranhados entre os engates e frestas alargados pelo tempo.” Mãos, elas sempre lembrarão Antonio.

As oito páginas de Suli lembraram-me da habilidade da autora com histórias de família. Antonio, ainda que seja um romance fininho, se estende por diversas gerações, na medida em que o leitor tem a oportunidade de conhecer, ainda que brevemente, alguns dos ascendentes do personagem título — e, por si, completar a história, imaginando-a. É o mesmo que se pede de Suli. Quem leu e gostou de O relato de um certo oriente, de Milton Hatoum, perceberá que as poucas páginas de Bracher, fermentando na imaginação, meio que se equivalem àquele romance.

Por fim, chegamos ao conto que dá título à obra. Garimpo é o diário de Adriana Mendes, que morreu num acidente de avião enquanto voltava para São Paulo, depois de visitar o irmão no garimpo em que este trabalhava.

Além de registro da viagem e do encontro com um irmão querido que há anos não via, essas anotações eram parte da pesquisa para seu futuro romance. As características da escrita original foram mantidas em estado bruto, inclusive com os erros, pois são parte da natureza de anotações que Adriana escreveu sem a intenção de publicar.

Guto (Augusto) e Adriana não poderiam ser mais diferentes: onde moram, o que fazem, como agem. Mas há algo de precioso na descrição dela — “sem intenção de publicar”, o diário era só para ela — sobre o trabalho do irmão, algo que vai além da comunhão fraterna. Empatia. Eu chamaria isso de felicidade por se surpreender com o outro, creio.

Sobre o Guto. É impressionante a quantidade de frentes de trabalho q. ele tem. Visualmente impressionante. O jeito de ir escavando a montanha, onde colocar a terra retirada, deixar espaço para o caminhão passar. Os tanques cavados no solo. E tudo tão grande e vivo.

Os alojamentos muito bem feitos e bem cuidados. E a madeira também viva. Recém árvore. O banheiro é limpo. Um lugar no meio do mato só usado por homens e o banheiro é limpo. A comida é gostosa e tem café sem açúcar.

Para o leitor de Antonio, vale imaginar como seria se esse tipo de comunhão e entendimento fosse alcançado por Isabel e Antonio.

Garimpo seria um livro sobre o amor? Ou a experimentação com a linguagem é sua principal característica — personagens nuvens, abreviações tal como daqui a 50 anos, anotações sem revisão de um diário, mistura de textos da autora com o de outros? Será que o cada conto quer é ser muito mais do que o circunscrito em suas poucas páginas — alguns fazem parte de romances em andamento, outro era parte da pesquisa de um personagem para uma narrativa, certa “ela” quer estrelar um filme de amor? Ou tudo não passa de uma compilação de textos esparsos da autora — a reunião nos fazendo ver relações que não há propriamente?

Não sei se importa. Só sei que não poderia concordar mais com o final da orelha do livro, assinada por Ricardo Lísias — algo esquisito para mim, avesso que sou a orelhas.

“Ao fechar este livro, temos apenas uma tranqüilidade: depois da luta com a linguagem, a literatura aparece. O resultado é perturbador, raro e valioso. Cheio de brilho, portanto.”

Tal como Adriana, narradora de Garimpo, “continuo sem entender o que é tão poderoso, o que foi tão poderoso em ver esse processo”. Ela fala de Guto fazendo o ouro. Eu falo de Beatriz Bracher fazendo o mesmo.

Garimpo

Beatriz Bracher
Editora 34
136 págs.
Beatriz Bracher
Nasceu em 1961, em São Paulo (SP). É autora dos romances Azul e dura (2002), Não falei (2004) e Antonio (2007, finalista dos prêmios Jabuti, Portugal Telecom e Prêmio São Paulo de Literatura), e do livro de contos Meu amor (2009, Prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional). Garimpo venceu o Prêmio APCA de Literatura na categoria Contos/Crônicas.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

Rascunho