O ritmo das imagens

Nos poemas de "Nuvens", de Hilda Machado, coisas e ideias convivem no mesmo ambiente
Hilda Machado, autora de “Nuvens”
27/05/2019

As Nuvens são deusas. Na verdade, são as únicas que existem e praticam a metamorfose, isto é, podem tomar a aparência de muitas coisas — centauro, leopardo, lobo, touro. Pelo menos é o que defende Sócrates na comédia As Nuvens, de Aristófanes, no século V a.C. Nela, o filósofo conta a Estrepsíades que elas, as Nuvens, se transformam em tudo que desejam. Para expor a ganância de ladrões dos bens públicos, por exemplo, podem tomar a forma de lobos (quase podemos imaginá-las hoje em terras brasileiras fazendo o desenho de mãos simulando arminhas no céu).

Seja como for, a associação entre desejo e observação das imagens acompanha a história da poesia. E o Sócrates de As Nuvens faz parte dessa linhagem que se coloca do lado da inconstância do desejo. As imagens formadas pelas deusas Nuvens (o seu próprio ser) não podem ser fixadas, são passageiras, como os diversos fenômenos astronômicos que as acompanham, os raios, os arco-íris, as chuvas.

Contra a ideia fixa sobre um mesmo objeto de desejo, eterno e imutável, o transformismo das imagens das nuvens. Parece ser essa a paixão de Charles Baudelaire, ainda no século 19, com um pequeno poema em prosa, O estrangeiro. Na tradução de Aurélio Buarque, vemos o estrangeiro ser inquirido. Amas mais a tua família, perguntam ao homem enigmático, e ele responde que não. E nega também que sejam os amigos, a pátria, a beleza ou o ouro o seu objeto amoroso. “— Então! a que é que tu amas, excêntrico estrangeiro?” E ele responde, finalmente: “— Amo as nuvens… as nuvens que passam… longe… lá muito longe… as maravilhosas nuvens!”

Paixão semelhante acomete Hilda Machado, e é o que podemos constatar agora na edição póstuma de Nuvens (com a colaboração de Ricardo Domeneck). Como num pequeno poema intitulado 410, e que remete a uma linha de ônibus que liga a zona norte à zona sul da cidade do Rio de Janeiro: “rua Itapiru/ bairro do Catumbi/ nuvens em ponto de neve no azul consistente do céu”. A linha de ônibus aparece, certamente, para localizar o leitor na cidade, e para fazer o contraponto entre céu e chão que garantem alguma vertigem a tantos poemas de Nuvens. A remissão ao ônibus, no entanto, cumpre também outra função: religa o transformismo das nuvens à própria atividade metafórica da poesia.

Nuvens que caminham
Em outras palavras, a metáfora, na poesia de Hilda Machado, não serve para atribuir um significado a alguma coisa, mas para desestabilizar o seu sentido. Ela carrega o sentido em sua transitoriedade (metáfora em grego significa transporte), sem chance de estacionamento. Não por acaso o poema esconde um jogo de cores e texturas no seu vocabulário: Itapiru, em tupi, significa um acúmulo de pedras; Catumbi, também em tupi, significa mato verde; o terceiro verso faz a transição para o branco e para o azul, em uma espécie de evaporação da matéria que começara em estado sólido no primeiro.

As nuvens de Hilda Machado, no entanto, caminham entre nós. Sempre que uma coisa, uma pessoa ou um acontecimento funde-se com o desejo em sua poesia, toma de empréstimo o transformismo das nuvens. Como no poema Um homem no chão da minha sala:

Um homem no chão da minha sala
alonga sua raiz
galo que estufa o pescoço
cana-de-açúcar e bronze
poças, chuva, telha-vã
que escorre na velha taça empoeirada

O homem no chão da minha sala
cidades de ouro
castelos de mel
velhas metáforas
sinos línguas gelatina
O céu no chão da minha sala

Este homem é como nuvem. E como o desejo passa rápido, e carrega as imagens, o seu objeto é sempre alguma coisa de já perdida, ou fadada ao desaparecimento. Por isso os poemas de Hilda Machado tendem à brusca interrupção nos seus desfechos, como este sobre o homem no chão da sala, em que podemos ler uma última estrofe abrupta: “Daquele homem no chão da minha sala/ há meses não tenho notícia/ desde que virei a cara/ saltei janela/ fugi sem freio ladeira abaixo/ perdi o bonde/ estraguei tudo”. O desejo não tem pernas para alcançar o ritmo das imagens.

Tudo é imagem
É desse ponto de vista que se pode ler também a epígrafe de Nuvens. De Nina Gagen-Torn extraem-se as palavras: “Aquele que escavar em sua consciência/ até a camada do ritmo e flutuar nela/ não perderá o juízo”. O ritmo de que se fala não é o sonoro, mas a alternância entre tempos fortes e fracos das imagens. Este é o ritmo das nuvens e de sua transformação. É o que dizem versos como “cheiro de cedro/ após a sauna/ nuvens no céu/ nuvens na alma”; ou “viver suspensa nas nuvens/ pôr nas nuvens o meu amor/ e nunca mais cair das nuvens”. E é das próprias nuvens que vêm os versos que se dirigem às coisas, que serão por elas mimetizadas: “ouviu, carro? (…)/ ouviu, montanha? (…)/ palmeira, ouviu?”.

As nuvens são também uma maneira de aproximar, num mesmo meio ambiente, coisas que se encontram apartadas na vida empírica. Nas palavras de Leonardo Gandolfi, em resenha publicada na Folha de S. Paulo, “é como se na poesia de Hilda houvesse um tipo de passagem de nível que aproximasse planos distintos”. Para Gandolfi, isso se deve igualmente ao fato de que a poeta era também cineasta: “a justaposição, em seus versos, pode ser tão intensa que se torna superposição”. E exemplifica com o poema Azul, em que podemos ver a superposição de coisas dessa cor, como o “manto de nossa senhora”, o “papel de Bis” e um “galeão afundado em mar de cromakey”.

Também coisas e ideias passam a conviver, sem distinções ontológicas, ou seja, sem diferenças essenciais. No poema Ressaca, culpa, intestino, Deus:

eu bebo até me acabar
depois eu acordo no meio da noite
olhos arregalados de culpa 

aí eu faço como minha irmã me ensinou
aperto o ponto número 4 do intestino grosso
e digo
senhor, derrama sobre mim tua paz
que excede a todo conhecimento

Isto acontece porque tudo que existe é tratado como imagem. Nesse sentido, lida como uma contemporânea, a poesia de Hilda Machado está próxima daquela feita por Leila Danziger, por exemplo, em que a imagem de uma baleia morta retratada num jornal tem o mesmo peso, a mesma dimensão trágica, do seu corpo físico encontrado pelos banhistas em uma praia (por isso, no poema Fato bruto, Danziger propõe um túmulo para a imagem da baleia, que nos versos é recortada e enterrada na Bíblia, nas páginas que contam o dilúvio). Poesia também afim à de Alice Sant’Anna (em Pé do ouvido) ou Tomaz Amorim Izabel (Plástico pluma). Por outro lado, essa indistinção essencial faz com que a linguagem da poeta seja constantemente “erotizada”, no sentido de ser capaz de gerar uma atração insuspeita entre todas as coisas, e nisso sua poesia é “contemporânea” de outras e outros poetas vivos, como Patrícia Lavelle (em Bye bye Babel), Lucas Matos (1989) ou Ana Martins Marques (O livro das semelhanças). Esses arranjos provisórios mostram que a inserção de Nuvens na poesia brasileira hoje permite uma releitura da cena a partir de semelhanças produzidas pelo próprio livro, que funciona, assim, ele mesmo, como nuvem.

A singularidade de sua poesia, no entanto, está justamente no efeito vertical de seu ponto de vista. Indeciso entre céu e chão, Nuvens é um livro de poesia, mas é também um tratado sobre a suspensão e a queda interminável das almas. Ou do desejo. Nesse sentido, é oportuna a inclusão de um poema sem título no apêndice do volume, que versa assim:

Transitoriedade da alma
o que isso significa? Não sei,
deve ser que ela está aqui de passagem.
Só pode. Faz sentido.
Tem gente que vem a trabalho,
eu vim a passeio — e não gostei —
o resplandecer da alma é efêmero.
Hilda Machado

Nuvens
Hilda Machado
Editora 34
96 págs.
Hilda Machado
(1951-2007) foi poeta, cineasta, professora e pesquisadora pela Universidade Federal Fluminense. Seu único livro de poemas, Nuvens, é póstumo e organizado a partir de um original registrado na Biblioteca Nacional. Publicou versos esparsos em vida e recebeu alguns prêmios em festivais de cinema pela direção do curta-metragem Joílson marcou. Publicou também o livro Laurinda Santos Lobo: mecenas, artistas e outros marginais em Santa Teresa.
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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