O riso refinado

Ao adaptar "O grande mentecapto" para os quadrinhos, Caco Galhardo preserva o humor e a crítica social sem cair em obviedades
01/01/2025

O grande mentecapto, romance de Fernando Sabino, publicado originalmente em 1979, transita entre o realismo e o absurdo, usando a trajetória do protagonista Geraldo Viramundo para fazer uma crítica social refinada. Sabino consegue capturar os meandros da sociedade brasileira, suas contradições e peculiaridades, através de uma narrativa que mistura humor, ironia e uma profunda sensibilidade humana. Um dos pontos altos do livro é a capacidade de Sabino de transformar o aparentemente banal em algo profundamente significativo. A crítica social presente no livro é precisa. Expõe mecanismos de poder, hierarquias sociais e comportamentos institucionalizados.

Isso dito, é também um texto com alguns problemas, é um texto datado.

Ao adaptar o romance para os quadrinhos, o cartunista Caco Galhardo faz algumas atualizações no texto. Escolhe, por exemplo, deixar de fora trechos do começo do livro que seriam categorizados, no mínimo, como complicados. Por exemplo:

Contou com o ovo no rabo da galinha, enfiou o dedo no rabo dela / se escondeu na cesta de roupa suja para ver a irmã mais velha tomar banho, quis pegar a irmã mais nova e depois teve remorso, perdeu a virgindade numa cabrita,/ fez do travesseiro o corpo da professora/ teve medo do João Carangola que fugiu da prisão e gostava de menino/ ficou preso pela piroca num gargalo de garrafa/ sentiu dores nos culhões, comeu a negra Adelaide e virou homem/ E tomava a beijá-la, às gargalhadas. Cremilda chorava.

E isso não é uma crítica. Eu concordo com o Galhardo. São trechos que precisavam sair mesmo. Não por purismo ou censura. Precisavam sair porque não compõem de forma coerente, hoje, a irreverência caótica e ingênua de Geraldo Viramundo. São trechos que deixaram o seu sentido lá em 1979.

Adaptar uma obra, qualquer obra, não é uma tarefa simples. Essa não é a primeira empreitada de Galhardo nesse sentido. A adaptação dele de Dom Quixote (vol. 2), por exemplo, foi finalista do Jabuti em 2014.

O grande mentecapto, do Sabino, ganhou o Jabuti em 1980.

Ou seja, mesmo não conhecendo o Galhardo, posso afirmar sem muito medo de errar que ele seja um tanto quanto fascinado com o personagem do Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, já que O grande mentecapto é, com alguma licença poética aqui, o Dom Quixote brasileiro. Os dois são sonhadores à beira do delírio, não procuram bens materiais e têm uma relação platônica-delirante com a mulher amada. Dom Quixote e Dulcinéia; Viramundo e Marília. Os dois prezam pelas soluções heroicas, ainda que malsucedidas. Os moinhos de vento do mineiro, entretanto, são problemas sociais brasileiros bem reais e conhecidos.

O grande mentecapto quebra um pouco a narrativa mais usual de Fernando Sabino, afastando-se do gênero crônica. Os personagens não são urbanos e cosmopolitas. A linguagem jornalística dá lugar a uma mais picaresca, com um anti-herói em sua série de aventuras e desventuras em meio a uma sociedade corrupta, violenta, injusta e sem sentido.

Sabino também cria, estruturalmente, um diálogo com as biografias tradicionais e os textos mais acadêmicos, brincando com notas de rodapé, citações, etc. Ou seja, ele testa as margens do que é considerado um romance bem antes de ser modinha, quando ainda era tudo mato.

Geraldo Viramundo é o anti-herói típico. Tem o coração bom e nobre, é honesto, humilde, inteligente e culto. E, ao mesmo tempo, ingênuo, pobre, malsucedido. Depois da falência da carreira eclesiástica, não volta à família. Também não perde o vocabulário rico, muitas vezes excessivo ao ponto do ridículo. Esse tipo de dicotomia ou polaridade é um dos principais constituintes do anti-herói. Pode ser rico intelectualmente, mas pobre financeiramente como Viramundo ou, por exemplo, feio mas atraente, como um Cyrano de Bergerac da vida.

Adaptar um texto literário para quadrinhos não é uma mera transposição. Tampouco é uma tradução. No assunto, para quem se interessa, deixo aqui a recomendação da Linda Hutcheon, em especial o Uma teoria da adaptação (UFSC, 2013).

Galhardo é feliz em sua interpretação visual porque consegue preservar o humor e a crítica social sem, ao mesmo tempo, cair em obviedades.

Na cena da morte do Pingolinha, por exemplo, o cartunista consegue manter a dor, a tensão e o drama sem apelar para soluções mais gráficas e, portanto, mais fáceis.

Essa é a grande força da versão do Galhardo.

O grande mentecapto
Fernando Sabino e Caco Galhardo
Record
88 págs.
Caco Galhardo
Nasceu em São Paulo (SP), em 1967. É um renomado cartunista e desenhista brasileiro, conhecido por seu humor inteligente e suas tiras diárias publicadas em diversos veículos de comunicação. Além de seu trabalho como cartunista, Galhardo também se dedica às artes visuais, ao cinema e ao teatro.
Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

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