Há uma tendência para o estranhamento nos títulos de Chico Buarque, que são palavras ou expressões linguisticamente desagradáveis, opacas e até mesmo cafonas, como Estorvo, Leite derramado e O irmão alemão (com este eco em ão que dói nos ouvidos). O seu novo volume de ficção não foge à regra: Bambino a Roma se vale de um estrangeirismo meio besta, que revela a sua propensão para termos de outros idiomas ao longo da narrativa. Com isso, o músico dublê de escritor quer frisar uma experiência internacional, que de fato tem. Se estes adornos cosmopolitas obtidos por um vocabulário citável são coerentes com a sua trajetória, como uma espécie de sotaque cultural, eles reforçam uma falta de sensibilidade para o uso literário da língua. São centenas de termos e construções que enfeiam o livro e denunciam certo gosto duvidoso.
Listo aqui algumas passagens, sem querer ser exaustivo, com os números das páginas entre parênteses: gastar o latim (37), refestelar (38), engalanado (39), enrabichado (42), meses a fio (45), bico calado (46), ponto fraco (47), moça séria para esposar (48), imaginar um milhão de coisa (49), de quebra (50), não tardaria a morrer deveras (p.5 4), cair prostrado no leito (55), na medida do possível e tal monta (56), dinheiro contado (57), sexo a rodo (58), álibi quase perfeito e repouso absoluto (59), medir de alto a baixo e chegar esbaforido (63), à guisa (64), custar os olhos da cara (68), se calhar e num átimo (74), se escafederam (75), esbórnia (78), quiçá (79 e 115), sair catando cavaco e a chuva despencou (88), fazer cu-doce (89), ânimos foram se exaltando e pessoas se engalfinharam (90), se fazer de surdo e ficar de olho (91), parca mesa (95), achar por bem (96), andares abarrotados de livros (97), facultar o acesso (98), pizzas fumegantes e pescar alguma coisa do idioma (102), ir confabular (109), dar nos nervos e custar uma fortuna (110), além da conta e do nada (11), amargar a derrota e a coqueluche do momento (115), descer voando e dar de cara (116), fazer vista grossa (117), cu de ferro (124), se esbaldar e melindrar (125), a família em peso (127), andar a esmo (128), no fim das contas e ir para cima e para baixo (129), encasquetar (130), açodamento (131), menear a cabeça (140), dar de cara (143), trânsito nervoso (144), ficar de queixo caído (145), adquirir na bacia das almas (149), vetusto homem (150), surrupiar e entrar na cola (152), sem tirar nem pôr (153), dar umas talagadas (155), achar que é cascata (156), andar ao léu e tomar uma saideira (157) etc.
Se sobram línguas estrangeiras — o autor se vangloria de falar bem inglês e italiano aos 9 anos de idade, quando se mudou para Roma —, falta a língua portuguesa para uso narrativo. Há uma inflação de lugares-comuns que cria obstáculos estéticos, pois o leitor é atingido a todo momento por farpas de um idioma enferrujado. Chico Buarque, nestes momentos, não escreve, mas é escrito pelos chavões da pior literatura.
O lugar-comum é um atalho de expressão a que se entrega o escritor que está mais preocupado em contar, forçando traços caricaturescos das ferramentas linguísticas, do que em escrever. Escrever é o ato de buscar novas e melhores combinações para palavras que, embora cotidianas, ganham o frescor de algo recém-nascido. Do ponto de vista do estilo, Bambino a Roma, tal como os romances anteriores de um autor que estreou extemporaneamente aos 50 anos, é um rosário de clichês. Estaria, portanto, condenado à subliteratura dos astros das diversas artes que, depois da nomeada na atividade principal, diversificam seus investimentos de talento?
Menino-homem
Em literatura não existe criação a partir do nada. No princípio, há sempre outro princípio, em uma sucessão de retrocessos que remonta o surgimento dos códigos. Toda a escrita funciona como um ato de sobreposição. Lemos palimpsestos disfarçados, porque o escritor é uma derivação do leitor. Não há, portanto, escritores totalmente livres de tradições, e sim leitores que escrevem. Em maior ou menor grau, todo escritor é um diluidor. Se quem lê tem referenciais literários ou genericamente culturais, aproveita melhor os livros ao tentar identificar o que está sob a camada superficial da escrita.
Em Bambino a Roma, há uma referência marginal a um dos mestres da ficção contemporânea. Nas aulas de Mister Welsh (figura a que voltarei em breve), o menino Francisco (Francesco, para os colegas) lê Cat in the rain, conto de Ernest Hemingway. Parece algo extemporâneo em um menino que lia Emilio Salgari, mais condizente com a idade do personagem-narrador em outras épocas. Anote-se que o menino rememorado por Chico Buarque é uma invenção forjada na velhice, contaminado por suas experiências adultas, que dotam a criança de uma potência improvável. Ele ganha no livro uma idade intelectual e sexual muito superior aos seus pretensos 9/10 anos. É um menino-homem, fenômeno tropical de amadurecimento precoce que seria próprio do país bárbaro, explorado por Mario de Andrade em Macunaíma (1928). É, assim, um menino mítico, macunaímico, representante do espécime selvagem, tropical e sexualizado que tumultua as relações humanas em um dos centros da civilização — ele é o “brasiliano”, tal como o definem os colegas, sinônimo de bárbaro. É por este molde que Chico Buarque recorta a roupa de seu personagem em primeira pessoa biográfica.
Gato na chuva é um conto em que o inglês acaba povoado por conversas em italiano, durante a estada na Itália de um casal em crise. O desejo feminino, ignorado pelo companheiro, se materializa nesta vontade de a mulher ter algo dela. Este algo é um gato que se esconde sob a chuva no pátio de um hotel. O conto trabalha com o não dito como centro da experiência literária. Tem uma conexão frágil com o contexto do romance de Chico, apenas nesta experiência de uso de dois idiomas — inglês e italiano. O conto, portanto, é pouco simbólico para a mecânica do romance. Mas não o autor dele.
Em grande medida, Bambino a Roma dialoga com um dos livros mais conhecidos de Hemingway e que está na matriz da autoficção ocidental. Trata-se do falso livro de memórias Paris é uma festa (1964), em que a recordação da capital francesa como centro do mundo para os americanos vem revestida de uma dúvida quanto à fidelidade factual. No prefácio, desconfiando da própria memória, Hemingway diz: “Se o leitor preferir, considere este volume como um trabalho de ficção”. E é nesta dica que o leitor de hoje ancora uma leitura ficcional da matéria que alimentou as reminiscências tardias de uma Paris mais inventada do que recuperada documentalmente.
No mesmo capítulo em que Chico cita o conto pouco elucidativo para as suas estratégias de escrita, ele faz uma ressalva que ecoa diretamente Paris é uma festa:
Mesmo as memórias mais recentes seriam retocadas à medida que eram escritas. Achei melhor largar mão da ideia de um diário e deixar que o esquecimento fizesse o seu trabalho. No futuro, a imaginação cobriria as lacunas da memória e os acontecimentos reais se revezariam com o que poderia ter acontecido.
Bingo!
Chico, consciente ou inconscientemente, está reescrevendo Paris é uma festa, colocando no centro Roma, a cidade que cresceu no imaginário mundial depois da Segunda Guerra, em boa medida pelo serviço de sonho do cinema, com um Roberto Rossellini ou um Federico Fellini — aliás, citados no romance. Assim, o menino que vaga pelas ruas de Roma é uma projeção do jovem Chico, de sua segunda estada na Itália (em 1969), quando teve que sair do Brasil por conta de suas músicas que criticavam a ditatura militar, tudo canalizado ao corpo e às experiências do menino que morou lá com os pais e os irmãos muito antes. O narrador é uma fusão de todas as fases da experiência italiana de Chico, condensadas neste menino-homem, invenção literária para um herói infantil que incorpora eus futuros. Isso dá a Bambino a Roma um caráter ficcional que ultrapassa o projeto de fazer a crônica de um período, tal como sugerem as fotos e os documentos publicados ao longo dos capítulos. E está nesta ambiguidade o valor do livro, que transporta para uma outra latitude o projeto de Hemingway, molde do brasiliano.
Autofotobiografia
Desde W. G. Sebald (1944-2001), aprendemos a dar foros ficcionais a fotografias. Com a onda nacional de autoficção, os romancistas brasileiros se valeram muito deste recurso. Eu mesmo o utilizei em Chove sobre minha infância (2000). Nestas apropriações, prevalece sempre o caráter anônimo destes seres ou espaços que se tornam visíveis por meio de uma obra ficcional, distanciando-se do uso meramente exibicionista das imagens de celebridade.
Em Bambino a Roma, há um deslocamento midiático do recurso, que dota o livro de um sabor instagramável. O artista famoso abre o seu álbum de família e reproduz cartinhas em inglês que ele recebeu de Miss Tuttle, a quem o livro é dedicado. As fotos não buscam um funcionamento ficcional, mas ilustram a história para os fãs. A capa, com Chico em sua bicicleta requintada (cobiçada pelos amigos italianos), reforça a promessa ao leitor de um encontro com a trajetória do músico e compositor famoso. Ou seja, o uso de fotos ou fac-símiles é antes uma estratégia editorial do que ficcional, o que diminuiu o poder narrativo do livro, que além de seu caráter publicitário é autorreferencial.
Fama de bicha
Pelo que fica dito até aqui, o romance não teria valor, enquadrando-se na categoria de literatura de plástico, tal como definem os portugueses as obras de entretenimento midiático? Não, não é, no entanto, o caso.
Bambino a Roma tem os defeitos de suas qualidades. Ele traz um elemento que o salva do constrangimento da “história de sucesso” no exterior. Este componente literário é o humor. Em todas as páginas, o Chico personagem está zombando de si mesmo. Ele não se leva a sério, deixando o registro meio cabotino de sua passagem italiana. Quase tudo nos chega como histórias divertidas de um menino selvagem em um dos centros da civilização.
Ao frequentar a escola internacional para estrangeiros, ele zomba dos amigos, dos professores e do seu próprio desempenho, opondo-se ao rigor das lições a sua condição de espírito solto, que percorre por conta Roma, convive com seres à margem e gosta mais dos passeios de bicicleta e dos jogos de bola do que dos estudos. A formação que ele recebe não é a escolar, mas a do contato quente (e perigoso) com as pessoas, com malandragens infantis ou adultas.
É difícil imaginar sem rir a passagem do menino que, por seus laços de amizade com a filha da atriz, dança com a esplendorosa Alida Valli, em uma cena em que a sensualidade que se espera é substituída pelo descompasso entre os integrantes deste par que só podia ser caricaturesco. A grande atriz com o menino brasileiro. É também narrado em tom de falsete certa tendência homoafetiva em duas cenas. Quando um homem persegue na rua o menino branquelo sempre de calções ou quando o professor de inglês faz carinhos em sua bunda na hora em que ele o procura na sala para rever as lições e se debruça na sua mesa, em uma posição erotizada, como é erotizada a inclinação do menino no selim da bicicleta, na foto da capa do livro. O Chico narrador solta uma gargalhada implícita ao narrar tais fatos:
Essa minha história com ele eu não cogitava contar a ninguém, tinha pudor. Eu tinha medo de ganhar fama de bicha.
O riso salva o livro de qualquer desejo de seriedade ou de dramatismo autoindulgente quando se trata de relatar abusos recebidos na infância, tendência da má literatura contemporânea que, maniqueistamente, dividiu a humanidade em poderosos homens perversos contra seres frágeis e totalmente inocentes. Chico Buarque faz a crítica humorística desta onda do vitimismo melodramático que define a repercussão das obras não apenas no Brasil:
Só acho uma lástima que, a esta altura, Mister Welsh com certeza já tenha morrido, perdendo a chance de ler seu nome no livro de um autor brasileiro em cuja bunda lisa de menino ele gostava de passar a mão. Mas talvez ele tenha deixado filhos, netos, bisnestos, uma prole respeitável que minha editora inglesa será capaz de localizar, para enviar uns exemplares de cortesia.
O autor não quis se mostrar um coitado indefeso nesta passagem em que foi bolinado, e sim rir dela e zombar de um gênero que transforma a mínima situação erótica em um drama que denuncia o poder que destrói identidades. O riso no lugar da autovitimização é a maior qualidade deste romance.
Homem-menino
Mas a iniciação erótica do menino não para nos carinhos em sua bunda, dos quais ele não reclama, nem no momento em que dança com Alida Valli, nem mesmo quando ele engana um provável estuprador nas ruas de Roma, que o segue para tentar levá-lo a um esconderijo. Esta perseguição também é narrada em estilo farsesco. Enquanto a descoberta do sexo feminino se dá no seio da família com uma simulação do complexo de Édipo. Em determinado momento, a irmã mais velha de Chico, Miúcha, já cantora, vai a Roma e lhe empresta, além do horizonte artístico, estava sempre com seu violão, o deslumbre do corpo nu. “Minha irmã mais velha morreu sem saber que a espiei pelo buraco da fechadura.” O menino-homem continua sua saga sexual, sem recuar diante dessas confissões que podem ser consideradas pornográficas. A presença artística e sexual de Miúcha o empurra para o seu destino musical, afastando-o do pai que se isolava em seu escritório de intelectual sério e da mãe rabugenta que não teria apreço por Chico. Nascendo já na velhice de seus pais, o cantor descende artisticamente de Miúcha, em quem enfim conjuga seus pendores musicais e sensuais, despertados pelas marchinhas carnavalescas do Brasil que ele aprende a apreciar na Itália, em uma brasilidade imposta pelo exílio linguístico.
Pode-se dizer que seu rito de passagem se dá em um capítulo em que uma música italiana fazia menção a Copacabana, momento em que o menino se despede da Europa para voltar ao Brasil e descobre o contato indireto com o sabor do sexo de uma jovem, Graziella, namoradinha de seu amigo Amadeo. Ela batiza os gomos de mexerica em sua vagina e entrega para o menino, que saboreia este novo fruto. O capítulo é um deslumbrante conto erótico, que conclui uma educação sensual, que culmina com uma brutal mordida nos lábios: “Com gosto de sangue na boca eu me perguntava se é assim mesmo que um menino vira homem”. Momento alto do romance, que daí para frente vai para o presente da escrita, quando aparece não só um narrador já homem, mas um velho nostálgico de si mesmo.
Autoficção exemplar
Na parte final do romance, Chico Buarque fala sobre o retorno a Roma, para seguir as pegadas do menino perdido naquela geografia memorialística. O ritmo é o de um romance policial, com um narrador em busca de um crime que teria acontecido no apartamento em que a família de Chico morou. Entre visitas frustradas, encontro com a nova Roma, com a presença de imigrantes africanos, e a estadia em um hotel como turista, no papel de um escritor sul-americano, um velho homem branco não se encontra nem consigo mesmo nem com os personagens do passado.
Neste epílogo em que a escrita do romance memorialístico é o centro, o Chico Buarque personagem é acusado por um menino italiano que grita na rua que o estrangeiro quer levá-lo ao hotel para fins eróticos. Há um espelhamento da situação vivida pelo menino Chico que agora é a vítima de um golpe nesta outra Roma, em que um bambino o acusa de pedofilia. Este menino é antes de tudo imaginário, dentro da lógica de convívio com fantasmas interiores, confundindo-se com a criança que o narrador foi. Ele é a suposta vítima e o suposto tarado em uma passagem em que os tempos e as identidades se sobrepõem, corroendo as certezas que são a praga da subliteratura do sociologismo tatibitate dos dias atuais.
O crime que não é revelado fica apenas sugerido. É o fim da infância. À qual o Chico avô volta ao percorrer Roma com uma bicicleta alugada, livre na cidade que não sendo mais a da sua primeira estada é a cidade eterna das suas descobertas.
Bambino a Roma traz o elemento principal da gramática da autoficção, tão diluída em autores menores, e que neste romance ganha o status de grande arte. O autor-narrador-personagem trata de assuntos tabus, constrangedores, dando a eles uma leveza existencial, para mostrar do que é feito o humano, nem só de monstros nem só de vítimas. E, assim, nos devolve às nossas ambiguidades.