Augusto dos Anjos (1884-1914), em sua estética do escárnio, cantou a demência e a nevrose, o bolo fecal e os cristais de vômito, despoetizando a poesia para mostrar a verdade da Dor. O poeta do Engenho do Pau d’Arco rompeu com a falsa lírica, retórica e sentimental, dos autores de seu tempo, fazendo do humor negro, da caricatura e do sarcasmo as pedras fundamentais da construção verbal.
Eu (1912), único livro do poeta, publicado no Rio de Janeiro graças à ajuda de seu irmão, Odilon, é um conjunto de 58 peças em que predominam formas tradicionais, como o soneto e o verso decassílabo. O ritmo, porém, não obedece sempre a esquemas regulares, binários ou ternários; o autor adotou um livre fluxo de sílabas fortes e fracas, similar à prosa.
As rimas são inusitadas nessa alucinação de timbres: o poeta combinou termos do português e do latim (teto / senectus), verbos com nomes próprios (amá-lo / Sardanapalo), palavras quase homófonas (sin-gre-me / íngreme), verbos com letras do alfabeto (apodrece / s). Outras particularidades da bizarra arquitetura fônica do Eu são o uso freqüente do grau superlativo nos adjetivos (singularíssima, nervosíssimo), de advérbios (proficuamente, panteisticamente), palavras com acentuação tônica (fêmea, abstêmia) e termos polissilábicos.
A insurgência sonora do Eu, que recorda os ritmos dissonantes de Cesár Vallejo em Trilce, ainda hoje causa estranhamento, pela novidade da informação estética. A força prosódica dessa lira delirante está centrada sobretudo em seu excêntrico vocabulário: o poeta paraibano incorporou termos das ciências naturais (pólipo, vibrião, monera), da filosofia (mônada, não-ser, ataraxia), do sânscrito (nirvana, samsara, Abhidarma), do grego e do latim (nous, pneuma, atrium), além de insólitos neologismos. O poeta dissecou as partículas léxicas e recombinou-as, formando termos como hoffmânicas, heliogabálica, arimânico, rembrandtescos, que recordam as invenções semânticas de Cruz e Sousa, como nirvânica, beethovínica, torcicolosamente.
O constructo sonoro de Augusto dos Anjos surpreende ainda pelo uso particular das figuras de linguagem tradicionais, como assonâncias e aliterações (“Assombrado com a minha sombra magra”, em Cismas do Destino) e anáforas: “E quando vi que aquilo vinha vindo/ Eu fui caindo como um sol caindo/ De declínio em declínio; e de declínio/ Em declínio, com a gula de uma fera,/ Quis ver o que era, e quando vi o que era/ Vi que era pó, vi que era esterquilínio” (do Poema Negro). A arte verbal do Poeta Sombrio não é melódica, cantabile, coral serafínico ou ária de harpas nivosas, mas um sherzo macabro, urdido em notas inauditas. Um bom exemplo dessa música estranha, que vai além das pautas parnaso-simbolistas e antecipa a poesia moderna é o conhecido soneto Psicologia de um Vencido:
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Esse ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas com os cabelos
Na frialdade inorgânica da terra!
O Eu não se confunde com a obra dos demais poetas brasileiros de seu tempo; o único paralelo possível é com o Livro de Cesário Verde. O “Doutor Tristeza”, no entanto, foi mais ousado em sua ruptura com a aura mística do beletrismo, fazendo uso de cifras como o preço de mercadorias (“custa 1$200 ao lojista”), dados quantitativos (“Nas suas 33 vértebras”), datas (“6ª feira, 3 de maio”) e até exageros metafóricos (“Tenho 300 quilos no epigastro”). A incorporação do prosaico, da linguagem comercial, antecipa Oswald de Andrade (“1 300º à sombra dos telheiros retos”, no poema Metalúrgica, em Pau-Brasil) desmascarando a falsidade de uma poesia supostamente “elevada” ou “profunda” do tipo “sorriso da sociedade”, praticada na época pelos vates de monóculo e fardão.
A harpa dissonante do poeta, porém, não tem um equivalente fanopaico. Em seus poemas, a imagética não alcança a paleta cromática de um Cruz e Sousa, de um Pedro Kilkerry, por exemplo. Augusto dos Anjos não foi hábil pintor de aquarelas semânticas, mas um artista do escarro, que fez do muco verbal a matéria-prima básica para a composição de virulentas metáforas, que têm o sabor da verde gosma da tísis (“Dissolva-se, portanto, minha vida/ Igualmente a uma célula caída/ Na aberração de um óvulo infecundo”, em Budismo Moderno; “Comi meus olhos crus no cemitério/ Numa antropofagia do faminto”, em Solilóquio de um Visionário).
Deve-se notar, no “artesanato furioso” de Augusto dos Anjos, a economia de adjetivos, a síntese e a precisão construtiva de imagens (a tesoura, o palito de fósforo), em oposição às densas brumas simbólicas e aos frisos esmaltados do Parnaso. O seu olhar é o do homem moderno, que vê a pedra na pedra e o cão no cão, antecipando o João Cabral da “faca só lâmina”. Um poema notável desse antipintor sem pincel nem cavalete é Versos Íntimos, talvez sua peça mais conhecida:
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Esse ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas com os cabelos
Na frialdade inorgânica da terra!
O sentimento trágico — O poeta encontrou a sua mais perfeita forma de expressão na sátira cruel, no humor negro, cheio de angústia e desespero. Seu pessimismo, que transborda em imagens febris, não se resume, porém, a um état d’âme de autor doentio, mas é também indício da anima mundi de seu tempo, ante-sala da I Guerra Mundial. A visão do ser humano como ente degradado, movido por instintos elementares e destinado a ser alimento para os vermes prenuncia o expressionismo alemão. Anatol Rosenfeld já traçou um paralelo entre Augusto dos Anjos e poetas como Georg Trakl e Gottfried Benn, mas a originalidade do brasileiro radica em seu curioso conceptismo, que mescla o sentimento trágico ao discurso científico e filosófico da época.
O poeta do Pau d’Arco foi leitor assíduo das teorias evolucionistas de Darwin, do monismo biológico de Haeckel e das doutrinas de Spencer. O saber da ciência, porém, voltado à origem, mutações e extinção das formas materiais, não resolveu a questão da Dor. E o poeta, cujo olhar estava voltado para o Sofrimento em todas suas faces prismáticas — nascimento, velhice, doença e morte — foi encontrar consolação no budismo e na filosofia de Schopenhauer. O livro de Augusto dos Anjos é um diálogo com essas duas visões de mundo, culminando na certeza da aniquilação das formas e da consciência no Vazio original.
Essa visão sombria é nítida, em especial, no poema de abertura livro, Monólogo de uma Sombra (“Sou uma sombra! Venho de outras eras,/ Do cosmopolitismo das moneras…/ Pólipo de recônditas reentrâncias,/ Larva do caos telúrico, procedo/ Da escuridão do cósmico segredo,/ Da substância de todas as substâncias!”). Essa peça, dividida em 31 sextilhas, que totalizam 186 versos, é talvez a obra-prima de Augusto dos Anjos, um quadro pessoal do abandono, da miséria humana e da loucura, como a Carniça de Baudelaire, o Gato Preto de Poe e os Faróis de Cruz e Sousa.
Na poesia de Augusto dos Anjos, como notou seu amigo Órris Soares, um tema está ausente: o amor. O poeta enfoca o erotismo, desvinculado da paixão ou da ternura, marcado com o estigma do meretrício, do pecado original, talvez pela formação religiosa e pelos ressentimentos afetivos do autor. A prática da cópula, para ele, quase se confunde com o ofício da prostituta, que traz a doença, a miséria, a danação. Assim, por exemplo, no admirável soneto Depois da Orgia:
O prazer que na orgia a hetaíra goza
Produz no meu sensorium de bacante
O efeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrofulosa!
Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
O sistema nervoso de um gigante
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.
Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Que ao comércio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,
Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza,
Ficar latindo minha dor medonha!
Augusto dos Anjos via o mundo não como um fotógrafo, mas como um cirurgião, hábil em usar o bisturi. O seu pessimismo — ou fatalismo biológico — não excluía, porém, a compaixão pelos rotos e miseráveis, como é possível notar em várias passagens de seu livro. A ética meio cristã, meio budista do poeta não era insensível à Dor; pelo contrário, ele compartilhava o Sofrimento Universal, que só terminaria com o final da existência material, com a absorção no Nirvana. Esta foi também a fé de Cruz e Sousa, seu irmão espiritual, e de quase toda a geração simbolista.
Fortuna crítica — A publicação do Eu no Rio de Janeiro, em 1912, não chamou a atenção dos críticos e literatos, acostumados a uma poesia superficial e cosmética. Nessa época, no ambiente cultural da metrópole, imperavam Olavo Bilac e Coelho Neto, aplaudidos nos saraus, confeitarias e suplementos literários. Defendia-se com ardor, nas rodas literárias, nos cafés e cinemas uma práxis poética que já havia embolorado em seu próprio berço histórico: na França, a estética parnasiana há muito fora suplantada pelo simbolismo, e, nesse momento, Apollinaire, Max Jacob, Cocteau e seus amigos preparavam-se para assinar o atestado de óbito do verso clássico francês. No Brasil, porém, o demônio do anacronismo ditava a moda, e impunha o “silêncio obsequioso”, o exílio artístico ou a difamação pública aos jovens poetas que pesquisavam novas formas estéticas.
Osório Duque Estrada escreveu, no Correio da Manhã, uma resenha sobre o Eu em que chamou o autor paraibano de “um grande talento, transviado pelo cientificismo”. Já Medeiros e Albuquerque chamou o poeta de “um ourives enlouquecido”, que teria “tomado ouro maciço e feito com ele um bloco estranho, áspero, anfratuoso, sem representar coisa alguma, tendo apenas, aqui e ali, recipientes para dejetos imundos…”. O próprio Bilac, segundo conta Francisco de Assis Barbosa, depois de ouvir Versos a um Coveiro, teria dito que o poeta “fez bem em morrer. Não se perdeu grande coisa”.
Os modernistas de 1922 também ignoraram o autor de Eu, talvez porque o considerassem um “último romântico”. Manuel Bandeira chamou-o de “poeta de soldado de polícia”, e Antonio Candido, criticou o “mau gosto” do autor de Vandalismo. Curiosamente, Augusto dos Anjos, antes de ser aceito pela crítica, tornou-se um fenômeno editorial, conquistando o gosto do público — fato insólito no Brasil — ocupando um lugar na preferência dos leitores só comparável ao de Casimiro de Abreu. Pela primeira vez, o público leitor demonstrou maior abertura para a informação nova do que a crítica especializada… Por fim, veio o reconhecimento, e um estudioso da qualidade de Otto Maria Carpeaux considerou Augusto dos Anjos o maior poeta que o Brasil já produzira até então. Hoje, o seu lugar na história de nossa poesia está acima de qualquer discussão, e é possível rastrear sua influência na obra dos novos “poetas malditos”, como Sebastião Nunes e Glauco Mattoso.
Augusto dos Anjos, o poeta esquálido, tímido e doentio, viveu em meio à penúria. Em três anos, morou em dez casas diferentes, quase sempre em quartos de pensão. Segundo Francisco de Assis Barbosa, “era total, absoluta, sua incapacidade para ganhar dinheiro”. Sobrevivendo com parcos vencimentos de professor (tentara, sem êxito, ser agente de uma companhia de seguros), a duras custas pôde manter sua esposa e filhos. Por fim, morreu, aos 29 anos, vítima da pneumonia. Após sua morte, publicaram-se várias edições do Eu com acréscimos de textos inéditos, e hoje sua obra completa soma 210 poemas. Que contam muito mais, para a evolução das formas em nossa poesia, que a extensa — e dispensável — obra do outrora “príncipe dos poetas”, que é hoje uma celebridade morta. Mais vivo, mais novo, Augusto é um poeta para poetas: o Eu que fala para nós e para vocês.